Volume 16 - 2011
Editor: Giovanni Torello

 

Setembro de 2011 - Vol.16 - Nº 9

COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TÉCNICAS E CIENTÍFICAS SOBRE MORTALIDADE EM DOENÇA MENTAL NO BRASIL DA “REFORMA PSIQUIÁTRICA”

Fernando Portela Câmara
Professor Associado UFRJ

Há seis anos o DATASUS/Ministério da Saúde publicou resultados sobre mortalidade nas diversas categorias médicas, entre elas a psiquiatria, para o período 1996-2005. Impressionou a demonstração governamental do aumento da mortalidade entre doentes mentais, coisa inédita para nós, e um banho de água fria nos proponentes da chamada “luta antimanicomial” ou “movimento antipsiquiátrico”, uma ideologia que passou a dominar a política de saúde do governo neste inicio de milênio.

As distorções ideológicas são evidentes. Primeiro, o uso da palavra “manicômio”, banida desde a década dos anos 1940, agora re-editada insistentemente sem nada que caracterize hospitais psiquiátricos como “depósito de loucos”. Trata-se de uma retórica e apenas isto, aparentemente destinada a alardear a propaganda político-ideológica. A eles aliam-se outros profissionais da chamada “saúde mental”, algo que não se sabe bem o que seja, até porque, no que se refere à psiquiatria, ela cuida especificamente da doença mental que, se devidamente tratada, devolve ao indivíduo sua saúde mental ou ao menos suas reservas psíquicas necessárias ao funcionamento social básico.  

O fato é que os “antimanicomiais” ou “antipsiquiatras”, quaisquer que sejam suas designações, conseguiram implantar sua política e o resultado foi aparentemente um fiasco, pois, o fechamento de hospitais e redução do leitos hospitalares disponíveis para internação por doença mental gerou um problema social e de saúde pública graves: doentes mentais necessitando de cuidados no leito foram literalmente jogados na rua com todas as agruras e conseqüências funestas da desassistência hospitalar necessária aos casos graves. Pacientes nessas condições, ao mesmo tempo que esvaziam os hospitais acabam por aumentar a população carcerária do país, já excessiva. Este estado de coisas ganhou repercussão nacional com a grave denúncia do jornal O Globo (2007), que publicou em uma extensa reportagem onde criticava a política de saúde mental do governo, inapropriadamente denominada “reforma psiquiátrica”. Nesta matéria mostrou-se que o número de mortes de doentes mentais havia crescido 41% nos últimos cinco anos, ao mesmo tempo em que 25% dos leitos psiquiátricos foram fechados sem a necessária implantação de serviços substitutivos.

Hoje, em 2011, todos que lêem jornais e vêem o noticiário da TV sabe como o crack está se tornando um problema de saúde pública e social. A sociedade não tem mais como cuidar desse contingente, a ponto de o Ministério Público de alguns estados impor a internação compulsória dessas infelizes pessoas para restituir-lhes o direito ao tratamento hospitalar (veja, por exemplo, Noblat, 2011). O descumprimento do que manda a lei 10.216/2001 (erroneamente denominada Lei Paulo Delgado) por razões, que levou recentemente um Ministério Público a repudiar e denunciar a interferência dessa política ideológica no bem estar dos cidadãos que necessitam de internação urgente para tratamento de dependência química.

Face aos dados já citados do data-SUS sobre a impressionante taxa de mortalidade na categoria das doenças mentais, decidimos avaliar o impacto da desospitalização, ou seja, da redução de leitos hospitalares disponíveis para tratamento de distúrbios mentais e do comportamento, usando os dados fornecidos pela mesma fonte, ou seja, data-SUS. Isto resultou em um trabalho publicado (Câmara, 2007) que teve grande repercussão e no qual foram usados os dados disponíveis na época, referentes ao período de 1996 a 2005 (DATASUS/Ministério da Saúde, 2005).

Neste trabalho a mortalidade na categoria V da CID-10 relativa para o período mencionado, após corrigir para o aumento da população brasileira, manteve-se muito elevado, 62,3%. Considerando a relação mortes/anuais e grau de redução de leitos para internação, também corrigidos para o aumento populacional no período, a correlação Pearson r para ambas variáveis mostrou uma forte associação (r = 0,92, p < 0,001), e a relação entre mortalidade e redução proporcional de internações (corrigida) foi altamente significante no modelo de regressão linear (p < 0,001 para ambos coeficientes), com um coeficiente de determinação ajustado R2 = 83,1%, mostrando que o modelo é preditivo e válido, com a redução proporcional de leitos explicando 83,1% da variância da variável resposta (mortalidade). Isto mostrou uma relação direta entre mortalidade por doença mental e redução de leitos, e hoje vemos que a situação parece se manter a julgar pelo estado de emergência que a disseminação do crack ocasionou.

Este estudo foi replicado em outros contextos, mas a nosso ver algumas vezes de forma não adequada. Se temos de demonstrar a realidade de uma situação estatisticamente, devemos adotar rigor e precisão para evitar vieses que atraiam críticas fundadas. Assim, gostaria aqui de dar algumas “diretrizes” aos interessados em replicar estudos semelhantes:

1.      Usar dados de fontes oficiais;

2.      Corrigir os dados pela população no momento, para isso o IBGE e o próprio DATASUS disponibilizam estes dados;

3.      Ter sempre em consideração que correlação não é causa, e que uma associação, mesmo forte, não é muito robusta, e por isso deve-se preferir uma análise de regressão procurando, sempre que possível, evitar regressões não-lineares;

4.      Sempre que se fizer uma regressão linear, deve-se proceder a uma análise de resíduos para definir se a reta de regressão captura integralmente a estrutura dos dados (a maioria dos estudos negligencia esta medida);

5.      O valor de R2 não deve ser inferior a 70%, pois, ele determina o percentual da variável resposta que é explicado pela variação dos dados da variável preditora.

Cumprindo-se este roteiro, as analises estarão bem fundamentadas e cientificamente definidas.

Bibliografia

Câmara FP. Mortalidade por transtornos mentais e comportamentais e a reforma psiquiátrica no Brasil contemporâneo, Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 11(2): 278-285, 2008.

MS, DATA-SUS, Mortalidade-Brasil.

http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/obtuf.def

Acessado em 02/04/2005

MS, DATA-SUS, População Residente-Brasil

http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?ibge/cnv/popuf.def

Acessado em 02/04/2005

Noblat R. Uma luz nas cracolândias, disponível em

http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_post=402339&ch=n 

Acessado em 28/09/2011

O Globo. O governo não quer saber de quem ouve vozes. Jornal O Globo: Rio de Janeiro, 9 dezembro, seção O País, p. 15, 2007.


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