Volume 22 - Novembro de 2017 Editor: Giovanni Torello |
Novembro de 2011 - Vol.16 - Nº 11 Pensando a Psiquiatria AMBIGÜIDADE: DA EXALTAÇÃO DA MALANDRAGEM À CAÇA AOS PSICOPATAS Dr. Claudio Lyra Bastos Temas recorrentes como a corrupção crônica da política em nosso país, a criminalidade sem fim, etc., suscitam discussões intermináveis sobre a natureza da desonestidade e da violência. Depois das teorias socioeconômicas tradicionais, recentemente vimos renascer outro ramo: o das explicações psiquiatrizantes. As expressões "psicopata", "personalidade anti-social" e "sociopata" vem sendo usada à larga e sem quaisquer critérios psicopatológicos consistentes para definir indivíduos violentos, inescrupulosos ou corruptos. A usurpação de termos psiquiátricos para falar de infrações à lei se relaciona com a tendência à judicialização da saúde em nossa época. Este texto não pretende apontar as inconsistências psicopatológicas desse abuso semântico, nem muito menos discutir o problema da corrupção ou da violência. Nosso objetivo se restringe tão somente a utilizar a literatura como instrumento para mostrar como a figura do "malandro" - em última análise, o desonesto - sempre foi vista com aspectos positivos em nossa cultura, ao contrário do que acontece em outros povos. A nossa indignação com a corrupção e o crime é algo mais do simples hipocrisia: é uma duplicidade que se constitui quase num estilo de vida, numa maneira particularmente dúbia de ser e ver o mundo. A
ambivalência salta aos olhos como um dos principais elementos de nossa
perspectiva de vida. Vassouras para limpar a corrupção são elementos
repetitivos em nossas campanhas políticas há décadas. Da mesma forma, a
convivência do nosso sistema legal com milícias, capangas, jagunços, polícias mineiras, etc. As mesmas
pessoas que acusam os corruptos disso e daquilo lhes pedem favores, sinecuras e
jeitinhos. As mesmas pessoas que lincham
um marginal se lamentam pela violência policial. As mesmas pessoas que acusam
"o sistema" subornam funcionários, vendem e compram vagas em filas de
serviços públicos. As mesmas pessoas que reclamam da criminalidade compram
material sabidamente roubado sem nenhum dilema de consciência. As mesmíssimas
pessoas que se horrorizam com os índices de criminalidade participam de meetings, comícios, festas e churrascos
com notórios gangsters, abraçando-os
e lhes apertando as mãos efusivamente. Por aqui, coerência não é coisa que se exija de ninguém. Saindo das questões especificamente
psiquiátricas e enveredando por outras searas, tentamos aqui utilizar alguns
clássicos da literatura brasileira e inglesa como elementos de interpretação
para uma abordagem comparativa (em termos antropológicos, não literários) desse
tema. Os
“romances malandros” como expressão da liminaridade As obras literárias podem vir a constituir um interessante ponto de partida para o estudo das relações sociais, e mais ainda para o estudo da história do desenvolvimento dessas relações. Tomando como exemplos o romance “Memórias de Um Sargento de Milícias”, lançado como folhetim em 1852, de autoria de Manuel Antônio de Almeida, tido como o primeiro clássico da nossa literatura, e o conto de João Guimarães Rosa intitulado “Traços Biográficos de Lalino Salãthiel, ou A Volta do Marido Pródigo”, publicado em 1937, na coletânea “Sagarana”, podemos encontrar alguns elementos característicos dos processos culturais da formação social brasileira. Apenas para efeito de comparação, resolvemos utilizar como referência dois romances ingleses do século XVIII, de cunho também satírico ou picaresco, nos quais que a malandragem parece exercer um papel de destaque, escolhendo “The Fortunes and Misfortunes of the Famous Moll Flanders & C.”, escrito por Daniel Defoe, o autor de “Robinson Crusoe”, publicado em 1722, e “The History of Tom Jones, a Foundling”, publicado em 1749, de autoria de Henry Fielding, considerado por muitos críticos como um dos maiores romances da literatura inglesa. Utilizando obras literárias muito significativas e que apresentam entre si expressiva semelhança de conteúdo - a interação da malandragem com a ordem constituída - tentamos apontar e compreender as diferenças existentes, e através delas vislumbrar a imagem resultante de nossas características culturais. O malandro
como figura liminar: Chamamos ao malandro de figura liminar face ao seu papel intermediador entre a sociedade organizada, com seu aparato repressivo, por um lado, e as forças desorganizadoras, por outro lado. A malandragem cria outra ordem de comunicação que possibilita uma espécie de “acordo” entre as partes. Van Gennep distinguiu uma fase liminar - limítrofe, marginal, fronteiriça - nos chamados ritos de passagem, correspondendo ao momento de transformação ou ascensão, em que as definições se esmaecem. Segundo Victor Turner, o conceito de liminaridade surge na relação dicotômica entre a estrutura social imposta e as reações desestruturantes. Cita como exemplo de figura liminar o bobo da corte, uma figura gozadora e debochada institucionalizada, e lembra o papel dos proscritos e desprezados nos mitos e contos populares. De acordo com esse ponto de vista, podemos considerar duas formas rituais de transição liminar dentro das estruturas sociais: a) Ritualização de investidura, de natureza progressiva, ascensional, que corresponde aos processos de elevação de status individualizado. A mudança de posições não fere a organização social. A sagração dos cavaleiros, a concessão de títulos e condecorações, as cerimônias de formatura e titulação universitária, a promoção dos militares, as festas de inauguração de casas, piscinas e carros em que os novos-ricos se apresentam, etc. b) Ritualização cíclica da desestruturação, que corresponde a uma inversão complementar de papéis, “carnavalizando” a organização social e permitindo o desafogo das tensões sociais presentes em sociedades hierarquizadas, personalizadas e de escassas possibilidades de mobilidade social. O carnaval representa entre nós essa completa inversão. No entanto, em outros ritos, como as festas juninas, se não chega a ocorrer nenhuma inversão estrutural propriamente dita, vemos um nivelamento, como a classe média urbana se vestir de caipira, com remendos nos fundilhos das calças, comer comidas rústicas e beber quentão. Outra forma de nivelamento semi-carnavalesco foi observada por Isidoro Alves na festa religiosa paraense do Círio de Nazaré, por ele curiosamente denominada de “carnaval devoto”. A dicotomia estrutura/antiestrutura e suas conseqüências ou soluções encontra-se simbolicamente representada em diversos mitos. No teatro grego vemos a tragédia do conflito Antígone vs. Creonte como uma belíssima representação da falta que faz a intermediação flexível. O terrível destino de Penteu em “As Bacantes” castiga-o pela mesma rigidez e insensibilidade, que o incapacitavam de cruzar essas barreiras. Essa tarefa é função de figuras flexíveis, ambíguas, malandras. Na mitologia e no folclore de praticamente todos os povos existe sempre a figura representativa do intermediador, ou seja, daquele que ultrapassa as fronteiras, que supera os obstáculos e produz a comunicação entre os deuses e os homens, entre a lei e o delito, entre o bem e o mal, entre o certo e o errado. Assim está sempre presente um personagem que, sem nunca enfrentar diretamente as injustiças do poder como o faz o herói revolucionário - ou sem roubar o fogo dos deuses como ousou Prometeu - imiscui-se por entre os limites do humano e do divino, ou torna-se, na expressão de Roberto da Matta: “o herói dos espaços intersticiais e ambíguos”. O deus grego Hermes - o Mercúrio dos romanos - o mensageiro do Olimpo, era o comunicador, o intermediário entre os deuses e os homens, e também o padroeiro dos ladrões e dos comerciantes. Era o mais ocupado dos deuses e sua representação com asas nos pés indicava o intenso trânsito e agilidade que essa intermediação exigia. Constava ser Hermes o pai de Autólico - tido como o mais matreiro, ardiloso e mentiroso dos homens - que dele herdara a arte de furtar sutilmente, sem ser jamais percebido, e que possuía ainda o dom de transformar-se no que quisesse. Esse mesmo personagem viria a ser o avô de Odisseus - ou Ulisses - sem nenhuma dúvida o mais “malandro” de todos os heróis gregos. Outras figuras mitológicas que representam muito bem esse papel são, por exemplo, o Exu das nossas tradições nagô (ioruba). Como toda a figura ambígua acabou sendo identificado pelo cristianismo com o diabo - o enganador - mas sua duplicidade é um elemento fundamental na mitologia dos Yoruba da Nigéria (Eshu) assim como dos Fon do Daomé e do Haiti (lá chamado Legbá), onde é também cultuado nas encruzilhadas. No candomblé e na umbanda, cumpre o seu papel de despachante dos orixás. Entre os deuses nórdicos temos Loki, que para os vikings representava esse mesmo papel matreiro e escorregadio do mensageiro e intermediário divino. Citando H. R. Ellis Davidson, que lembra que os índios americanos também cultuavam entidades semelhantes: “The place Loki occupies in the circle at Asgard is as puzzling as that
of Heimdall, although he is an even more prominent figure, and plays an
important part in most of the well-known myths. ... Loki is perhaps the most
outstanding character among the northern gods, the chief actor in the most
amusing stories ... It is he who brings comedy into the realm of the gods ...
He is evidently an ambivalent character, neither wholly good nor wholly bad ...
A characteristic of Loki, shared by no other gods except Odin and Thor, is his
sociability. ... Loki the thief, the deceiver, and the sharp-tongued
scandalmonger who outrages the gods and goddesses by his malicious revelations
in Lokasenna, yet who nevertheless seems to be accepted as a dweller in Asgard
and a companion of the greatest gods, is hard to comprehend. However, it was in
view of these queer contradictions in his character that resemblances were
pointed out between Loki and the supernatural Trickster who plays a great part
in the myth and folklore of a number of North American tribes. ... stirring up
mischief and parodying the more dignified gods ... following Odin and Thor, yet
mocking at them and the goddesses, he has turned into the hero of a series of
diverting, sometimes unseemly stories.” [1] O malandro como representação do
brasileiro: De acordo com da Matta, “... existe uma complexa dialética entre o indivíduo e a pessoa, correspondendo de perto à dicotomia do Homo duplex de Durkheim.” Salienta que existem “sistemas que privilegiam o indivíduo e sistema que tomam como centro a pessoa.” Admite também que é perfeitamente possível a coexistência de ambas as noções, simultaneamente, incluindo aí “as sociedades chamadas mediterrâneas”. No Brasil, da Matta vê “uma situação onde o indivíduo é que é a noção moderna, superimposta a um poderoso sistema de relações pessoais.” A partir daí, vê a escolha “ambígua do nem lá, nem cá” como “uma vertente básica do mundo social brasileiro.” Diversos
aspectos tornam para nós a figura do malandro um quase um “arquétipo”, que ao
contrário dos seus congêneres das sociedades mais individualistas, tem uma
coloração altamente positiva em nosso folclore e nossa literatura. Enquanto que
a esforçada formiga triunfa sobre a boêmia cigarra na fábula de Podemos lembrar que entre nós a palavra trabalho tem o significado da palavra italiana travaglio, derivada do latim tripalium (aparelho composto de três paus, usado para castigar, torturar) e não o de lavoro, cuja origem é a mesma de lavoura, que tem uma conotação muito mais relacionada à produção que ao suplício. De forma oposta à concepção calvinista, “trabalhar como um mouro” não dignifica ninguém no Brasil. Numa sociedade hierarquizada e pessoal, nada se pode conseguir sem a cordialidade de que falava Sérgio Buarque de Holanda: “... certa incapacidade, que se diria congênita, de fazer prevalecer qualquer forma de ordenação impessoal e mecânica sobre as relações de caráter orgânico e comunal, como o são as que se fundam no parentesco, na vizinhança e na amizade.” Extraordinariamente significativa entre nós é a figura do despachante, o aplicador profissional da malandragem e dos jeitinhos, sem os quais nada se faz neste país. Nas palavras de da Matta, “O despachante tem a função de pessoalizar a regra geral” (o grifo é meu). Por tais razões, cremos ter o malandro um papel especialmente relevante - e não apenas circunstancial - em nosso estilo de vida, em nossa cultura e em nossa literatura. Diz da Matta
que “os momentos em que percebemos o poder e o peso da
totalidade com sua rede de ultradeterminações” são o carnaval e “os
torneios de futebol”. Em nenhum país do mundo se dá tamanha importância a
qualquer modalidade esportiva, nem se vê tão grande vínculo com a idéia de pátria.
Só aqui a seleção nacional de futebol pode ser “a Pátria de chuteiras” nas palavras de Nélson Rodrigues. Acredito
que a desproporcional importância do futebol em nosso país deve-se à profunda
identificação que temos com as características malandras desse esporte coletivo. Evidentemente, não é por acaso
que esse é o único esporte em que
nosso país se destaca mundialmente e exerce liderança inconteste. Ao contrário
do football americano e do rugby inglês, em que a massa física é
fundamental, dada a truculência das disputas; do vôlei, cuja prática
profissional exige uma altura mínima próxima de 1,90m; do basquete, em que não
se pode ser competitivo com menos de O “romance malandro” brasileiro: “Memórias de
um Sargento de Milícias” é um romance, que escrito em 1852, narra uma história
passada na época de Dom João VI. O romance relata de forma irônica e por vezes
satírica as peripécias vividas por um jovem no Rio de Janeiro. Como é comum nas
histórias picarescas, o personagem é filho bastardo e enjeitado. Sua trajetória
termina por chocar-se com a do temível major Vidigal, figura repressiva,
inquisitorial e representativa da manutenção da ordem oficial. No entanto, a
simpatia que em todos o rapaz despertava acaba por induzir a viúva Luisinha e
sua tia a levar a amante do major, Maria Regalada, a interceder por ele, o que
se dá com absoluto sucesso. O todo-poderoso major é dobrado com incrível
facilidade pela influência direta e pessoal das mulheres. O uso em mão dupla das situações sociais ambíguas na vida brasileira é maravilhosamente bem descrito por Manuel Antonio de Almeida, no capítulo intitulado “O agregado”: “... nada havia mais comum do que ter cada casa
um, dous, e às vezes mais agregados. Em certas famílias eram os agregados muito úteis, porque a família tirava grande proveito de seus serviços, e já tivemos ocasião de dar exemplo disso quando contamos a história do finado padrinho de Leonardo; outras vezes porém, e estas eram em maior número, o agregado, refinado vadio, era uma verdadeira parasita que se prendia à árvore familiar, que lhe participava da seiva sem ajudá-la a dar os frutos ... “A Volta do Marido Pródigo” é um divertido conto de Guimarães Rosa que relata as aventuras do personagem-título, um sujeito maneiroso, simpaticíssimo, falastrão e inteiramente desprovido de quaisquer escrúpulos, cuja lábia lhe permite sempre angariar as simpatias de todos e manipular vantajosamente todas as situações. Percebendo que um dos comerciantes espanhóis do local lhe cobiçava a bela esposa, Eulálio (Lalino ou Laio) Salãthiel simplesmente lhe “vende” a mulher, dá adeus para a coitada em prantos e simplesmente parte para o Rio de Janeiro com o dinheiro. Após gastar até o último centavo em farras, ele resolve voltar para sua terrinha, e começa a rondar novamente a antiga companheira, o que naturalmente desperta a apreensão e o ciúme do espanhol. Mas o hábil e malicioso Lalino tantas faz e apronta, que acaba por conseguir tornar-se o braço-direito do Major Anacleto, grande fazendeiro e cacique político local, e com isso obter a expulsão dos espanhóis e reaver a apaixonada esposa, que morria de saudades do sacripanta. Ao contrário do que ocorre nos romances ingleses, percebemos que todo o setting social colabora ativamente para o sucesso das picaretagens do personagem, que nunca parecem correr contra o sistema, mas sempre dentro dele. Aquela sua falastrice dissimulada, pura conversa de cerca - lourenço, é sempre recebida com prazer, ou pelo menos com franca condescendência. O “romance malandro” inglês: “As Confissões de Moll Flanders” narra às aventuras de uma mulher nascida na prisão inglesa de Newgate, o que logo de cara denota uma situação a mais baixa possível. O que poderia ser pior do que já nascer presa? A história tem um cunho profundamente satírico e de crítica mordaz, com um fundo moralista. A trajetória da personagem corre pelas frestas do sistema numa direção sempre ascendente e culmina com a sua ascensão social e seu arrependimento. A narrativa segue num firme propósito de satirizar a hipocrisia inglesa e não demonstra qualquer simpatia pela malandragem da personagem, mas sim o propósito deliberado de chocar e denunciar, num trabalho quase jornalístico (não é à toa que Defoe é considerado um dos fundadores do moderno jornalismo). O título e o subtítulo originais dizem tudo: “The Fortunes and Misfortunes of the Famous Moll Flanders & C. Who was born in Newgate, and during a Life of continued Variety for Threescore Years, besides her Childhood, was Twelve Year a Whore, five times a Wife (whereof once to her own Brother), Twelve Year a Thief, Eight Year a Transported Felon in Virginia, at least grew Rich, liv’d Honest and died a Penitent. Written from her own Memorandums...”[3] O romance “Tom Jones”, de sir Henry Fielding é o relato de um enjeitado que no decorrer de inumeráveis peripécias acaba estabilizando-se em uma situação social elevada e respeitável. Fielding, diferentemente de Defoe, era um aristocrata liberal e tolerante, e satirizava seu meio social e sua época com uma postura compreensiva de "gentleman". A questão moral para Fielding é tão importante que ele frisa, em nota de rodapé, referindo-se à expressão canalha: “Toda a vez que a palavra ocorre em nossos escritos, refere-se a pessoas de destituídas de virtudes e inteligência, em todas as camadas sociais; e muitas vezes aludimos com ela a pessoas da mais alta posição.” Tem-se a impressão que demonstrar algum preconceito social seria para ele uma lamentável parcialidade, uma falta de fair-play indigna de um cavalheiro. O caráter intrinsecamente sincero e íntegro do personagem fica claro logo no seguinte episódio: “Passou o pobre Jones uma noite assaz melancólica;
principalmente porque se via sem o seu companheiro habitual, Master Blifil, que
saíra para fazer uma visita com a mãe. O medo do castigo constituía nessa
ocasião, o menor dos males; pois a sua aflição principal residia no temor de
que lhe viesse a faltar a constância e ele se visse obrigado a trair o
couteiro, o que traria como conseqüência a ruína deste último. ... “Tom suportou o castigo com suma resolução e, se bem o mestre lhe perguntasse, no intervalo de cada chibatada, se confessaria ou não, preferiu ser esfolado a trair o amigo ou faltar à promessa que fizera.” Uma no cravo e outra na ferradura: Naturalmente, um tema tão interessante e rico não poderia ser abordado de forma suficientemente abrangente e aprofundada num espaço e num tempo tão restritos. Acreditamos, porém, que algumas idéias básicas possam aqui ser levantadas para posterior desenvolvimento e discussão. Em primeiro lugar, a universal necessidade da figura mitológica do intermediário-malandro nos parece bem clara. Em segundo lugar, a diferença de papéis entre os personagens intermediários entre sociedades predominantemente hierarquizadas e sociedades mais individualizadas, ou seja, entre os nossos malandros e os deles surge com clareza a partir da comparação literária. Podemos ainda lembrar aqui os personagens malandros do cinema - desde Chaplin a, por exemplo, Aladdin, o desenho animado de Walt Disney - que mesmo infringindo as regras invariavelmente são bons e puros de coração, sendo sempre recompensados no final. Parece-nos que talvez o papel do malandro para eles acabe por se fundir em parte com o do denunciador das mazelas sociais, do vingador, do restaurador, do reparador de injustiças, seguindo uma trajetória definida: ordem corrompida ® herói “malandro” ® ordem restaurada. Em visível contraste, os nossos malandros literários são Macunaímas descarados, sem nenhum pingo de vergonha na cara e fazem parte inseparável, fisiológica, da sociedade corrupta em que vivem, sendo sempre por ela utilizados, ao mesmo tempo em que dela se utilizam. O claro papel
de crítica social dos romances satíricos ingleses em quase nada atinge a
estrutura social, mas procura contribuir para aperfeiçoá-la. A malandragem é
vista como uma forma mais branda de crime, que existe pelas deficiências e
imperfeições das pessoas que controlam ou administram a ordem social. A questão
da sinceridade e da honestidade de propósitos, que entre nós é sempre tão
relativa, para eles é fundamental. Citando Weber: “‘Honesto como um huguenote’ era uma expressão tão proverbial, no século XVII, quanto o respeito pela lei dos holandeses que sir W. Temple tanto admirava e, um século mais tarde, o dos ingleses, em comparação com os povos do continente, que não estiveram o bastante sob a ação de sua educação moral.” Não podemos pensar na papagaiada, na conversa fiada do Lalino de Guimarães Rosa sem que a comparemos imediatamente com esta outra citação de Weber: “Também Baxter faz referência à
pecaminosidade das palavras desnecessárias. ... O que seus contemporâneos
apontavam como profunda melancolia e rabugice dos puritanos era o resultado da
destruição da espontaneidade do status naturalis, a cujo serviço estava a
condenação do falar impensado.” Voltemos a
Guimarães Rosa, descrevendo a excelente impressão que o loquaz Lalino causara “... Um prazer, estarem ali. E o titular sorria, sendo-se o amistoso afetuoso de todos, apoiando a mão, firme, familiar, no bom ombro do Major. Ah, e explicava: tinha recebido o convite, para passar pela fazenda, e não podia recusar. O senhor Eulálio - e aqui o Doutor se entusiasmava - abordara o automóvel, na passagem do rio. O que fora muito gentil da parte do Major, haver mandado o seu emissário esperá-los tão longe. E, falando nisso, que magnífico, o senhor Eulálio! Divertira-os! O Major sabia escolher os seus homens... Sim, em tudo o Major estava de parabéns... E, quando fosse lá a Belorizonte, levasse o Eulálio, que deveria acabar de contar umas histórias, muito pândegas, da sua estada no Rio de Janeiro, e cantar uns lundus...” Depois vem a merecida recompensa, descrita na inimitável prosa do mestre: “Major Anacleto chama Lalino, e as mulheres
trazem Maria Rita, para as pazes. O chefão agora é quem se ri, porque a
mulherzinha chora de alegria e Lalino perdeu o jeito. Mas, alumiado por
inspiração repentina, o Major vem para a varanda, convocando os bate-paus: - Estêvam! Clodino! Zuza! Raimundo! Olhem:
amanhã cedo vocês vão lá nos espanhóis, e mandem aqueles tomarem rumo! É para
sumirem, já, daqui!... Pago a eles o valor do sítio. Mande levar o cobre. Mas é
para irem p’ra longe! ... - Olha Estêvam: se a espanholada miar, mete
a lenha! - De miséria, seu Major! - E, pronto: se algum quiser resistir,
berrem fogo! - Feito, seu Major! E, no brejo - friíssimo e em festa - os sapos continuavam a exultar.” REFERÊNCIAS: ALMEIDA, MA - Memórias de um Sargento de Milícias. Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1958. ALVES, I - O Carnaval Devoto. Vozes, Petrópolis, 1980. BASTIDE, R - As Religiões Africanas no Brasil. Pioneira, São Paulo, 1971. COMMELIN, P - Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro, 1947. DEFOE, D - As Confissões de Moll Flanders. José Olympio, Rio de Janeiro, 1955. FIELDING, H - Tom Jones. Globo, Porto Alegre, 1971. DaMATTA, R - Carnavais, Malandros e Heróis. Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1990. ELLIS DAVIDSON, HR - Gods and Myths of Northern
Europe. Penguin Books, GUIMARÃES ROSA, J - Sagarana. José Olympio, Rio de Janeiro, 1956. BUARQUE DE HOLANDA, S - Raízes do Brasil. José Olympio, Rio de Janeiro, 1975. TURNER, V - O Processo Ritual. Vozes, Petrópolis, 1974. WEBER, M - A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Pioneira, São Paulo, 1994. VanGENNEP, A - Os Ritos de Passagem. Vozes, Petrópolis, 1978.
[1] "O lugar que Loki ocupa no círculo
de Asgard é tão intrigante
quanto o de Heimdall, embora ele
seja uma figura ainda mais proeminente,
e desempenhe um importante papel
na maioria dos mitos conhecidos.
... Loki é talvez
o personagem mais marcante entre os deuses do norte, o ator principal nas histórias
mais divertidas ... É ele quem traz a comédia
para o reino dos deuses
... Trata-se, evidentemente, de um caráter ambivalente, nem totalmente bom
nem totalmente mau ... Uma característica de Loki, compartilhada por outros deuses, exceto Odin e Thor, é a sua sociabilidade. ... Loki, o ladrão, o enganador, o difamador de língua afiada que ultraja
os deuses e deusas por suas revelações maliciosas
em Lokasenna, mas que, no entanto, parece ser aceito como habitante
de Asgard e
companheiro dos maiores deuses, é difícil de compreender. No entanto, foi em razão destas
estranhas contradições em seu caráter que semelhanças
foram apontadas entre Loki e o Malandro
sobrenatural que desempenha um papel
importante nos mitos e folclore de várias tribos norte-americanas. ... Espalhando travessuras
e parodiando os mais importantes
deuses ... seguindo Odin e Thor, mas zombando
deles e das deusas, ele se tornou o herói de
uma série de divertidas e, por vezes,
desconcertantes histórias." [2] Hoje em dia, o tamanho e a capacidade atlética adquiriram
maior importância também no futebol, mas em linhas gerais, esse raciocínio
permanece. [3] As venturas e desventuras da famosa Moll
Flanders, etc. Que nasceu em Newgate, e durante uma vida de sessenta anos de contínua variedade, além da
infância, foi por doze anos prostituta, cinco vezes esposa (uma das quais do
seu próprio irmão), doze anos ladra,
oito anos deportada na Virginia,
finalmente acabou por enriquecer e viver honestamente, tendo
morrido penitente. Escrito a
partir de suas próprias anotações.
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