Volume 16 - 2011
Editor: Giovanni Torello

 

Março de 2011 - Vol.16 - Nº 3

Artigo do mês

MEU REENCONTRO COM DAMÁSIO, PASSANDO POR DESCARTES E A COMPREENSÃO NA DEMORA EM VALIDAR AS CONSEQUÊNCIAS DOS TCE PELA MEDICINA

Carlos Alberto Crespo de Souza.

 

“Os sentimentos fornecem a nós uma percepção instantânea do que se             passa em nosso corpo”. Damásio, in: Williamsen1. (O erro de Descartes -           1994)

“Assim, o nível de fenômeno biológico em que se desenrola a mente                          é de um nível físico que ainda está por se definir completamente. O  que      posso dizer lhe é que tenho a convicção que há uma matéria do pensar,             da mente consciente, matéria essa que é biológica e altamente complexa,       que está ligada ao funcionamento de redes nervosas – e que permite a        própria perspectiva da primeira pessoa – e que nada tem a ver com a nossa concepção da matéria e dos objetos de pedra, cal e aço que temos              à nossa volta”. Damásio, in: Desidério 2. (O sentimento de si - 2001)

 

1.      Introdução.

Há poucos dias caiu-me nas mãos um livro sobre os novos entendimentos a respeito da mente humana, agraciado que fui pela generosidade de um colega e amigo especial que o adquiriu em Montevideo, Uruguai, em recente estada nesse país.        

O livro foi editado em 2008, na França, e traduzido ao espanhol, na Argentina, em 2010. Possui como título “Los nuevos psi: lo que hoy sabemos sobre la mente humana” 3. Em suas páginas há muitos textos sobre as investigações contemporâneas a respeito da mente humana, como a memória, as emoções e a personalidade. Seus tópicos ou capítulos reportam-se a “encontros” com vários autores ou estudiosos da mente humana, entre alguns já não tanto contemporâneos, outros mais conhecidos e ainda outros menos abonados no mundo literário ou científico. 

Dentre eles, entre as páginas 260-273, o neurocientista português, agora radicado nos Estados Unidos, reconhecido internacionalmente e muito premiado (em 2010 recebeu o prêmio da Honda Foundation no valor de 80 mil euros) 4, António Damásio, está representado, proporcionando a mim a possibilidade de me aventurar “por mares nunca dantes navegados”. O reencontro provocou uma série de inquietações no meu ser, razão pela qual entendi ser relevante compartilhar um pouco do que aprendi ao investigar alguns textos anteriores, especialmente sobre Descartes e Damásio, porém motivado principalmente pelo fato de que pela primeira vez, em 2010 (até parece mentira), houve uma definição clara do que seria um traumatismo craniencefálico (TCE) por parte de organizações internacionais.           

 

2.      Primeiro encontro.

            Há muito me encontrei com Damásio em seu livro “O erro de Descartes: a emoção, a razão e o cérebro humano”, publicado em 1994 e editado no Brasil em 2004, um “best-seller” traduzido para aproximadamente 38 idiomas 5. 

            Nesse livro, Damásio trouxe como substrato às suas ideias, exemplos clínicos de dois casos, um avaliado retrospectivamente e, outro, na década de oitenta.  O primeiro caso, ocorrido em século passado, foi do funcionário de uma companhia ferroviária – Phineas Gage, 25 anos, - que sofreu um grave ferimento ao ter seu cérebro frontal transfixado por uma barra de ferro enquanto trabalhava na construção de uma ferrovia no ano de 1848. No acidente, milagrosamente, ele não faleceu, porém a pessoa responsável, trabalhadora e decidida que era tornou-se imprevisível e com grande dificuldade para tomar decisões. Sua personalidade modificou-se, entretanto manteve seu raciocínio lógico e sua memória e habilidades linguísticas permaneceram normais.    

            O caso descrito chamou a atenção no mundo científico e leigo, tanto é que o livro de Damásio e o personagem do drama marcaram época, fato comprovado pela ampla divulgação em inúmeras línguas ou nacionalidades, cuja repercussão também ocorreu aqui no Brasil. Phineas tornou-se, por assim dizer, um paradigma no entendimento de que lesões cerebrais, notadamente em suas áreas frontais, seriam determinantes no comprometimento das emoções e do comportamento, por vezes e ao mesmo tempo na preservação de funções consideradas como da área cognitiva. Ele terminou falecendo aos 38 anos depois de uma série de crises epilépticas 1. 

O segundo caso, de menor repercussão, foi de um homem de 30 anos – Elliott - que em razão de um tumor cerebral (meningioma), foi submetido a uma intervenção neurocirúrgica. A operação foi exitosa e o paciente recuperou, aparentemente, todas suas capacidades mentais e físicas.

Porém, depois de algum tempo, Elliott não era mais o mesmo. Antes  responsável, confiável e capaz de gerir ou administrar negócios e empreendimentos, tornou-se desadaptado, irresponsável e inadequado, além de incapaz de realizar suas atividades com o devido discernimento. Em consequência, perdeu seu emprego e logo outros a seguir em face de seu comportamento.

Mais adiante a esposa pediu divórcio, Elliott casou-se e se divorciou novamente. Sua vida, depois da cirurgia, foi um fracasso após o outro em praticamente todas as áreas de funcionamento. Os médicos, na época, opinaram que os problemas de Elliott seriam resolvidos com psicoterapia, já que suas dificuldades eram originadas em sua má vontade ou decorrentes de simulação 1,3. Por conta desse entendimento foi-lhe negado o auxílio-doença, logo a ele que não conseguia exercer atividades. 

  Damásio discordou e resolveu investigar mais esse paciente, submetendo-o a inúmeros testes de inteligência, de personalidade e de comportamento, além de outros testes mais complexos que avaliaram a memória e a atenção. O surpreendente é que ele obteve resultados excelentes, suas capacidades intelectuais pareceram intactas e seu cérebro funcional. De posse dos resultados, Damásio questionou a si próprio: “Que mistério é este no qual esse homem, dotado de inteligência indubitavelmente superior, podia comportar-se na vida de maneira tão estúpida?”    

            Então, presumiu que poderia tratar-se de um problema no manejo das emoções. Para tentar comprovar essa sua presunção, submeteu o paciente a novos testes, agora representados por imagens de catástrofes naturais e acidentes, os quais sabidamente haviam provocado fortes reações emocionais em pessoas anteriormente testadas. Ao final da testagem, o paciente referiu que as imagens não lhe provocaram tristeza, medo ou espanto, ou seja, não sofreu a mínima emoção. Ele compreendia intelectualmente o que era medo, alegria, tristeza, porém era incapaz de senti-los.

            Logo a seguir, Damásio submeteu-o a um teste com um tipo de polígrafo capaz de detectar a transpiração da pele (resultante de uma reação fisiológica que resulta das emoções) mediante as mesmas imagens desagradáveis. Segundo o polígrafo, o homem parecia não sentir absolutamente nada emocional.

            Concluiu Damásio que o paciente padecia de um déficit de percepção emotiva, a qual foi determinante das péssimas escolhas em sua vida diária depois da cirurgia que o havia privado de uma parte de seu cérebro, essencial para a percepção de emoções.  Pascal de Sutter, a propósito dessa constatação, afirmou: “Esta hipótese, em si mesma revolucionária, foi de encontro ao que nos ensinaram desde o nascimento: para fazer bem as coisas na vida não há que se escutarem as próprias emoções, mas sim guiarmo-nos pela razão” 3.                

            Damásio, dentre outros interessantes considerandos, apresentou uma série de argumentos anátomo-fisiológicos sobre a formação e processamento de imagens no cérebro e defendeu que nosso raciocínio é feito de sequências ordenadas de imagens. Esses dados apontam para uma íntima relação entre as estruturas cerebrais envolvidas na gênese e na expressão das emoções (sistema límbico) e áreas do córtex cerebral (córtex frontal) ligadas à tomada de decisões 5.

            Para Damásio, que inicialmente também fazia uma distinção clara entre emoções e razão, pensando que aquelas parasitavam nossa reflexão, depois de estudar inúmeros casos com pacientes cujos cérebros apresentavam lesões, causadas por acidentes ou intervenções cirúrgicas, concluiu que são as emoções que nos fazem únicos e é nosso comportamento emocional que nos diferencia dos demais. Tomaz e Giugliano, num ensaio sobre esse livro, reproduzem suas palavras: "A natureza e a extensão de nosso repertório de respostas emocionais não depende exclusivamente de nosso cérebro, mas da sua interação com o corpo, e das nossas próprias percepções do corpo” 6.  

            Damásio, em seu Erro de Descartes, introduziu a hipótese da existência de um  marcador somático – um dos principais argumentos do livro – e uma subsequente teoria a explicar que o efetivo comportamento social é verdadeiramente tão ou mais dependente dos sentimentos e das emoções do que as habilidades objetivas da razão 1.       

            Como chamariz (marketing), o tema central desse livro foi sua propositura de que houve um erro de Descartes ao dividir o ser humano em mente e corpo, com a tese filosófica de que o pensar era igual a ser, traduzido do francês “Je pense donc je suis” para o latim com a frase que ficou famosa: “Ego cogito, ergo sum”, ou “Ergo cogito, ergo sum” ou ainda “Cogito ergo sum”. Na língua francesa, o original foi escrito em 1637, e a tradução para o latim foi realizada em 1644, ou seja, sete anos depois 7.    

3.      Sobre Descartes.

            Em 1637 Descarte se decidiu em publicar três pequenos resumos de sua obra científica: A Dióptrica, Os Meteoros e A Geometria. Estes resumos, pouco lidos, foram acompanhados por um prefácio e este prefácio foi que se tornou famoso: Discurso  sobre o Método 8. As ideias ali contidas inseriram-se na intelectualidade ocidental quase como uma lei imutável ou indiscutível. Inúmeros filósofos e pensadores, ao longo dos tempos subsequentes, discutiram e polemizaram com esse seu pretenso pensamento sobre o predomínio do pensar (ou duvidar) sobre “a coisa extensa”, o físico ou corporal. Grande parte deles, possivelmente, não chegou a fazer uma leitura completa de sua obra, eis que a maior parte daquilo que foi passado adiante pelos séculos foi tão somente um prefácio que, como se sabe, anuncia brevemente o que será escrito ou divulgado a seguir.

            Examinando agora alguns textos críticos sobre o pensamento de Descartes,  consegui compreender que esse filósofo talvez não tenha feito, em realidade, uma distinção clara entre “corpo e espírito” como amplamente propalado e difundido no pensamento ocidental. De acordo com Ana Carolina Regner, Professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o exame detalhado de seus textos está a mostrar o quanto o pensador questionou a questão mente/corpo, visto que, anteriormente, havia se desiludido com seus professores que nada buscavam de diferente do que estava estabelecido. O que ele fez, na realidade, foi enfatizar a necessidade do “cogito”, ou seja, do duvidar e de colocar a razão para funcionar na distinção de fatos reais e crendices sem fundamentos 9. 

            Cabe, dentro das especulações aqui realizadas, tentar nos situarmos no tempo e analisar o contexto sociocultural em que Descartes estava envolvido. Princípios rígidos, notadamente religiosos, estavam muito presentes. Intelectual que era e muito participante do que ocorria pelo mundo de sua época, um pouco antes de divulgar uma obra de física na qual preparava os espíritos para conceber o movimento da terra sobre o sol, teve conhecimento da condenação de Galileu em 1633, suspendendo a divulgação. Como se sabe, Galileu foi obrigado a negar sua ideia de que a terra girava em torno do sol depois de ser submetido à visão de instrumentos de tortura. 

            Se pensarmos que o estabelecido era que o sol girava em torno da terra, nada mais fácil imaginar que Descartes – sabedor do contrário e tendo conhecimento do que ocorreu com Galileu – tentasse passar adiante o duvidar e a ênfase na razão, o “eu” ficando subtendido para não se comprometer demasiadamente. Naturalmente que esse entendimento é uma especulação de minha parte, embora existam dados históricos que possibilitem fazer tal ilação.      Devemos nos lembrar de que Sócrates enfatizou muito em seus discursos e aulas sobre a importância do “eu”, de sua postura na educação, na política ou na sociedade como um todo. Por isto foi considerado como um contestador e perigoso à sociedade grega de então. Julgado como subversivo, foi obrigado a ingerir um veneno que o levou à morte. A valorização do “eu” pode ser considerada, em algumas sociedades, em qualquer dimensão histórica, como algo impróprio ou inadmissível como mais adiante tentaremos ponderar, a medicina igualmente influenciada em seus conhecimentos por determinantes culturais, sociais, políticos e econômicos.    

            Autores portugueses fazem críticas contundentes sobre a maneira que Damásio reportou-se a Descartes. Eles mostram, com detalhes, o quanto Damásio cometeu incorreções ao basear-se em Descartes para fundamentar seu primeiro livro. 

            Por exemplo, Fonseca analisa a obra “O erro de Descartes” passo a passo, mostrando suas incongruências e deslizes. Identifica que o filósofo não esteve em questão e que Descartes foi usado meramente como um pretexto. Refere que o próprio Damásio considerou que o “penso, logo existo” como “talvez a mais famosa afirmação da história da filosofia”, porém deixou de levar em conta também os filósofos antecessores de Descartes que mencionaram essa frase e a justificaram, tais como Platão e Kant 10.

            De acordo com registros, o termo “Cogito ergo sun”, na verdade, foi proposto orginalmente por Sócrates, explicitado por Platão ao escrever acerca de discussão entre seu mestre e Mênon. Neste diálogo entre os dois, Sócrates solicita que Mênon chame um de seus servos para demonstrar que uma pessoa, sem qualquer conhecimento, é capaz de refletir a respeito de assuntos que ignorava existirem, como o Teorema de Pitágoras 11. Mais tarde, Aristóteles, em “Ética a Nicômaco”, por suas palavras, procurou registrar o entendimento proposto 7 :

            “Mas se a vida em si é boa e agradável (...) e se aquele que vê está consciente de que vê, quem ouve o que ouve, quem anda que anda, da mesma forma para todas as outras atividades humanas há uma faculdade que é consciente de seu exercício, de modo que sempre percebemos, estamos conscientes de que percebemos, e quando pensamos, estamos conscientes de que nós pensamos, e estar conscientes de que estamos percebendo ou pensando é estar consciente de que existimos”.                    

            Com Shakespeare, possivelmente aconteça algo semelhante em relação ao pinçamento de uma frase e descarte de seu conteúdo mais amplo: seu “To be or not to be” (Ser ou não ser), referenciado há muitos anos por pensadores, escritores e pela mídia, é tão somente uma frase de um verso bem mais completo (xo), que se reporta à dúvida na intensão suicida, a qual se estabelece por ocasião do enfrentamento de momentos difíceis na vida.         

            Como acontece com frequência na evolução do conhecimento, número expressivo de autores simplesmente reproduzem aquilo que lhes é mais acessível ou agradável aos ouvidos de outrem num determinado contexto cultural, deixando de examinar, de maneira mais aprofundada, a espinhosa leitura de textos mais completos, complexos ou especulativos. Em consequência, são capazes de difundir teses ou assertivas incompletas ou parcialmente assentadas na imparcialidade ou na verdade dos fatos em sua totalidade. Eu mesmo já presenciei isto em algumas pesquisas, reproduções incorretas por absoluta falta de honestidade de ir adiante, de questionar, de ir à busca de informações mais corretas ou coerentes com a realidade daquilo que se estuda.

            A própria história da Medicina possui muitos exemplos sobre isso. Quem quiser verificar, em qualquer faculdade de medicina do mundo ocidental haverá de encontrar, em suas bibliotecas, teses de doutorado demonstrando os efeitos deletérios da masturbação, elaboradas entre os as décadas de 40-50. Ao que parece, reproduções de um determinado conhecimento, mesmo que pouco elucidado, como se fosse uma moda, deve ser apresentado e reapresentado em locais acadêmicos ou em outras instâncias científicas. No momento atual, como exemplo, duas entidades estão na moda: o transtorno bipolar e o de déficit de atenção/hiperatividade, os quais ocupam espaço prevalecente na “mídia psiquiátrica”.

            Por outro lado, como a realidade está a mostrar, parece existirem temas que não podem ou não devem ser reconhecidos, como os traumatismos craniencefálicos em suas consequências.

4. O reencontro com Damásio:

O reencontro com Damásio surgiu graças ao livro mencionado na introdução deste artigo uma vez incluído na modernidade entre os estudos sobre a mente. Através dele fui à busca de outros pronunciamentos desse estudioso e cheguei ao conhecimento de outro livro de sua autoria “O sentimento de Si: o corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência”.

Neste livro mais recente, Damásio mostra que ao tempo do “Erro de Descartes” ele havia compreendido como funcionam as emoções e que julgava entender, em parte, como funciona o sentimento do ponto de vista neurobiológico. Porém, não conseguia compreender como é que sei que tenho uma emoção ou sentimento, e que isso lhe parecia ser um problema crítico. 

No “O sentimento de Si” ele se reporta à consciência que temos de nosso existir e desenvolve a ideia original de que as emoções fazem parte de um grande sistema de regulação biológica e que este sistema está intimamente ligado à emergência da consciência 2.  

Ele enfatiza, ao mostrar sua concepção de “mente”, que se trata de uma coleção de processos biológicos e, “dado que esses processos são físicos, a mente é necessariamente um processo físico. Mas é preciso pensar que a física desses processos biológicos não é similar à física corrente. Ter uma mente em funcionamento não é o mesmo do que ter um pedaço de mármore. Um dos grandes problemas que as pessoas têm é que quando pensam em matéria, quando pensam em qualquer coisa de físico, a imagem a que recorrem é a do cimento, da parede, da pedra, do pedaço de metal. E é evidente que o processo mental – é um processo, note-se, um constante desenrolar de acontecimentos, e não uma coisa – não pode ser concebido como esse tipo de matériaIbid.  

Outra importante contribuição de Damásio neste novo livro diz respeito ao seu entendimento sobre a perspectiva de que a primeira pessoa não é susceptível de ser cientificamente abordada. Afirma ele (é um parágrafo longo, porém vale a pena transcrevê-lo e lê-lo): “Julgo que tudo depende da perspectiva (...). Não há dúvida que a nossa mente e que a consciência são fenômenos privados e internos. Isto é perfeitamente compatível com uma ligação entre esses fenômenos de primeira pessoa e os de terceira pessoa que decorrem da nossa observação de comportamentos. O que é preciso é manter uma visão dupla dos fenômenos – aquilo que é interior e aquilo que é exterior. Mas o fato é que eles estão ligados. Tudo aquilo que você tem do ponto de vista interior e que não é revelável ou visível para mim tem uma tradução, por vezes extremamente sutil, em fenômenos visíveis na perspectiva da terceira pessoa Ibid. 

Mais adiante ele prossegue: “Alguns desses fenômenos são comportamentais, outros podem revelar-se na análise de fenômenos que podemos fazer com um scanner ou um eletroencefalograma. Tudo isso são manifestações de uma outra coisa; mas não são a mesma coisa. Como digo várias vezes no livro, olhar para o encefalograma de uma pessoa que está a pensar um determinado pensamento é diferente de olhar para esse pensamento. Não podemos olhar para o pensamento, mas podemos olhar para uma manifestação que está correlacionada com ele. O grande desafio da ciência atual é fazer esta triangulação entre certos índices de funcionamento biológico, de certos comportamentos visíveis exteriormente, e essa outra coisa que é a primeira pessoa, que é a nossa própria experiência Ibid.            

5.      Reflexões:

Um ponto que devo assinalar diz respeito ao entendimento do que seria o “Ego” ou o “Ergo” no tempo de Descartes. As palavras francesas no original “Puisque je doute, je pense; puisque je pense, j`existe” foram traduzidas para o latim, o que séculos mais tarde também ocorreu com a obra de Freud. Cabe questionar qual o significado para Descartes desse “Ego” ou “Ergo” que subtraiu o “Je”.

Cabe lembrar que o “Eu” freudiano, em sua origem na palavra alemã, possuía o significado de “Eu”, um construto relacionado intimamente com as minhas coisas, minha intimidade, meu existir enquanto construção psicossocial individualizada. Tal intimidade na palavra e em sua concepção foi perdida depois que o “Eu” foi transformado em “Ego”, algo hipotético entre o eu (pessoa) e os instintos e o mundo. Nessa transformação, a psicanálise freudiana perdeu suas vinculações com a humanidade inerente do existir, necessitando, posteriormente, de tentativas de reencontro do “eu” pela introdução do “self” de Kohut.

Muitos pensadores ou filósofos, como Nietzsche, Kierkegaard e Husserl tentaram desvendar o significado do “ego” cartesiano, admitindo uma omissão nele enquanto sujeito ao pensar. Ao desaparecer o “eu” e transformado em “ego”, a própria consciência do existir, pessoa, ficou restrita ao pensar. Por exemplo, Kierkegaard  argumentou que o “cogito” já pressupõe a existência do “eu” 7 e Husserl, com sua fenomenologia, argumentou que o correto não era “penso, logo existo”, mas “eu penso o pensado”, colocando a primazia no sujeito que existe e que, por isso, pensa.              

            Até nossos dias ainda paira muita confusão na literatura, tanto técnica quanto leiga, sobre os significados de “Eu” e de “Ego”, alguns estudos, comentários e ensaios colocando essas palavras como sinônimas. Quem tiver interesse pode especular e verificar por si mesmo quanta distorção é cometida, uma vez não haver uma definição dos seus significados, os quais mudam na dependência de qual teoria os fundamenta.  

            Outro ponto de interesse a ser considerado nesta leitura é o entendimento do significado das palavras “mente”, “espírito”, “alma”. Novamente cabe lembrar que Freud criou a “psicanálise” (análise da alma), partindo do significado da palavra “psique” (latino ou grego) = alma, espírito, borboleta, algo inefável, mostrando com isso a delicadeza com que deve ser tratada. Porém, ao ser traduzido do alemão para sua versão inglesa, a alma foi transformada em “mente”, um órgão corporificado, muito distinto de sua origem inicial.

            Ao que parece, Freud, um homem perfeccionista na precisão das palavras e de seus significados, rendeu-se, por algum motivo ainda não bem entendido (talvez para que suas postulações teóricas fossem aceitas pela medicina), em permitir que seu pensamento original fosse modificado em profundidade ou em sua essência. São perguntas ou questionamentos que necessitam ser feitos dentro do contexto aqui estudado, pois fica evidente que, na transformação da alma em mente, as dúvidas que afligiram Descartes, séculos atrás com seu “cogito” - uma interrogação e não uma afirmação categórica de supremacia de uma parte sobre a outra – se fizeram presentes.  A medicina, tendo por base a experiência até nossos dias no mundo ocidental, como se sabe, não consegue admitir uma alma ou espírito a influenciar as atividades humanas, talvez, por isso, o construto “mente” tornou-se necessário para “compatibilizar” ideias “intragáveis” ou inadmissíveis e o latim usado como instrumento desse processo de desumanização.

            Damásio foi claro ao mostrar que a distinção entre doenças do “cérebro” e da “mente”, entre problemas “neurológicos” e “psicológicos” ou “psiquiátricos”, constitui uma herança cultural infeliz que penetra na sociedade e na medicina. Reflete uma ignorância básica da relação entre o cérebro e a mente. As doenças do cérebro são vistas como tragédias que assolam as pessoas, as quais não podem ser culpadas pelo seu estado, enquanto as doenças da mente, especialmente aquelas que afetam a conduta e emoções, são vistas como inconveniências sociais nas quais os doentes têm muitas responsabilidades” 5.  

            De acordo com meu raciocínio, Damásio conseguiu agregar dois aspectos essenciais ao enfatizar a existência de perspectivas diferentes, representadas pelo “eu” enquanto pessoa – numa dimensão sempre existente – e o olhar sobre ela a partir da terceira pessoa. Aqui, é bom lembrar que, nos últimos tempos, somente essa última perspectiva tem sido valorizada, conflitando com entendimentos psicopatológicos clássicos representados por Jaspers, Minkowski, Binswanger, Bräutigam e muitos outros.

            Sobre isso, eis o que afirma Verztman: “O termo psicopatologia, outrora signo inquestionável da riqueza do contato entre os profissionais de saúde mental – sobretudo os psiquiatras – e seus pacientes, vem sendo alvo, nas últimas décadas, de grande empobrecimento semântico. O seu significado na maioria dos livros atuais de psiquiatria – o tratado de Kaplan e Sadock serve como paradigma desse empobrecimento – ficou restrito a um pequeno glossário de lista de sintomas com suas respectivas descrições sintéticas 13. 

            Damásio também conseguiu, com sua teoria, associar o conceito de mente a alma, uma vez entendido que essa última está representada no cérebro. Vale a pena ler o que disse Bräutigan, em 1964, como contraponto (naturalmente numa visão retrospectiva): “Um estudo ou investigação que se ocupa de psicoterapia cai necessariamente naquela desarmonia característica das ciências antropológicas. Tal desarmonia procede de que o homem pode ser considerado e estudado como um mero objeto da natureza ou como um Tu relacionado com um Eu; agora, a relação interpessoal do Eu e do Tu se afasta em muito de tudo o que pode ser considerado como científico14. 

            Fica aqui consignada a problemática das dificuldades encontradas para que as manifestações da alma possam ser entendidas como científicas. Nos últimos anos esforços ingentes tentam compatibilizar as descobertas da neurociência com os entendimentos psicológicos. Isto não tem sido fácil em face das enormes barreiras impostas por critérios “científicos” em aceitar as experiências humanas do existir.

            Por isto, as ideias de Damásio são relevantes e abrem muitas possibilidades para a integração sonhada e requerida em benefício da própria ciência sobre o ser humano. Dentro desse contexto, a medicina está exposta e necessitada de reformulações sobre seus conteúdos programáticos curriculares. Não cabe mais uma concepção do ser humano como um corpo sem alma, seus órgãos sendo estudados de maneira compartimentada.

            A alma, agora identificada como mente por Damásio, representada pela primeira pessoa ou “Eu”, com suas emoções, é fundamental para que nós possamos ter discernimentos adequados na vida, que inclui escolhas adequadas na multifacetada convivência social.          

           

6.      A definição de Lesão Traumática Cerebral:

Finalmente, segundo publicação no Archives of Physical Medicine and Rehabilitation, de novembro/2010, uma posição afirmativa foi tomada em nome do The Demographics and Clinical Assessment Working Group of the International  and Interagency Initiative toward Common Data Elements for Research on Traumatic Brain Injury and Psychological Health: a definição do que seja uma lesão traumática cerebral ou traumatismo craniencefálico (TCE).

Conforme a definição, “lesão traumática cerebral ou traumatismo craniencefálico é uma alteração na função cerebral, ou outra evidência de patologia cerebral, causada por uma força externa”.

Segundo Menon e cols., há muito se fazia necessária uma definição clara e concisa de TCE, fundamental para registro, comparação e interpretação de estudos. Além disso, alterações nos padrões epidemiológicos, aumento no reconhecimento dos significados dos TCE, melhor compreensão das sutis deficiências neurocognitivas e neuroafetivas que podem resultar dessas lesões resultarão em melhor acurácia   diagnóstica nessas situações 15. 

Exemplo da importância dessa definição pode ser vista no artigo de Whelan-Goodinson e cols. que chamam a atenção para os preditores de transtornos psiquiátricos que ocorrem depois de um TCE. De acordo com eles, uma história psiquiátrica é fator de alto-risco de manter o mesmo transtorno pós-traumatismo. Entretanto, a maior parte dos casos de depressão e ansiedade é recente, sugerindo que fatores significativos outros que não relacionados ao status psiquiátrico prévio contribuem na recuperação pós-TCE 16.  

Os traumatismos craniencefálicos e suas consequências, notadamente as emocionais e/ou comportamentais, por motivos que ignorava até então, há muito têm sido desprezados ou relegados a segundo plano pela medicina internacional; não se trata de uma realidade apenas brasileira. De acordo com Mattos e cols., “cerca de 50 a 75 % dos indivíduos que sofreram TCE apresentam sintomas cognitivos e comportamentais que estão presentes em seguimentos de até 15 anos; apesar disso, há grande desconhecimento das sequelas dos TCE – inclusive entre peritos, conforme a literatura17.

Segundo Anderson, assim como mais soldados sofrem traumatismos craniencefálicos leves nas funções militares, há um grande incentivo em desenvolver guias clínicos práticos para o tratamento de concussões. De acordo com esse autor, já existe um guia patrocinado pelo Departamento de Veteranos e publicado no Journal of Rehabilitation Research and Development incluindo tabelas e algoritmos que encaminham os usuários para a sua identificação, tratamento e manejo 18.      

O que causa espanto é que publicações, especialmente depois da década de 90, demonstrado as graves consequências dos TCE permaneçam indiferentes aos médicos, embora alguns movimentos, como expostos acima, registrem reconhecimento e inovações.    

7.      Conclusão:

A questão mente-corpo remonta os primórdios da cultura grega e, ao que parece, sempre foi difícil manejar seus conceitos e concepções. A filosofia, com seus filósofos, ocupou-se muito em tentativas de elucidá-la.

Dentro da questão, o “eu”, sujeito, pessoa, talvez tenha sido o principal ponto de dúvida e de discórdia. Em substância, o “eu” inclui a alma, o espírito, as emoções. Há indícios de que esse “eu” não tenha sido aceito em determinados momentos históricos por questões culturais, políticas e médicas.

Numa tentativa de absorver esse “eu”, negando-o ao mesmo tempo, surge o “Ego”, um construto neutro e neutralizante. A tradução ao latim ocorreu com Descartes em 1644 e, séculos mais tarde, com Freud. Penso que isso é muito significativo, pois aí se instala a despersonalização. Da mesma maneira a “alma” freudiana também desaparece – com todo o seu significado – quando traduzida ao inglês como “mente”. Talvez, em ambos os momentos históricos, tenha havido o consenso de que essa transformação era necessária para que as ideias pudessem ser levadas adiante.

Porém, agora, depois desse estudo, passo a compreender que as dificuldades para que a medicina aceite o papel das emoções surgiu dessas neutralizações, motivadas desde então pela impossibilidade de integrá-las dentro de parâmetros “científicos”.

Não é por nada que os médicos trabalhem com conceitos dualistas e nem Descartes foi seu mentor. A herança adquirida, que faz a distinção entre “cérebro” e “mente”, entre “orgânico” e “psíquico”, entre “neurológico” e “psicológico” ou “psiquiátrico”, encontra-se arraigada na mentalidade ocidental. O que impressiona é que os neurologistas e neurocirurgiões, os quais lidam diariamente com personalidades fragmentadas por traumatismos craniencefálicos, permaneçam em silencio sobre tais situações. Por outro lado, os psiquiatras fazem de conta que tais casos não existem e deixam de acompanhá-los em suas desditas.

Como visto, somente agora, ao final de 2009/2010, houve um consenso sobre a definição do que seja um traumatismo craniencefálico (TCE) e a implantação de guias para a identificação, diagnóstico e tratamento das concussões. Isto está a comprovar as enormes dificuldades encontradas para que tais conclusões tenham ocorrido, fruto do descaso e da desconsideração de seus efeitos (deve ser compreendido que tais guias já haviam sido escritas pela Associação Americana de Neurologia em 1997, mostrando, mais uma vez, o quanto de desinformação existe entre os médicos.   

Vejam nos últimos congressos de psiquiatria quantas mesas ou outros tipos de encontros científicos programados contemplaram os TCE, comparem com aquelas que discutem os transtornos bipolares e/ou os transtornos de déficit de atenção/hiperatividade.

Agora, com Damásio, surge uma esperança de integração. Com ele a mente engloba a alma, as emoções, e ela também é capaz de ser estudada, considerada e, sobretudo, fundamental para a convivência adequada do ser humano. A visão externa, da terceira pessoa, possui sua validade, porém não é o único caminho a tentar elucidar os passos das pessoas ou de suas dificuldades enquanto enfermas.

Esta junção é formidável se pensarmos que a avaliação psiquiátrica feita por alguém, na terceira pessoa, é tão somente uma parte do todo e jamais explicará o que ocorre com a pessoa num determinado tempo clínico ou pericial.                   

8.      Referências:

1.      WILLIAMSEN, K. Emotions and social intelligence: Jane Braaten and Antonio Damasio. Gustavus Philosophy Department Home Page. Available at http://gustavus.edu/philosophy/kaaren.html. Acessado em 07/02/2011.    

2.      DESIDÉRIO, M. A consciência do corpo. Entrevista a António Damásio. Disponível em http://criticanarede.com/html/entr_damasio.html. Acessado em 08/02/2011.

3.      PASCAL de SUTTER. No hay razón sin emociones. In: Meyer, Catherine. Los nuevos psi. Buenos Aires: Sudamericana, 2010. 612p.  

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