Volume 15 - 2010
Editor: Giovanni Torello

 

Dezembro de 2010 - Vol.15 - Nº 12

Psicanálise em debate

MARIO MONICELLI E O DIREITO DE MORRER

Sérgio Telles *
psicanalista e escritor

Aos 95 anos, sofrendo de câncer de próstata de longa evolução, Monicelli deu cabo de sua própria vida, saltando da janela do quinto andar do hospital onde estava internado.

Um dos mais bem sucedidos cineastas italianos, Mario Monicelli teve uma carreira extraordinária. Ao longo de sessenta anos dirigiu quase 70 filmes e escreveu igual numero de roteiros, com os quais obteve pleno reconhecimento do público e da critica. Foi premiado nos festivais de Veneza, Berlim e Cannes, e quatro vezes foi indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro.

Temos todos uma dívida de gratidão com um artista deste porte, pois em algum momento de nossas vidas topamos com uma de suas obras e elas nos ajudaram a compreender melhor a nós mesmos, aos outros e o próprio mundo que nos cerca. Quando um deles se mata, como ocorre agora com Monicelli, num primeiro instante, ficamos na dúvida se este gesto contradiz a vida rica e produtiva que levou ou se a confirma plenamente.

Somos forçados a pensar sobre o suicídio. Convencionalmente abordado pelo ângulo religioso (a vida é um dom de Deus e somente ele pode retirá-la) ou filosófico (qual o sentido da vida, por que nos apegamos tanto a ela se vamos todos morrer um dia), a ciência psiquiátrica mostra que, na imensa maioria dos casos, o suicídio não é um pecado nem uma decisão existencial e, sim, um sintoma de severas perturbações mentais. Nesta mesma linha, a psicanálise ensina que o suicida está identificado com um objeto amoroso odiado que pretende matar. Por não conseguir discriminar-se do objeto de seu ódio, termina por descarregar sobre si mesmo sua destrutividade.

Apesar de sabermos que seu pai matou-se em 1946, o suicídio de Monicelli não parece decorrência de uma doença, de uma identificação com objetos internos destruídos que o fizessem desprezar a existência. Deu provas cabais de amor à vida na forma como exerceu sua grande produtividade e criatividade artísticas.   Seu suicídio é um despedir-se de uma condição insuportável, é o reconhecimento das limitações e impedimentos irreversíveis trazidos pela idade avançada e pela doença maligna em estado terminal. Seu gesto revela respeito pela vida, a não aceitação que ela se degrade a um doloroso e sofrido sobreviver biológico, despido de toda humanidade. 

É lamentável que o preconceito e a ignorância façam com que uma decisão corajosa e lúcida como a de Monicelli não encontre ainda o necessário respaldo social e alguém como ele tenha de concretizá-la de forma pública e em clima de escândalo, quando poderia ser realizada na intimidade, com a presença e o conforto dos entes queridos, com a ajuda de um médico que lhe desse a dose letal indicada.

Foi o que aconteceu com Freud.  Havia ele pedido que seu médico Max Schur o ajudasse a morrer quando não mais tolerasse o câncer no palato que lhe obrigara a fazer mais de trinta intervenções cirúrgicas. Aos 83 anos, num determinado momento, Freud disse para Schur: “Agora é só uma tortura sem sentido”. Com o conhecimento de sua filha Anna, o médico lhe aplicou a morfina necessária para libertá-lo. 

Estamos falando do direito de morrer num suicídio assistido por médicos, uma forma de contornar a proibição da eutanásia, vigente ainda no mundo inteiro. É compreensível que tais procedimentos suscitem muitas resistências irracionais e racionais. Das irracionais, a maior é o obscurantismo religioso. As racionais decorrem do conhecimento da natureza ambígua do ser humano, corruptível e capaz de perverter suas melhores obras, o que faz com que se imponha uma cuidadosa legislação que impeça as distorções e desvios aos quais eles poderiam dar ensejo. Basta pensar no que resultaria do encontro de médicos inescrupulosos com herdeiros apressados.

Apesar de tudo, há movimentos no sentido de uma maior compreensão e aceitação destas práticas. Cabe aqui lembrar e homenagear a luta de Jack Kervokian, o médico norte-americano ativista da causa, que paga caro sua ousadia, enfrentando processos legais que lhe tiraram o direito de exercer a profissão e, posteriormente, colocaram-no na prisão, onde cumpriu parte da pena de 25 anos pela acusação de homicídio.

Mais recentemente o grupo Dignitas, sediado na Suíça, mesmo enfrentando a oposição de alguns, mantém seu objetivo de ajudar doentes terminais que desejam abreviar o inevitável desenlace.

Nos Estados Unidos, o grupo “Aging with Dignity” (“Envelhecendo com dignidade”), que conta com o poderoso apoio da American Bar Association (o equivalente de nossa OAB) e de outras importantes instituições, tem divulgado um documento chamado “Five Wishes” (“Cinco desejos”), no qual o sujeito especifica como quer ser tratado numa situação terminal. Tal documento tem peso legal em vários estados norte-americanos, foi traduzido em 26 línguas (e em Braille) e teve 14 milhões de exemplares distribuídos ao redor do mundo.  

Aqui no Brasil, semana passada, a Justiça Federal liberou a ortotanásia, procedimento médico que consiste na suspensão de tratamentos invasivos que prolonguem a vida de pacientes em estado terminal. É um importante avanço na discussão desta questão. 

Lutemos para que, na versão futura da Declaração dos Direitos do Homem, esteja-nos assegurado o direito de morrer quando a vida se transforma na “tortura sem sentido” referida por Freud.

 


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