Volume 15 - 2010
Editor: Giovanni Torello

 

Setembro de 2010 - Vol.15 - Nº 9

Psicologia Clínica

ADOECIMENTO PSÍQUICO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE MENTAL: CONSEQUÊNCIA DO TRABALHO EM SI OU DA DETERIORAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Braz Werneck
Mestre em Psicologia (UFRJ)
Terapeuta Cognitivo-Comportamental

Introdução

A proposta deste texto é alimentar uma reflexão sobre a real condição do trabalho como causador de doenças mentais. O objetivo é de estabelecer uma discussão sobre a importância das relações deterioradas ou perversas de trabalho como fatores para o adoecimento psicológico dos profissionais de saúde mental.

            Para que se faça uma relação específica entre as relações de trabalho, o próprio trabalho, em sua organização e em suas condições, e o adoecimento psíquico de profissionais de saúde mental, devemos, antes, tecer alguns comentários gerais.

            É necessário que se faça uma relação entre o trabalho e a doença mental. Este assunto vem sendo exaustivamente estudado e apresenta produções contundentes e coerentes, em termos de realidade brasileira.

            A proposta que aqui se faz é de que, a partir de uma reflexão sobre a possibilidade de o trabalho funcionar como causa de adoecimento psíquico ou sofrimento psicológico contraproducente, possamos discutir a hipótese de que são as relações de trabalho e não o trabalho em si, os mais contundentes fatores para grande parte do adoecimento psíquico dos profissionais de saúde mental.

            Passamos a uma discussão sobre a dificuldade de se observar uma relação perversa ou adoecida, e sobre a possibilidade de que o Método Fenomenológico, proposto por Husserl possa servir ao processo de identificação de tais relações e ao posterior tratamento adequado.  

 

Trabalho ou relações de trabalho como causa de transtornos mentais?

A partir de uma perspectiva focada nas relações humanas, sustentada pelo método fenomenológico proposto por Husserl, podemos tecer algumas considerações sobre o trabalho e suas influencias no adoecer psíquico.

            Partimos do pressuposto de que o homem seja um ser relacional e social. Propomos, ainda, com base nas ideias de Jardim, uma relação oficial entre o ser humano como ser social e o trabalho. Em outras palavras, falamos sobre a função social do trabalho.

            Como complemento da função social do trabalho, propomos a função existencial. A partir das palavras de João Ferreira Filho, sobre algumas ideias de Hegel, trazemos uma reflexão sobre a manutenção voluntária de relações de trabalho notoriamente adoecidas.

            A partir de reflexões acerca da função social que o trabalho também exerce, pode-se chegar às relações que o trabalho mantém com a saúde do indivíduo. Cabe aí, então, a reflexão sobre a possibilidade de que o trabalho figure como fator de causa para a doença mental.

            A hipótese que erigimos aqui, não é de que o trabalho cause a doença mental, mas, no caso dos profissionais de saúde mental, as relações deterioradas, inadequadas, ou mesmo perversas; relações de qualquer forma adoecidas sejam, essas sim, a causa de uma ampla gama de adoecimentos psicológicos que se manifestam no ambiente de trabalho.

            Para esta hipótese, uma das grandes dificuldades é ressaltada por Jardim, quando cita a CID X e o DSM IV, ao dizer que as condições de trabalho raramente são citadas como determinantes do adoecimento e quando tal relação é estabelecida pelo diagnóstico, a dimensão privilegiada é de causação biológica.

            Para situarmos as relações de trabalho como causadoras de adoecimento psíquico, devemos considerar logo de início o trabalho em suas implicações socioculturais. Nas palavras de Jardim:

 

O trabalho com certeza é um mediador de vinculação social. Entretanto, como pode aquilo que serve para integrar servir para desintegrar, adoecendo o corpo e a alma dos trabalhadores? O máximo desse paradoxo é o sofrimento produzido pela falta do trabalho ou do emprego – aquilo que todos os dependentes de salário (...) são obrigados a procurar, mesmo quando há escassez de postos de trabalho.

 

                Este trecho serve para uma reflexão sobre a relação geral do trabalho com as articulações sociais e culturais. Mas serve também para nos estimular a caminhar em outra direção. Neste ponto, citado acima, a autora trata das relações do trabalhador com o trabalho, propondo uma investigação sobre os mecanismos que levariam o trabalho a causar a doença mental. Nossa proposta, entretanto, é outra: a de que as relações perversas, causadas por uma administração despreocupada com fatores relacionais (principalmente no que diz respeito à formação de líderes), muitas vezes presentes em ambientes de trabalho, como propulsoras de irrupções de doenças psicológicas das mais variadas.

            Além disso, podemos ainda refletir sobre a importância que é dada pelo homem ao trabalho. Como deveremos lidar com relações atravessadas pela ambiguidade, pela falta de critérios e de equanimidade muitas vezes experimentadas no ambiente de trabalho em saúde mental?

            Em tese, seria possível não adoecermos com esse tipo de relações estabelecidas, quase sempre, à nossa revelia, posto que tenhamos sempre códigos internos que garantam justiça e um ambiente de trabalho suficientemente bom. Já que estamos em um país livre, ninguém tem o direito de subjugar ninguém, pois, se isso acontece, as regras estabelecidas em uma instituição devem seguir os pressupostos de igualdade com os quais nossa democracia nos glorifica.

            Entretanto, parece que as coisas não funcionam bem assim. O trabalho está tão arraigado à existência humana que uma corrupção das expectativas ou uma deterioração do ambiente de trabalho pode trazer consequências terríveis e ainda assim inevitáveis. Nas palavras de João Ferreira filho:

 

O que se impõe, inicialmente, é a igualdade que Hegel instaura entre linguagem e trabalho como dicção da própria identidade, como passagem ao outro, como transformação desse outro e de eu mesmo nesse outro, enfim, como luta contra a morte pelo jogo de certa permanência feita de distância e de transposição. Assim, o trablho é linguagem, pois é uma forma de revelar-se e, inversamente, a linguagem também é trabalho, pois é uma transformação da língua sobre a língua e, por isso, comunicação. Essa é a razão pela qual, para Hegel, privar o homem de trabalho, assim como privá-lo da fala, é arrancá-lo do conhecimento que comanda a consciência, é negar-lhe o direito de distanciar-se de certo modo em relação à morte. (2007. P. 163).

 

            Caso consideremos estas palavras, podemos legitimar a manutenção das relações de trabalho, mesmo que sejam relações reconhecidamente adoecidas e perversas. O trabalho, pode-se dizer, confere ao homem um lugar de existente, como membro produtivo da sociedade. Muitas vezes é mais difícil romper com essa relação e buscar uma relação mais digna, mas vivenciando um tempo indeterminado de limbo existencial, do que manter as relações conturbadas, com pessoas doentes, em instituições doentes, mas que podem conferir o lugar de grande lutador a quem sofre. O orgulho de viver uma batalha inglória e de se ver como vítima das situações inexoráveis é mais comum no ser humano do que possa parecer.

 

As relações perversas e/ou adoecidas no trabalho

Parece-nos que as relações perversas são, grande parte das vezes, justificadas pela necessidade de produtividade e pela competitividade do modo de produção capitalista. Segundo Werneck Filho (2010):

 

Caso se trabalhe com maior preocupação com o bem-estar e a boa condição do ser humano envolvido na produção, será possível atingir metas tão difíceis que muitas vezes a competitividade exige?

 

            A partir de tal dificuldade, é possível que se chegue a uma complicação ainda maior observada nas instituições de saúde mental. A dificuldade no esclarecimento das funções. As instituições de saúde mental não passam da mesma forma pelas mazelas capitalistas citadas acima, no que diz respeito à produtividade e ao valor humano. É muito comum, no discurso dos líderes institucionais, encontrarmos palavras de ordem como respeito, saúde e crítica. O que acontece, entretanto, pode ser bem diferente do que se propõe. Observamos, muitas vezes, um ambiente permeado por situações que beiram o assédio moral.

            De acordo com nossa experiência, as relações ambíguas e aquelas que demonstram que os funcionários, muitas vezes, são obrigados a passar por situações vexatórias (como constrangimento por exigir o salário em dia; constrangimento por expressar opiniões diferentes etc.).

            As relações perversas, geralmente são relações implosivas e corrosivas, mas silenciosas e discretas. Poucas testemunhas acompanham, e quando acompanham, acabam por serem engolidas pelo jogo. As condições de trabalho ambíguas, que nem afirmam nem negam seus pressupostos e suas regras, são um fator crucial para um ambiente que origine relações perversas.

            A maior dificuldade estaria na identificação de uma relação perversa, do mesmo modo que é muito difícil flagrar um assediador moral. Há que se utilizar um método que possa transformar a instersubjetividade em dados observáveis.

            Defendemos que as condições e a organização do trabalho devam ser especificas para cada área de produção, seja produção de bens materiais, seja produção de saúde. Segundo Seligmann-Silva:

 

As condições físicas, químicas e biológicas vinculadas à execução do trabalho – há muito reconhecidas na vertente orgânica da patogenia de numerosas doenças – também interferem nos processos mentais e, portanto, nas dinâmicas relacionadas à saúde mental. (2000)

 

            Para o caso de instituições de saúde mental, não devem ser respeitadas apenas as condições citadas acima, mas também as condições relacionais e estruturais devem ser ótimas para que o trabalho seja agregador e organizador de subjetividades.

            Um dos maiores problemas da proposta das relações perversas de trabalho como causadoras de transtornos mentais reside na dificuldade de que sejam observadas e documentadas o que chamamos aqui de relações perversas. Ainda de acordo com Seligmann-Silva:

 

O espaço da subjetividade não é, como se afirmou por muito tempo, uma “caixa-preta” cujos processos são inacessíveis à análise. Por outro lado, não são, de fato, nem imediatamente visíveis, como uma lesão dermatológica, nem objetiváveis e sua inteireza por intermédio de um tomógrafo ou equipamento similar. Eles se expressam de maneiras peculiares e diversificadas, de modo a tornar necessária uma “leitura” bastante especial.

 

 

                Sendo assim, torna-se uma tarefa muito difícil a identificação de relações. Entretanto, com base no Método Fenomenológico proposto por Husserl, e citado no início deste trabalho, podemos caminhar no sentido de uma apreensão das essências das relações entre as pessoas. Nas palavras de Werneck Filho (2009);

 

A preocupação do pensamento fenomenológico, mais precisamente do pensamento husserliano está em como estabelecer de maneira inequívoca o conhecimento. Husserl propõe para a Filosofia uma atitude radicalmente crítica, em que, para que algo seja admitido, exige-se que se mostre com toda a sua evidência. Entretanto, não é uma evidência determinada pelos fatos, mas pelo que realmente caracteriza as coisas mesmas, ou seja, as essências. Deve ser ressaltada, portanto, a diferença crucial entre a Fenomenologia de Husserl e uma concepção empirista, uma preocupação científica factual. Husserl propõe a Fenomenologia como ciência eidética (das essências). Essa proposta torna a Fenomenologia uma área específica do conhecimento.  Para que se atinja o objetivo de captar a essência dos fenômenos, deve ser feita a chamada de redução eidética. A questão entre busca das essências e busca dos fatos é um importante fator de diferenciação da Fenomenologia.

           

            Como fonte mais fidedigna, devemos consultar o próprio Husserl, que trata com maestria da possibilidade de que um processo subjetivo seja analisado, à luz da Fenomenologia, para ser avaliado de forma objetiva:

 

... a Fenomenologia pura, transcendental, não será fundada como ciência de fatos, mas como ciência de essências (como ciência “eidética”); como uma ciência que pretende estabelecer exclusivamente “conhecimentos de essência” e de modo algum “fatos”. A redução aqui em questão, que leva do fenômeno psicológico à “essência” pura ou, no pensamento judicante, da universalidade fática (“empírica”) à universalidade de essência é a redução eidética. (2006; p. 28).

 

            Assim sendo, a nossa proposta última é de que o Método Fenomenológico pode  ajudar a estabelecer uma reflexão produtiva acerca das relações de trabalho e a origem dos transtornos mentais, manifestos no trabalho. Com isso, poderemos futuramente, defender a ideia de que as relações perversas do ambiente de trabalho, no caso de instituições de saúde mental, podem ser as maiores causas de adoecimento psíquico dos profissionais.

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

Aaron, R. O Marxismo de Marx. São Paulo: ARX, 2008.

Filho, J. F. S. (org.) Psicopatologia Hoje. Rio de Janeiro: contra capa, 2007.

Husserl, E. Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia fenomenológica: uma introdução geral à Fenomenologia pura. Aparecida do Norte: Ideias e Letras, 2006.

Jardim, S. Trabalho e Doença Mental (texto avulso).

________ Glina, D. M. R. O diagnóstico dos transtornos mentais no trabalho (texto avulso).

Seligmann-Silva - Psicopatologia e psicodinâmica no trabalho (texto avulso).

Werneck Filho, B. D. Psicopatologia Fenomenológica: a clínica como componente essencial para a política da Saúde Mental (2009) http://www.polbr.med.br/ano09/pcl1009.php

 


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