A separação entre as duas medicinas é inevitável?
O que atualmente
percebemos é uma separação das duas medicinas. Ora, isto é péssimo para o exercício da
medicina porque as duas práticas mencionadas
são indispensáveis, embora sejam divergentes.Na realidade,a
clínica geral está se empobrecendo,
vive sob a dependência da medicina hipertécnica, a dos serviços hospitalares e dos
professores que neles trabalham. O médico hipertécnico tem a última palavra.
Isto significa que os generalistas não cuidam
dos pacientes?
Naturalmente, os
médicos generalistas continuam cuidando de pacientes, mas 80 % das pessoas que consultam-nos são
pseudo doentes! Isto é, o médico
generalista recebe pacientes com problemas que necessitam, antes de
tudo, conselhos dietéticos sobre a
maneira como devem viver, a necessidade de deixar de fumar,de fazer
exercícios, etc. A intervenção do médico generalista é frequentemente profilática. Como ocorre com pacientes que têm cifras
de hipertenão arterial elevadas mas não apresentam outros sintomas.
A medicina geral não seria uma ciência ?
Sim, é a ciência da
leitura dos sintomas.Não é uma ciência no sentido físico-matemático, mas uma
disciplina rigorosa que procura
tranquilizar os pseudo doentes
que somatizam, uma hermenêutica que seleciona estes doentes para
envia-los ao hipertécnico. Somatizar é algo muito sério, decriptar uma
somatização é uma verdadeira proeza que
exige muito talento. Imaginem, por exemplo, os distúrbios da vida
sexual. Para compreendê-los, é preciso conhecer a vida do doente, levá-lo a falar, escutá-lo. O hipertécnico
não se ocupa com isso, não precisa dos sentimentos do doente.
Uma comparação pode ser feita entre medicina
geral e psiquiatria?
Isto não é
possivel porque o médico generalista
não aprendeu a psiquiatria, é
impotente diante de um doente
psiquiátrico. Por exempo, uma mulher é hospitalizada por um delírio agudo,
rapidamente sedado por um tratamento neuroléptico; ele recebe alta ao fim de
duas semanas. Dias depois, é preciso hospitalisar seu marido, porque ele vai
bem quando sua mulher está doente e cai doente quando ela fica boa. É preciso
ser muito forte para designar como doente aquele que, aparentemente, está bem
de saúde. E considerar como sadio aquele que está com uma doença aguda! O generalista não possui os meios para
fazer esta estraordinária ginástica. Ele ocupa-se dos distúrbios e dos
funcionamentos. A medicina geral é uma ciência humana, como a psicanálise. Hoje, Freud é detestado,
embora seja um modelo para os generalistas.Esquecemos que ele foi um clínico
genial: inventou uma disciplina que ajuda a identificar sinais que não
tínhamos o hábito de levar em
conta. Por exemplo, eventualmente considerar como um
sintoma fundamental o atrazo de um paciente.Ainda mais, Freud mostrou que o
próprio médico já é um remédio.
Como formar os médicos generalistas?
O ensino deve
comportar as ciências humanas, como a sociologia, porque os doentes não são
separados do meio ambiente. Sobretudo, é preciso dar mais importância à
clínica. Tive a sorte de não começar meus estudos de medicina
numa faculdade, mas
numa escola de medicina.O essencial do ensino era feito por médicos da cidade
e não pelos grandes mestres da faculdade, que não se interessavam nem pelos
estudantes nem pelos doentes. Durante os dois primeiros anos de estudos, os
alunos iam todos os dias ao hospital. Os cursos teóricos eram feitos a
tarde.Cada estudante atendia tres ou quatro doentes ao dia. Mergulhávamos na
prática. Frequentemente,o chefe de serviço pedía para que explicássemos o que
havíamos notado.Em seguida, ele discutia
conosco.
Infelizmente, este
tipo de ensino desapareceu completamente. Desde o primeiro ano de medicina,os
estudantes são submetidos a uma inimaginável quantidade de noções físicas,
químicas, matemáticas, etc. Eles não
vêm um único doente, sendo imediatamente
uniformizados pela medicina hipertécnica. As provas para avaliar suas
capacidades e aptidões são de uma estupidez inenarrável.Parecem jogos
televisuais! Seu único interesse é o de poder rapidamente atribuir uma nota
aos alunos, sem levar em conta se eles são sensiveis às nuances, às
circunstâncias. A formação deles é unilateral, hipertécnica e, ainda pior,
terrorista ! Ela condiciona os médicos para o resto da vida. Por isto,
não é surpreendente que os jovens médicos prefiram não escolher a medicina
geral: eles só aprenderam a outra!Foram criados no cientifismo.
A separação entre as duas medicinas é tão
grande?
Digo mais uma vez
que as duas medicinas são indispensáveis, mas que elas estão separadas. A
síntese das duas parece-me dificil. Há efetivamente duas medicinas, a clínica
e a técnica. Os estudantes só são formados para a técnica. Ensinham-lhes
apenas rudimentos sobre o colóquio singular, a interpretação, a importância
da escuta, do palpar, do tocar. Ao se tornarem médicos, mesmo generalistas,
eles deixam de fazer isto, desprezam todos esses gestos, todos esses rituais
que só servem para mudar a relação com o paciente.
Existe uma
separação, um divórcio entre as duas concepções da medicina, separação que
prejudica a medicina clínica, que está muito longe de ser revalorisada.Por
sua vez, as medidas tomadas pelo governo são derrisórias.Esta dualidade da
medicina sempre existiu.Não é um mal recente, pensemos na dualidade
cirurgião-médico no Século XVIII, ou,
antes desta, na dualidade entre o médico e o farmacêutico, o médico e o
algebrista(pessoa que‘’restaurava ossos deslocados ou fraturados’’).
A atual separação é bem aceita?
Não! Esta
situação descontenta os dois tipos de
médicos. Eu encontro hipertécnicos muito traumatizados porque têm a impressão
de terem sido transformados em máquinas. Eles querem recobrar o relacional.
Felizmente, as associações de pacientes encorajam-nos a fazer isto. Existe
uma nova disciplina que pode reconciliar clínicos e técnicos : a biotécnica, isto é o exame das condutas,
do que podemos fazer ou não podemos fazer.A biotécnica é um terreno comum às duas medicinas, ela
coloca as duas em relação, permitindo-lhes de abordar, juntas, problemas
dificeis que devem resolver.Refiro-me aos inúmeros problemas que necessitam a
competência das duas medicinas. Por exemplo, sabendo-se que a jurisprudência
autorisa a interrupção médica da
gravidez quando a radiografia mostra que o feto não tem braços, será que a
futura mãe tem o direito de pedir a interrupção quando a imagem ecográfica
mostra que o embrião só tem um braço?
Os médicos mais
jovens estão satisfeitos com esta evolução porque ela permite o
reconhecimento e oferece a possibilidade de
encontrar os meios de atenuar a separação entra as duas medicinas.
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