Continuamos nosso despretencioso
périplo por documentos guardados no Museu do Instituto de Psiquiatria da UFRJ -
IPUB – no que tange às intervenções
terapêuticas d’antanho, englobando os trinta anos que antecederam a publicação
do livro do Professor Henrique Roxo.
Os primeiros registros de “prescrição médica”, datadas e assinadas por um “alienista”, ocorrem da virada do século XIX, antes dessa
época existia uma “anotação” na ficha do paciente que tanto poderia resultar de
ordem verbal passada por um médico e escrita pelo pessoal de enfermagem, como
de anotação do médico presente, psiquiatra ou não.
A partir de 1895, os livros
de registro de anamnéses de admissão na “Sessão
Teixeira Brandão” do Hospício Nacional bem como as prescrições e a evolução do
tratamento passaram a ser responsabilidade do “médico-alienista” que tratava o
doente. As “urgências’ eram anotadas no livro de ocorrências do médico de
plantão e que podia ser um clínico geral, dos plantonistas não se requeria a
“especialização de “neuro-psychiatras”. Pelo teor do
registro de ocorrências, tem-se a impressão que muitos eram “tisiologistas” ... A “Sessão Teixeira
Brandão” era parte do “Instituto de Psycopathologia”
que representava o pavilhão de triagem de todo o Hospício Nacional e persiste
até hoje como edifício-séde do IPUB.
É interessante que apenas após a chegada de um político –
Teixeira Brandão, primeiro “catedrático” de psiquiatria da então “capital
federal” foi senador da República durante vários mandatos – é que os
“registros”, os “prontuários” como os chamamos hoje, passaram a ser mantidos e
arquivados e, surpreendentemente, em grafia bem legível e português escorreito.
Os pacientes recém admitidos recebiam mais ou menos a mesma
prescrição: bicarbonato de sódio, sulfato de magnésio, tintura de casca de
laranja, purgativos variados, água de tília, brometo de potássio, extrato de tebaína e xarope de meimendro e o
objetivo visado também era comum: “desintoxicar” o organismo e sedar o
paciente. O sulfato de magnésio era o único que se usava por via venosa “por
suas propriedades calmantes”.
Digna de nota é a prescrição das “poções anti-epilépticas”
que resultam da associação de brometo de potássio, beladona e tebaína: brometos como medicação anti-convulsivante
é indicação pertinente; a beladona, usada por seus efeitos anti-espasmódicos e
como “calmante” na vigência de hipercinesia já é algo
estranho uma vez que, dependendo da dose, desencadeia convulsões e a tebaina – ou paramorfina – é francamente convulsivante.
A análise dessa “poção” é tarefa difícil pois não há indicação das
concentrações, das doses em que cada componente é empregado passando as impressão
que essa intervenção medicamentosa ficava em um “caldeirão de Asterix” e que
todos os envolvidos tinham pleno conhecimento de sua “milagrosa composição”.
Outra prescrição freqüente é constituída pelas pílulas de Ricard
que aparece em diversas “situações
diagnósticas” sem que haja qualquer especificação dobre seus componentes,
fica-se sem saber se era um “tônico’ ou um laxante ...
Já quando o paciente apresentava “exaltação psíquica” a
prescrição era o cloral hidratado - enemas – e
“papéis” de cânfora em pó ...
Vejamos algumas prescrições e
os quadros clínicos em que eram empregadas:
M.R.A., fem., 38 anos – Degeneração psíquica
Laxativo, brometo de potássio, hidrolato
de alface (chá de alface frio), água
de louro, Xarope de meimendro.
M.L.L., fem., 29 anos – Debilidade mental
Laxativo, julepo
gomoso, extrato de valeriana, Xarope de hortelã,
tintura de ópio.
A,J.C., masc., 26 anos – Alucinações visuais e auditivas
Laxativo, hifrolato
de alface, brometo de potássio, xarope de belladonna.
A.V.S., masc., 26 anos – Delírio parcial de perseguição
Laxativo, brometo de sódio e potássio, pílulas de belladonna, extrato de meimendro.
F.M.C., fem., 28 anos – Depressão psíquica
Laxativo, tintura de ópio, xarope de éter.
R.R.G., masc., 40 anos – Mania
Purgativo, sulfato de sódio, injeções de morfina, brometo de
sódio, tintura de belladonna.
Z.M.A., Fe., 25 anos – Histeria
Purgativo, valerianato de amônia.
J.S.R., masc.,
Purgativo, ergotina e digitálico, cloral hidratado, brometo de potássio.
J.M.G., masc., idade desconhecida – Abuso de bebidas alcoólicas
Laxativo, julepo
gomoso, extrato de ópio.
M.A.P., masc., 21 anos – Neurastenia
Purgativo, poção de ópio com almíscar (Styrax glabratum).
Os
exemplos acima foram retirados da terceira
página de cada dezena do registro de pacientes admitidos na “Sessão Teixeira
Brandão” no “ano da graça de Nosso Senhor de
Quando
utilizamos o livro de registros de pacientes da década seguinte - 1912 – e
selecionamos a oitava página de cada dezena esperando notáveis progressos,
deparamo-nos com os seguintes exemplos de “diretrizes” de tratamento seguindo
os diagnósticos da época:
PSICOSE PERIÓDICA
M.J.G.M.
– masc., 29 anos;
F.F.R. – masc., 25 anos
L.P. – masc. 49 anos
A.M.S. – fem., 35 anos
V.D.G. – masc., 23 anos
M.E.T - fem., 28 anos
Esquema
terapêutico proposto: LAXATIVOS, brometos, cloral hidratado,
sedativos fitoterápicos, veronal, morfina, tintura de
ópio.
Metade dos pacientes – 3 – recebeu
balneoterapia como “reforço” dessa “guide-line”
DEMÊNCIA
PRECOCE
J.B.O.C.
– masc., 24 anos
P.A.S.P. - masc., 25 anos
V.C.F. - masc., 17 anos
“Diretriz” para o tratamento: PURGATIVO, cápsulas de tireoidina, extrato ‘órgano-neuro-cerebral’
(opoterápicos), veronal,
tintura de ópio, balneoterapia.
HISTERIA
M.C.N. - fem., 30 anos
H.B.C. - fem.,
50 anos
M.S. - fem.
29 anos
T.A.C.M.- fem.,
25 anos
Tratamento ‘padrão’: PURGATIVO, xarope de codeína, xarope de
morfina, veronal.
CONFUSÃO
MENTAL
M.A.C. - fem., 45 anos
s/nome - masc.,
25 (?) anos
J.M.C. - masc.,
58 anos
“Algoritimo” terapêutico
pré-primeira guerra: PURGATIVO, excitantes do sistema nervoso
central – cafeína, óleo canforado –, cloreto e iodeto de cálcio.
CICLOTIMIA
A.R. - masc., 21 anos
Esquema terapêutico: PURGATIVO, opoterapia
tireóidea, cloral hidratado.
EXCITAÇÃO
MANÍACA
O.C.B. – masc.,
32 anos
M.E.E.A.
– fem., 38 anos
Tratamento: PURGATIVO, ópio (tintura, xarope), drágeas
de cloral hidratado, veronal.
PARALISIA
GERAL PROGRESSIVA
F.A.G. – masc., 44 anos
L.A.P. - masc.,
16 anos
Tratamento: injeção de mercuriais, calomelano com salicilato de sódio, punção lombar (com finalidade curativa
e não diagnóstica) ... não eram prescritos PURGATIVOS!
Algumas curiosidades: histeria
era diagnóstico que só tinha
mulheres como padecentes, demência
precoce e paralisia geral progressiva
incidiam mais no sexo masculino, mas a grande “categoria diagnóstica” eram
as psicoses periódicas, uma forma de
adoecer mental que situar-se-ia, em nossos dias, entre os “espectros” e os “border-liners”.
Opoterapia, depressores do sistema
nervoso central – incluindo o recém descoberto barbital
(Veronal) – representavam o “progresso” e na ausência
de outros metais pesados, os mercuriais eram a panacéia médica da época ... no
mais, os purgativos continuavam
absolutos nos esquemas terapêuticos propostos, empesteando o cheiro já acre das
enfermarias dos asilos e hospícios (isso é, os doentes mentais eram “hóspedes”
do governo federal já que as perspectivas terapêuticas continuavam em seus
limites ineficientes).
A grande novidade que se apresentava eram os “esquemas
terapêuticos padronizados” de acordo com o “diagnóstico sindrômico”
uma idéia precursora das “diretrizes”, “algorítimos”
e “guide-lines” que se escudam na chamada “medicina
baseada em evidências”, enfim, nada de
novo sob este céu que nos protege ...
E assim se passaram dez anos...
Utilizando-se a sétima página de cada dezena, chegamos ao
livro de registros de paciente de 1922 com um mundo saído de uma guerra que
“não mais deveria se repetir” ...
Guerras costumam trazer progressos, os sais de arsênio
conhecidos como salvarsan e neosalvarsan apareceram entre 1913 e 1915 e, apesar da elevada toxicidade,
injeções intramusculares ou sub-cutâneas destas substâncias eram eficazes
contra os espiroquetas e geraram grandes esperanças no tratamento da paralisia
geral progressiva.
Poucas alterações ocorreram nos sistemas de classificação
das doenças mentais, mas o diagnóstico de psicose
maníaco-depressiva já era feito com alguma freqüência e a demência precoce transitava mais desenvolta
fazendo par com a novata psicose de
involução.
Vamos aos exemplos.
PSICOSE DE INVOLUÇÃO
E.
M. -
fem., 40 anos (?)
Tratamento
proposto: cápsulas ovário-luteínicas, fenobarbital.
PSICOSE
MANÍACO-DEPRESSIVA
J.P.C. - masc., 35 anos
N.S.P. - fem., 17 anos
Esquema “medicamentoso”: ópio, hioscina,
“poção calmante”, fenobarbital, veronal.
PARALÍSIA
GERAL PROGRESSIVA (estágio demencial)
O.R.J. - fem., 31 anos
Tratamento: cloral hidratado, óleo canforado,
fenobarbital.
ALCOOLISMO
E.G. - masc., 32 anos
P.S.
- masc., 42 anos
L.S.N. - masc., 36 anos
Medicamentos propostos: sedativos ( inespecíficos), ópio,
fenobarbital.
DEMÊNCIA PRECOCE
H.M.M.
- masc., 19 anos
Tratamento:
“sedativos”,
soro hormonopluriglandular.
DELÍRIO EPISÓDICO
M.R.
- fem., 33 anos
Esquema
terapêutico: ópio, “sedativos”.
ESTADO ATÍPICO DE DEGENERAÇÃO
E.S.R.
– fem., 10 anos (?)
Tratamento:
fenobarbital.
HISTERIA
E.I.A.
- fem., 21 anos
M.P.R.S.
- fem., 22 anos
M.V.B.
– masculino, sem informação de idade
Esquema
terapêutico: valerianato de
amônia, “poção calmante”, fenobarbital, PURGATIVO(!).
CONFUSÃO MENTAL
B.S.P.
- masc., 54 anos
A.C.
- fem., 58 anos
R.B.N.P.
- masc., 18 anos
P.I.S. - masc., 26 anos
Tratamento:
Sangria,
óleo canforado, iodeto canforado, iodeto de sódio, injeção de ouro
coloidal, e a tão falada “poção
calmante” que tinha a seguinte composição:
Cloral
hidratado ...............
NaBr .................................
Sulfato
de esparteina ....... 10 dg
Julepo gomoso ................
Xarope
de anis ................
Tomar 1
colher, das de sopa de 2/2 h
Algumas curiosidades: aparecem os histéricos de sexo masculino, a psicose
maníaco-depressiva e a de involução fazem seu “début”,
a “confusão mental” aparece como diagnóstico mais freqüente e nesta rubrica
repousam nossos “espectros” e “border-liners”, o
alcoolismo começa a se destacar como “doença” e (quase) saem de cena os purgativos ...
Os próximos dez anos seriam já contemplados no livro
de Henrique Roxo de que tratamos na primeira parte deste “vol
d’oiseau” que empreendemos, de forma bem rasante, na
história dos tratamentos psiquiátricos utilizados nesta muy leal, nobre e valerosa cidade de San Sebastião do Rio de Janeiro ...
Comentários outros, na próxima edição deste prestigioso
jornal científico.