![]() ![]() Volume 15 - 2010 Editor: Giovanni Torello |
Novembro de 2010 - Vol.15 - Nº 11 COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA O PSICOPATA: MITO, MODA E CIÊNCIA
Fernando Portela Câmara No Brasil virou moda o tema
psicopatia, assunto de livros populares e telenovelas. Todo criminoso é agora
classificado como psicopata, e as pessoas que nos desgostam geralmente levam o mesmo
rótulo. É algo natural, um modismo que invade a linguagem do cotidiano, como
falar de futebol ou de política, mas perigoso quando contamina a mente de quem
tem a responsabilidade de tomar decisões em âmbito jurídico e forense, tais
como jurados, juízes, promotores de justiça, legisladores, administradores,
etc. O assunto psicopatia é
pertinente à ciência forense e, de fato, é hoje uma expressão restrita ao
ambiente judiciário e psiquiatria forense. É muito comum lermos nos livros de
divulgação e nas novelas de televisão pessoas rotuladas como psicopatas quando,
na verdade, nem sempre o são. É o caso do personagem hollywoodiano Hannibal Lecter, na verdade um
sádico cujos impulsos homossexuais são desviados para o hábito de planejar
assassinatos e comer partes de suas vítimas requintadas. Serial killers na
maioria da vezes não são psicopatas. O psicopata é um indivíduo
frio, amoral, cuja falta de remorso impressiona mais que a sua suposta crueldade,
o que não o impede de ser uma pessoa simpática à primeira vista. Mas quando se
aproxima mais dele ou dela, percebe-se ser avesso a responsabilidades, insensível
aos prejuízos materiais e afetivos que pode causar a alguém, não coopera ou
retribui, apenas usa. Em outras palavras, não comuta internamente os contratos
sociais. Este narcisismo extremado e desprezo pelo outro fez Schneider perceber
bem esta característica como universal nos transtornos de personalidade e que é
conspícua nos psicopatas: sofrem e fazem sofrer (Câmara, 2001). Eles, de fato,
sofrem, mas unicamente por suas próprias frustrações. Outra característica é que ele
usará de todos os meios para obter a satisfação imediata dos seus desejos, pois
não sabe adiá-la para uma oportunidade mais segura e propícia. Por isso frustra-se
facilmente quando não consegue o que quer, e quando isto acontece sofre de
grande estresse, somatizando suas frustrações ou
reagindo com depressões e mesmo psicoses reativas breves, buscando com
freqüência ajuda médica e pronto atendimento para seus males. Algumas vezes fará
uma tentativa de suicídio, geralmente mal sucedida, ocasião em que se crê
vitima de todos e do mundo. Não há unanimidade em relação
ao caráter disruptivo de um psicopata. Sempre haverá pessoas dispostas a
defendê-lo ardentemente como um injustiçado, e ele saberá como tirar proveito
disto. O papel de vítima lhe cai bem. Ele sempre achará um culpado, e se crê,
de fato, uma vítima, já que lhe falta consciência moral dos seus atos. Se substituirmos no adulto
psicopata a imagem de uma criança por volta dos seus dois, três anos de idade,
veremos a semelhança do caráter básico como infantil, imaturo. Uma criança
ainda na fase pré-escolar frustra-se facilmente e chora forçando a mãe ou o cuidador a lhe satisfazer. Brincando com outras crianças,
não compartilha, e cobiça o que as outras têm, e frustra-se facilmente
expressando este sentimento como agressão. Na criança esta fase muda com o
desenvolvimento nervoso, facilitando a assimilação da educação social e da
ética, mas não estamos aqui querendo afirmar ser o caráter psicopata um
transtorno de desenvolvimento, senão que apenas relacionando uma observação
familiar aos que lidam com crianças. Cabe aqui uma visão psicopatológica do
verso de Ibn Arabi: a criança é o pai do homem. No passado, o termo psicopatia
designava qualquer distúrbio mental, sendo sinônimo de doença mental. Depois,
passou a designar “pessoa amoral”, “desvio de caráter” e então os distúrbios de
personalidade. A palavra é hoje associada à sociopatia
ou transtorno de personalidade anti-social, mas não é a mesma coisa. Trata-se
de um subconjunto deste transtorno, que Robert Hare resignificou como um construto forense (Hare,
1995) e por tal razão não é um distúrbio classificado na psiquiatria clínica,
mas uma interface entre a Medicina Legal e a Criminologia. Isto o levou a criar
um teste baseado em uma entrevista estruturada (Psychopathy
Check-list Revised, o PCL-R)
hoje largamente aceito e parte da avaliação de periculosidade criminal em
muitos países. Embora tenha sido validado para o Brasil (Morana,
Arboleda-Flores, Câmara, 2005), inexplicavelmente ele
não é adotado em nosso sistema jurídico. Em 2006, o trabalho pioneiro de Morana, Câmara e Arboleda-Flores
(2006) refinaram o conceito separando-o do constructo “bandido comum”, apud Aníbal Silveira. O psicopata sente-se atraído
pelo poder. Não será encontrado frequentemente apenas entre os transgressores
comuns que deambulam pelos corredores das prisões e dos tribunais, mas também
entre CEOs, políticos e universitários que disputam a
fama e as luzes. Frequentemente está entre os que fraudam relatório e dados,
enganam clientes com negociatas e investimentos de lucro fácil, ou fraudam
resultados científicos, traindo e enganado sempre que a oportunidade ou a
necessidade o impele ou ameaça seu status e sensação de poder. Um exemplo
recente foi a fraude da ENRON, cujos 12 diretores foram tipificados por Hare com psicopatas; outro exemplo também recente foi o de
um laureado pesquisador médico que manipulava dados científicos garantindo sua fama
e o lucro da firma na qual tinha participação. Ora, essa propensão a atividades
e ações arriscadas é típica, e por isso não raro que os delitos do psicopata
sejam expostos e descobertos. A satisfação imediata dos seus desejos, não
importa qual o meio que o momento ditará, não o leva a avaliar os riscos; é
movido pelo impulso e pela recompensa, e como não experimenta culpa ou
vergonha, não percebe a moralidade de seus atos. Flagrado em seu delito, não
admitirá a culpa mesmo que confrontado com os fatos diante de um tribunal ou da
opinião pública, e encontrarão sempre um meio de convencer alguém. O psicopata não é um
maquiavélico sofisticado, sua impulsividade na busca imediata do desejo supera
a estratégia ardilosa que consome tempo e inteligência exigida pela cautela. Ele
ou ela simplesmente arrisca até o dia em que será surpreendido, quando o
prejuízo já é visível. Acredita que é esperto e a sociedade é sua presa. A
propensão ao risco e o desprezo pelos contratos sociais, é o que os faz
tipicamente um reincidente irrecuperável. O psicopata não é um “produto do
meio” e nem tampouco um individuo “que sofreu abusos na infância”. O psicopata sabe o que a
sociedade considera ser certo ou errado, mas não internaliza esta percepção
como sentimento moral e ética. Aparentemente falta-lhe, ou é deficiente, o
módulo cognitivo que regula os sinais e contratos sociais. Se o meio que que vive for exigente quanto ao cumprimento das regras
sociais, ele se esforçará por cumpri-las, temendo a repressão, mas se o meio é
permissivo, se as leis são banalizadas por um afrouxamento moral da sociedade, o
fenótipo psicopático se manifestará plenamente, na
medida em que cada seus atos nefastos não terão conseqüência. Cerca de 2% da
população apresenta características psicopáticas, e
este percentual pode ir entre Testes realizados em indivíduos
com altos escores no PCL-R mostraram que duas das características comuns aos psicopatas,
a propensão ao risco e a insensibilidade moral, são fatores que os diferenciam
positivamente dos não psicopatas (veja The Economist, 2010). Isto levanta a hipótese de ser a
psicopatia um caráter adaptativo (ou seja, evolutivo), à semelhança da anemia
falciforme. Ele também é insensível aos códigos sociais de retribuição e ajuda.
Do ponto de vista neuropsicológico, é como se os seus módulos cognitivos de risco
e de contratos sociais estivessem desativados. Isto pode sugerir que os genes
que propiciam o controle da maturação de vias nervosas que atualizam estes
módulos não estão suficientemente ativos nos psicopatas. Dentro da perspectiva
evolucionária suscita-se a pergunta: qual é a utilidade adaptativa deste
caráter, ou seja, em que situação ele é positivamente selecionado? Em situações
que os indivíduos estejam ameaçados de perigo extremo ou de extinção,
arriscar-se por impulso e pensar somente em si mesmo pode ser vantajoso para
escapar e competir em um ambiente selvagem e hostil. Claro que, em uma
sociedade organizada em que a cooperação e solidariedade são as principais
forças de coesão social, o “gene psicopático” passa a
ser inadequado e disruptivo, mas foi reservado para sobreviver em situações
extremas onde o individualismo rejeitará e desprezará o grupo. Referências Câmara, FP. Introdução
aos Transtornos de Personalidade. I – Aspectos Gerais. Psychiatry
On-line Brazil, vol. 6, no 9 (Setembro), 2001, disponível em http://www.polbr.med.br/ano01/artigo0901_a.php
(acessado em
20/11/2010) Hare
RD.
Psychopaths: new trends in research,
Harv.Mental Health Lett. 1995; 12: 4–5. Morana HCP, Arboleda-Flórez
J, Câmara FP. Identifying the cutoff score for the PCL-R scale (Psychopathy Checklist Revised) in a Brazilian forensic
population. Forensic Science Int., 2005; 147(1): 1-8.
Morana HCP; Câmara FP; Arboleda-Flórez
J. Cluster Analysis of a Forensic Population with Antisocial Personality
Disorder and Psychopathy Identified by the PCL-R. Differentiation of Two Patterns of
Criminal Profiles. Forensic Science International Medicine 2006; 164:
98-101. The Economist,
http://www.economist.com/node/17460702
(acessado em 22/11/2010) ![]()
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