Volume 14 - 2009
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Outubro de 2009 - Vol.14 - Nº 10

Psicanálise em debate

O PAPEL DE REFLETIR SOBRE O CONJUNTO DO ESPÍRITO HUMANO
O exame da cultura e da civilização tornou-se uma das linhas de força da psicanálise, que prossegue dedicada a essa frente

Sérgio Telles *
psicanalista e escritor

A dolorosa vacilação humana entre o Bem e o Mal, a razão e a irracionalidade - enigma sobre o qual há séculos se debruçavam a filosofia e as religiões - foi entendida por Freud como decorrente da divisão estrutural do psiquismo, cujo funcionamento percebeu ser regido por um conflito permanente entre forças opostas.

Foi com as histéricas que Freud descobriu a dimensão inconsciente do psiquismo, mas logo a reconheceu nos demais quadros psicopatológicos e no funcionamento mental dos ditos “normais”. É quando passa a fazer o levantamento desta forma de funcionamento psíquico que escapa totalmente à Consciência e à lógica racional e que usa uma linguagem cifrada, até então incompreensível a ponto de lhe ser negado qualquer sentido. Daí a necessidade de interpretá-la ao se manifestar em sintomas, sonhos, atos falhos, fantasias e desejos.

Freud constata que o inconsciente pode ser detectado em toda e qualquer manifestação do psiquismo humano, desde os mais simples e rudimentares até as mais complexas produções culturais, como a arte, a religião, a filosofia.

Por isso mesmo, desde o início, Freud estabeleceu que a psicanálise não se restringe a seu aspecto terapêutico e procurou aproximá-la dos  demais domínios do espírito.

É grande o número de textos que Freud dedicou a assuntos artísticos e culturais. Essa linha de trabalho culminou com obras magistrais, nas quais estuda a gênese da lei (“Totem e tabu”, 1913), a questão da psicologia das massas e da liderança (“Psicologia de grupo e a análise do ego”, 1921)), a religião (“O futuro de uma ilusão”, 1927) e a  própria civilização (“O mal-estar na civilização”, 1930).

O pensamento sociológico e cultural de Freud – que, durante certo tempo e por vários motivos, foi relegado a um segundo plano - recebeu uma grande revitalização a partir dos trabalhos de Jacques Derrida. Ele convoca os psicanalistas a retomarem seu posto na pólis, a participarem – como Freud o fez - mais intensamente dos debates que envolvem as grandes questões da atualidade. Confirma ele o que já é sabido desde o aparecimento dos primeiros trabalhos de Freud – que o mundo é hostil à psicanálise e a ela oferece grande resistência. Mas – diz Derrida – é necessário reconhecer que a psicanálise, por sua vez, também “resiste” ao mundo, e – o que é mais grave – resiste a si mesma, recusando-se a continuar expandindo o campo de saber criado por Freud.

Derrida lamenta a ausência da psicanálise no enfrentamento com questões nas quais sua contribuição é imprescindível, como nos campos da ética, da política e do jurídico.

Em “O Mal-Estar na Civilização”, Freud afirma ser necessário reprimir os desejos agressivos e sexuais para tornar possível a vida em comum. Como conciliar isso com o objetivo terapêutico maior da psicanálise que propõe justamente combater a repressão e tornar conscientes os conteúdos que ela afastava da consciência: Essa aparente contradição se desfaz quando lembramos que a superação da repressão e a integração no psiquismo dos conteúdos até então reprimidos não deve ser confundida com a realização concreta destes desejos na realidade. O levantar da repressão dá ao sujeito um maior conhecimento sobre si mesmo, fortalece seu ego e faz com que ele deixe de atribuir à outra pessoa (via projeção) desejos e fantasias que são de sua própria lavra. Cabe ao sujeito, agora de posse de seus desejos antes reprimidos, avaliar a adequação e a oportunidade de pô-los em prática ou reconhecer que tem de renunciá-los de uma vez por todas. Isso implica o reconhecimento da lei e a aceitação de limites, um abandono do narcisismo onipotente infantil e uma aceitação do principio da realidade.

O fato de ser a civilização considerada por Freud como valioso apanágio da humanidade a ser protegido contra a barbárie sempre à espreita, não impede que a psicanálise exerça ce sobre ela uma critica sistemática, o que muitas vezes a coloca numa posição contrária ao consenso geral, gerando grande hostilidade contra si.

No tempos iniciais, Freud e a psicanálise se opunham á hipocrisia com a que a sociedade tratava a sexualidade, reprimindo-a maciçamente, fazendo-a manifestar-se no corpo contorcido, paralisado, convulsivo da histérica.

A psicanálise ajudou a mudar este panorama e o que vemos hoje em dia é o oposto do que ocorria no tempo de Freud.

Ao contrário da censura, da repressão e do impedimento superegóico contra a sexualidade, prevalece agora a imposição do gozo ininterrupto, a ordem é gozar. A sexualidade se exibe escancaradamente, a pornografia é moeda corrente, as relações sexuais ocorrem com a plena aceitação da sociedade.

Enquanto o desejo era vigiado e reprimido na era vitoriana, agora o mercado está atento a todo e qualquer desejo para transformá-lo num objeto de consumo, oferecido como o passaporte para a felicidade instantânea pela enganosa publicidade.

Ao apontar as falácias da sociedade do consumo, o vazio decorrente do narcisismo desenfreado, a negação da falta e da incompletude, a liberdade excessiva que leva às fobias e ataques de pânico, a psicanálise, mais uma vez está na contramão. Ela mostra que a repressão se deslocou para outras áreas, impedindo a manifestação da genuína intimidade afetiva.

No próprio campo terapêutico, a psicanálise está contra o espírito do tempo. Ela é desmerecida como algo ultrapassado pela neurociência (que reduz o funcionamento mental ao equilíbrio dos neurotransmissores cerebrais) e pelo cognitivismo (teoria psicológica herdeira do behaviourismo, baseada em processos cognitivos conscientes, que ignora – conseqüentemente - o inconsciente freudiano, e tenta aproximar o funcionamento da mente ao processamento de dados de um computador).

Neste contexto, é reconfortante que um pensador do calibre de Derrida tenha reafirmado a radical novidade do Inconsciente freudiano, que continua descentrando e desafiando o saber humano baseado no cogito, na razão, na consciência.

 

Publicado no suplemento “Cultura” do “O Estado de São Paulo” em 20/09/09

 

 


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