Volume 14 - 2009
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Novembro de 2009 - Vol.14 - Nº 11

Psicologia Clínica

HOSPITAL-DIA E ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO: TRABALHOS ESSENCIAIS EM SAÚDE MENTAL

Braz Werneck
Mestre em Psicologia (UFRJ)
Terapeuta Cognitivo-Comportamental

Resumo

 

Este estudo tem como objetivo estabelecer a importância dos dispositivos de inserção social de pacientes psiquiátricos. Falamos aqui, principalmente dos Hospitais-Dia e do Acompanhamento Terapêutico. Defende-se a ideia de que um trabalho eficiente no regime de hospital-dia necessite de um projeto geral para o dispositivo e projetos específicos que possam contemplar a singularidade de cada um dos membros da clientela. A eficácia do hospital-dia e demonstrada a partir do fragmento de um caso clínico. Para o caso do Acompanhamento terapêutico, procuramos a construção de uma definição do termo. Além disso, esclarecer a necessidade de um trabalho em rede, que possa ser auxiliar no trabalho do hospital-dia e dos próprios médicos, para o restabelecimento social e ocupacional do paciente. Para um melhor funcionamento técnico das equipes envolvidas no trabalho, sugerimos a adoção da Psicopatologia Fenomenológica como ponto de partida, visando a uma clínica sem amarras teóricas, preocupada apenas com o tratamento do paciente. Caracterizamos também, a importância de uma atuação do Acompanhamento Terapêutico para os casos de Esquizofrenia. 

 

Descritores: Hospital-Dia, Acompanhamento Terapêutico, Saúde Mental.

 

Day-Hospital and Therapeutic Counseling: essential works on mental health.

 

Abstract

 

This paper aims to establish the importance of the devices of social insertion of the psychiatric patients. We speak here, principally of  Day-Hospital and Therapeutic Counseling. The idea is defended of what an efficient work in the regime of day-hospital needs of a general project for the device and specific projects that could contemplate the peculiarity of each one of the members of the customers. The efficiency of the day-hospital and demonstrated from the fragment of a clinical case. For the case of the therapeutic Attendance, we look for the construction of a definition of the term. Besides, to explain the necessity of a work in net, which could be an assistant in the work of the day-hospital and of the doctors themselves, for the social and occupational restoration of the patient. For a better technical functioning of the teams wrapped in the work, we suggest the adoption of the Phenomenological Psychopathology like starting point, aiming for a clinic without theoretical cables, only concerned about the treatment of the patient. We characterize also, the importance of an acting of the Therapeutic Attendance for the cases of Schizophrenia. 

 

Keywords: Day-Hospital, Therapeutic Counseling, Mental Health.

 

Introdução

O trabalho em saúde mental vem se configurando como uma das principais demonstrações de preocupação com o lugar que o indivíduo ocupa na sociedade. Quando bem desenvolvido e conduzido com cuidados éticos, técnicos e humanos, acaba por atingir os objetivos clínicos, como reinserir o paciente na sociedade da qual foi afastado, muitas vezes auxiliando também a convivência com a família. Por meio do Acompanhamento Terapêutico (AT) e dos centros de convivência, dentre os quais se destaca o Hospital-Dia (HD), o paciente tem novas possibilidades para exercer de forma mais humana a própria existência, sendo cada vez mais responsável por suas escolhas. O objetivo principal deste trabalho é ratificar o HD e o AT como essenciais no trabalho em saúde mental, propondo o método fenomenológico (que é essencialmente diferente da psicoterapia fenomenológica) como norteador do trabalho clínico.

Observações feitas na prática clínica levam a concluir que o tratamento geralmente dispensado aos doentes e deficientes mentais, que são a parcela da população sobre que se fala neste trabalho, é um tratamento mais preocupado em negar a doença e as limitações que ela acarreta do que em compreender como funciona o ser humano que padece de sofrimentos psíquicos. Observa-se um tratamento que tem como público alvo, no fim das contas, o público “não-doente”. Por meio de uma crítica dessa perspectiva sistematizante e totalizadora, procuraremos discorrer sobre o funcionamento daquelas que entendemos ser atividades que consideram o paciente em suas singularidades. Essas atividades acontecem no ramo da saúde mental, muito provavelmente, não por acaso. Talvez seja mesmo preciso uma linha tênue entre a institucionalidade e a marginalização para que se possa experimentar o problema real que é o tratamento desses pacientes.

Se por um lado, a observação clínica é a principal fonte de referência para o problema aqui apresentado, por outro, leva-nos a perceber como o Hospital-Dia aparece como uma das alternativas das mais eficazes para o tratamento em saúde mental, para pacientes graves e crônicos. Vale ressaltar que é necessário um trabalho com objetivos clínicos muito bem construídos, o que não é fácil atualmente.

Com o objetivo de justificar a tese de que o HD e o AT são indispensáveis no contexto da clínica psicológica e psiquiátrica atualmente, faz-se aqui uma exploração conceitual, caracterizando os serviços e  comentando suas peculiaridades.

Em seguida, e ao longo do texto, comentamos a importância de uma atitude fenomenológica e de uma concepção coerente da psicopatologia. Defendemos, com base em nossa experiência, a proposta de Minkowski sobre o estudo da psicopatologia. Segundo esse autor, a psicopatologia deve ser considerada como a psicologia do patológico, não como a patologia do psicológico. Essa ideia permeia todo o trabalho.

Para o caso do Hospital-Dia, principal estrutura aqui proposta como centro de convivência, ressaltaremos a importância do funcionamento à base de Oficinas Terapêuticas, responsáveis, dentro de cada projeto individual, por progressos clínicos contundentes.

Ao longo do trabalho, serão expostos fragmentos de casos clínicos, para ilustrar as ideias expostas, guardando, obviamente, o sigilo ético quanto à identificação dos pacientes.

As conclusões e as propostas erigidas neste trabalho têm sua fonte em minha experiência como acompanhante terapêutico (at), terapeuta de grupos de convivência e coordenador e supervisor de equipes de saúde mental, ao longo dos últimos dez anos.

 

Hospital-Dia: clínica da ressignificação e das convivências possíveis

 

Considerações Gerais

O hospital-dia (HD) é um serviço de atenção em saúde mental consoante com uma visão crítica da Psiquiatria em relação à necessidade de internação. Nas últimas décadas, figura ao lado do Acompanhamento Terapêutico como uma das principais alternativas à internação psiquiátrica. O HD tem como um de seus principais objetivos a chamada reabilitação psicossocial.

                Defendemos que todo serviço de atenção em saúde mental deve ter um projeto. Para o caso do hospital-dia, deve ser elaborado um projeto geral para o funcionamento do dispositivo e um específico para cada paciente, onde constem as características clínicas dos mesmos, além de objetivos e estratégias terapêuticas para que os objetivos clínicos sejam alcançados. A experiência clínica nos mostra que a atenção dada ao projeto individual de cada paciente, promove uma facilitação do trabalho em direção aos objetivos gerais, relacionados à reabilitação psicossocial.

                A principal característica da dinâmica do HD é o funcionamento por regime de Oficinas Terapêuticas. São atividades organizadas, com um tema norteador e um terapeuta dinamizador que conduz o processo de convivência. As oficinas funcionam como mediadores do processo de reinserção social.

                A possibilidade de reinserção social é o cerne da atuação em saúde mental. Fazer com que um paciente psicótico volte a circular nas ruas, nos supermercados, nos cinemas e festinhas com amigos ainda é algo inimaginável para algumas pessoas que possuem um doente mental na família. Tal demanda social acaba por se tornar uma prática que necessita de um profissional mediador.

                Uma dessas demandas sociais é de que o paciente seja um sujeito produtivo. Não pode ser restrito a um rótulo de doente mental; precisamos de outros rótulos. Precisamos de rótulos nobres, que causem bem-estar. Assim, observamos como um dos principais campos de inserção do hospital-dia na comunidade o viés da produtividade. O sujeito que produz alguma coisa tem o direito de não ser discriminado. O profissional deve intervir nesse processo para que ele deixe de ser voltado para a sociedade e passe a ser construtivo - focado no tratamento do paciente.

Toda a problemática do paciente está relacionada ao seu modo de ser no mundo. No caso dos doentes mentais, a relação com o mundo é estabelecida de forma muito diferente do que nós esperamos que aconteça. A primeira complicação que se observa, geralmente acontece no âmbito familiar. Não é fácil para qualquer família assumir que um de seus membros necessita de atenção psiquiátrica. Reconhecer isto traz a dor e a culpa de uma imperfeição insuportável. Por isso, muitas vezes, a família resiste ao tratamento; por não admitir que tenha feito um filho errado, imperfeito. Para os pais, seria a demonstração da própria imperfeição. O exemplo abaixo ilustra a necessidade de uma abordagem junto à família.

 

João, com 32 anos, diagnóstico de esquizofrenia paranóide, morava em um apartamento confortável na zona sul do Rio de Janeiro. Seu núcleo familiar era composto pelo pai e pelo irmão mais novo. João havia concluído o segundo grau e começado a trabalhar como promotor de eventos aos 18 anos, quando ocorreu o primeiro surto. O pai interditou-o, e passou a procurar um grupo de apoio, sem querer internar o filho. Um longo trabalho junto ao pai, com psicólogo e psiquiatra, fez com que ele deixasse transparecer sua preocupação com o que a família e os amigos iriam comentar, caso o seu filho fosse internado. João, por sua vez, tentara suicídio por duas vezes e não estava respondendo à medicação neuroléptica, com agressividade, agitação psicomotora e frequentes construções delirantes. Com a abordagem familiar, foi possível trabalhar as crenças do pai e do irmão sobre a internação e sobre a vida de João. Os familiares terminaram por aceitar uma internação curta, com o projeto traçado para quando João saísse do hospital. A partir de então, com o apoio da família, o tratamento progrediu, João ficou internado durante uma semana, passou a frequentar um hospital-dia e a ter acompanhamento terapêutico durante três noites por semana. Durante onze anos, não precisou de nenhuma intervenção de emergência. Quando foi necessária tal intervenção, o Acompanhamento Terapêutico foi suficiente para que o quadro se estabilizasse.

 

                A família apresenta naturalmente pelo menos dois tipos de demanda: a demanda socializadora, descrita acima e a histórica demanda de cura do seu membro doente. Nos dois casos, a atuação do profissional de saúde mental é o diferencial que vai funcionar como catalisador do processo de transformação dessas demandas, que nada têm a ver com a saúde do sujeito, em demandas realmente significativas. Não falamos aqui em erradicação da doença, em cura das psicoses; falamos de vida não doente. É por uma mudança na rotina do paciente, para investir em uma vida não-doente, modificando sua forma de lidar com o mundo e ressignificando suas representações, que o projeto do hospital dia deve lutar.

                Para desempenhar a ‘simples’ função de modificar uma vida cronificada em seu adoecimento e desmantelada pelas concepções moralistas de tratamento em saúde mental que observamos ainda hoje, o HD não pode ter seu campo de atuação restrito aos psiquiatras, psicólogos e enfermeiros. Vale dizer, não deve prescindir de uma atuação multi ou interdisciplinar. Atualmente, observamos uma atuação essencial de profissionais de outras áreas nos projetos estabelecidos. Terapeutas ocupacionais, psicomotricistas, fisioterapeutas, psicopedagogos são exemplos de profissionais que já foram por mim observados em atuações clínicas importantes para a reinserção social de vários pacientes. É necessário que tais profissionais sejam preocupados com a essência do trabalho, para que possam atingir os objetivos traçados.

A Psicopatologia Fenomenológica com ponto de partida

Uma das principais noções que se aprendem ao longo do trabalho em saúde mental é a necessidade de compreender cada caso. Quando se trata de serviços que primam pela convivência, a compreensão clínica do caso pode evitar que o terapeuta cometa erros evitáveis e, muitas vezes, irreversíveis. A Fenomenologia traz a ideia da compreensão mais importante do que a explicação. A preocupação do profissional deve ser a de compreender. Deve adotar uma atitude compreensiva, uma atitude fenomenológica (Bastos, 2000).

                Para que seja realizado um bom trabalho em saúde mental, notadamente nos referidos serviços, o profissional deve ter uma noção mínima de pelo menos, três coisas:

1.        Quem é o paciente que está sendo tratado?

2.        Qual o sentido psicopatológico do quadro apresentado?

3.        Quais os objetivos do trabalho a ser realizado?

 

Esta discussão vale, de maneira análoga para o Acompanhamento Terapêutico, considerando as diferenças estruturais e funcionais entre os dois serviços.

                Para conhecer o paciente, não bastam entrevistas com ele e com a família. É necessária uma observação crítica do seu funcionamento no mundo, para que se possa entender como ele estabelece as relações com os elementos à sua volta (sejam pessoas, animais ou objetos); a vinculação do paciente ao terapeuta e ao tratamento facilita o processo(Werneck Filho, 2009). No HD, a compreensão do contexto existencial do paciente se dá, principalmente, pela convivência num ambiente grupal, que convoca os membros (inclusive os terapeutas) a um comportamento mais autêntico do que uma situação de ambulatório. Neste caso, uma observação crítica e clínica deve ser uma observação presente, exposta e disposta a ser afetada pelas mesmas coisas que afetam o paciente. Assim sendo, o terapeuta pode se utilizar das suas próprias afetações como principal parâmetro de avaliação e de formulação de sua hipótese diagnóstica e de seu projeto terapêutico. A compreensão do paciente vem também no compartilhar atividades, algo mais próximo de atividades laborais e funcionais, que suscitam afetações de todos os tipos. A atividade lúdica, muito comum nas oficinas terapêuticas, favorece a exposição pessoal. A exposição pessoal do terapeuta pode ser em muitos casos uma intervenção eficaz, quando da identificação entre profissional e pacientes. Alguma diferenciação ocorre nesse momento. O paciente pode observar a sua capacidade de afetar o terapeuta. A neutralidade dá lugar à vinculação afetiva potencial, que provoca, inevitavelmente, movimentos e produções subjetivos. Entendo por vinculação afetiva potencial, a disponibilidade do terapeuta para o que uma vinculação afetiva aconteça. Em alguns casos mais graves, a vinculação afetiva fica embargada pelas características do paciente. Mas o terapeuta tem que estar sempre disponível para que tal vinculação aconteça.

                O sentido psicopatológico é produzido pelo encadeamento dos sinais e sintomas do paciente, em uma relação de coerência com o seu quadro existencial. Com esse encadeamento lógico, é possível, por exemplo, que se tenha maior segurança nas formulações de hipóteses diagnósticas em situações que apresentam sintomatologia compatível com diferentes quadros clínicos. O fragmento de caso a seguir ilustra a necessidade de uma compreensão existencial do paciente, mais do que uma compilação de critérios diagnósticos.

                Os objetivos devem ser traçados de acordo com o sentido psicopatológico observado, para que o paciente seja tratado em sua totalidade, sem ser considerado como um aglomerado de sinais e sintomas. Os serviços ora estudados necessitam de projetos terapêuticos coerentes e consistentes, sob pena de que o profissional, por mais competente que seja, acabe realizando um trabalho às cegas e consequentemente infrutífero. A seguir, o fragmento de um caso que teve amplas melhoras com o ingresso no HD.

 

Julia, com 5 anos, diagnóstico de autismo, foi levada pelos pais para uma avaliação. Os pais queriam saber como ela poderia começar a falar logo, pois percebiam que estava demorando muito. Estavam muito cooperativos, mas só para a ideia do atraso na fala. Desprezaram a avaliação médica anterior e não acreditavam na hipótese de autismo. Julia passou por apenas uma entrevista: não fazia contato visual, não direcionava suas ações ao outro e utilizava o outro como meio para conseguir o que queria, sem nenhum tipo de interação diferente dessa. Durante dois meses, foi trabalhada com os pais, a inserção da paciente no HD, que seria acompanhada de perto por uma psicopedagoga. Quando os pais concordaram o trabalho começou. Julia, que apresentava um quadro óbvio de autismo, não comia nada que não fosse trazido pela mãe, não ia ao banheiro e sempre sujava as roupas. Com o tempo, a relação coma família ficou mais sólida e a mãe passou a participar de todas as reuniões. Julia estava começando a se comunicar com os técnicos, mas nada que fosse inteligível. Foram trabalhados limites corporais, limites verbais, tudo considerando as características sensório-motoras da paciente. Após um ano de trabalho, com frequência regular da paciente e dos pais às reuniões, Julia começou a pegar pela mão a terapeuta de seu grupo, puxando-a para ir ao banheiro. Não havia sido feito trabalho específico para que a menina fosse ao banheiro, mas ela começara a seguir os passos da terapeuta e frequentemente, era interrompida com a frase: “Agora, não, Julia. Fica aqui que eu vou ao banheiro”. A partir do primeiro movimento, Julia iniciou seu processo de comunicação com outras pessoas e ao final de dois anos chegava a participar de algumas brincadeiras em grupo, o que já havia sido descartado pela mãe, por causa da avaliação errônea de profissionais, feita anteriormente.

 

 

                Neste caso, a paciente experimentou, com a terapeuta, uma relação de referência e de afeto. A equipe, devidamente orientada, não provocava um investimento excessivo em Julia, mas sim, proporcionava um ambiente onde ela pudesse se expressar livremente, mas tivesse que lidar com consequências de seus atos, de acordo com o que era possível.

                Explicamos a seguir o que entendemos por ressignificação e função mediadora da oficina terapêutica.

 

Oficinas Terapêuticas

As oficinas são mais uma ferramenta no processo de reinserção social do paciente psiquiátrico (Ribeiro, 1999). Proliferaram no Brasil, nas últimas décadas, como parte integrante do tratamento nos centros de convivência. Nas palavras de Ribeiro (2004):

 

“A maioria dessas oficinas sustenta-se na possibilidade de representarem dispositivos que sejam catalisadores da produção psíquica dos sujeitos envolvidos, facilitando o trânsito social deles na família, na cultura, bem como sua inserção ou reinserção no trabalho produtivo”.

               

                Este comentário ilustra a função de composição das oficinas dentro de um projeto mais amplo de reinserção social. Atualmente, com amparo da legislação sobre saúde mental no Brasil, as atividades clínicas de convivência são a manifestação mais contundente de preocupação com o ser humano doente ou deficiente mental.  Em alguns projetos é possível observar a preocupação com o quadro existencial do paciente, em vez de uma busca por estatísticas mais nobres para que a saúde no país seja vista com melhores olhos.

                A oficina terapêutica deve ser proposta e não, imposta aos pacientes. É necessário que a equipe possua capacidade técnica para criar oficinas que estimulem a participação da clientela.

                Observamos, entretanto, que a atitude fenomenológica frente à psicopatologia é a exceção, não a regra. As oficinas terapêuticas têm todas as características que possibilitam uma visão mais compreensiva e menos estatística dos pacientes. A convivência, o caráter lúdico das atividades, a possibilidade de auto-exposição tanto de pacientes quanto de terapeutas, a vinculação afetiva potencial como instrumento de trabalho e de avaliação aparecem nas oficinas, mas são, muitas vezes, rejeitadas pelos profissionais por agredirem a famosa neutralidade da figura do terapeuta. Esses pressupostos teóricos geralmente não funcionam na prática do trabalho de campo. Possivelmente se originam da confusão que se faz entre trabalho de campo e trabalho ambulatorial. Nem todos os profissionais estão preparados para exercer as duas práticas, sem comprometer o trabalho clínico.

                As oficinas terapêuticas obtêm tão significativos resultados porque, entre outras coisas, não se preocupam com a patologia do psicológico, com a doença da psique, mas, citando Minkowski, com a psicologia do patológico, numa atitude fenomenológica diante da psicopatologia (Bastos, 2000).

                O trabalho orientado pela atitude fenomenológica leva em consideração o funcionamento global do paciente. A preocupação maior do profissional de oficina é compreender o que se passa. Com a compreensão ele pode deixar que as subjetividades transcorram livremente e pode se utilizar do instrumento subjetivo mais importante de que dispõe: a própria intuição. Esse microprocesso contribui para a reabilitação psicossocial de que se fala aqui, porque concede espaço para que o paciente se apresente de forma autêntica. As oficinas são solo fértil para o estabelecimento de relações e para as modificações que essas relações provocam. Terapeutas e pacientes se modificam uns aos outros. Não há neutralidade. Há convivência autêntica (quando há profissionais capacitados).

                A nossa preocupação no estudo das oficinas terapêuticas é essencialmente clínica. O que se pode fazer em uma oficina para que determinado paciente amplie a sua rede subjetiva de relações é o que nos interessa como clínicos.

                As oficinas terapêuticas proporcionam o que se costuma chamar de ressignificação ao paciente psiquiátrico. Esse processo é um dos mais valiosos para o profissional que consegue acompanhá-lo do início ao fim. Chamo aqui, de ressignificação a capacidade que o paciente passa a demonstrar para lidar com os mesmos estímulos de uma forma diferente, mais saudável. Na prática, observamos as condições oferecidas pela equipe de trabalho para que isso possa acontecer. Na maioria dos casos, o paciente chega ao serviço esvaziado em seu sentido existencial. Não há uma função para ele no mundo que não seja a de ser tratado, ser cuidado. No decorrer do trabalho, ele percebe que não precisa ser infantilizado, como acontece em muitos casos, e pode assumir responsabilidades. É muito comum que um paciente não tenha o costume de assumir as consequências pelos seus atos. Se ele não decide o que fazer consigo mesmo, não é responsável por si mesmo. Após uma avaliação médica criteriosa, passa-se a um projeto clínico de convivência, respeitando sempre as singularidades do indivíduo. Assim, são mantidas as características de sua personalidade, para que ele possa vir a lidar com elas. Este processo torna-se viável pela relação que o paciente estabelece com o terapeuta, uma relação necessariamente diferente daquela que está acostumado a estabelecer com o mundo.

                Aliado ao serviço de Hospital-Dia, no tratamento psiquiátrico ressocializador, está o Acompanhamento Terapêutico, que vem sendo de grande ajuda no crescimento e na funcionalidade dos centros de convivência.

Acompanhamento Terapêutico

O Acompanhamento Terapêutico (AT) é uma modalidade de atendimento clínico exercida na maioria das vezes por psicólogos, que funciona como alternativa à internação psiquiátrica. Temos observado, em nossa prática, que é um importante fator de resgate existencial e ocupacional do indivíduo.

                Podem ser enumeradas como características essenciais do Acompanhamento Terapêutico o espaço e o tempo cotidianos (Rossi, 2007), a relação terapêutica e o movimento engendrado nesse espaço-tempo, mediante essa relação.

                O AT acontece frequentemente na casa do paciente, mas não é uma psicoterapia em domicílio. O caráter cotidiano do Acompanhamento Terapêutico é responsável pela sua essencial diferença em relação ao trabalho ambulatorial (psicoterapia). O paciente não tem o seu ambiente terapêutico restrito a quatro paredes de um consultório. Pode utilizar-se - e geralmente o faz - da rua, de outras pessoas, de estabelecimentos, ou mesmo de elementos naturais.

                As relações que se estabelecem com paciente e família são relações de maior proximidade, o que pode potencializar a resposta ao tratamento.          

                O AT acontece em momentos e lugares que tornam possível a apreensão de características subjetivas, que devem ser analisadas de forma objetiva, para que se chegue a uma compreensão real dos problemas. Esta concepção não goza de unanimidade dentro da comunidade do AT; é uma proposta baseada no Método Fenomenológico proposto por Edmund Husserl (Goto, 2008).

Devemos ressaltar o caráter de intervenção no momento da crise, que é peculiar ao AT. O acompanhante terapêutico (at) é o profissional designado para promover um ambiente onde a crise (maníaca, esquizofrênica, depressiva etc.) seja tão breve quanto possível.

                No que se refere à relação, entendemos que toda a clínica é relacional por essência, ainda que conserve diferenças devidas ao tipo de atividade.

                O AT vem a ser uma das ferramentas com que pode contar o profissional de saúde mental, no manejo clínico dos casos que acompanha. Essa “ferramenta” caracteriza-se pela busca de melhoria na qualidade de vida, promoção de saúde, ou, em dois termos cunhados por Pitiá e Santos (2005), “invenção de saúde” e “reprodução social” do paciente. Entretanto, não nos parece suficiente definir um termo por suas atribuições, apenas.

                Consideramos que um conceito deve abranger, além dos atributos (que dizem para que serve a “coisa a ser conceituada”) a ESSÊNCIA NECESSÁRIA ou SUBSTÂNCIA do elemento em questão. Quando se procura a essência necessária ou substância de alguma coisa, busca-se o que caracteriza esta coisa, o que a diferencia de todas as outras, o que ela não pode não ser. Nas palavras de Abbagnano, uma distinção clara entre essência e substância (ou essência necessária):

 

“Por este termo [ESSÊNCIA], entende-se em geral qualquer resposta à pergunta: o quê? (...). Algumas dessas respostas limitam-se a indicar uma qualidade do objeto, ou um caráter que também poderia não ter. Outras parecem indicar algo mais, um caráter que qualquer coisa não pode não possuir e que, por isso, é um caráter necessário do objeto definido. Nesse último caso, a resposta à pergunta ‘o quê?’ não enunciou simplesmente a essência da coisa, mas sua essência necessária ou sua substância e pode ser assumida como sua definição.” (2007, p. 417)

 

                De acordo com a nossa experiência, o Acompanhamento Terapêutico ainda é visto, em alguns contextos, como uma prática sem nome, inespecífica, com uma visão desinteressada. Comecemos, pois, a falar sobre o que realmente é o AT.

                Antes de tudo, o Acompanhamento Terapêutico é alguma coisa; algo mais do que uma ferramenta. Para nós, ele é uma atividade clínica que se utiliza dos elementos do cotidiano para atingir os seus objetivos terapêuticos. Os instrumentos utilizados são a intuição e a relação estabelecida com o paciente. Vale ressaltar que um processo intuitivo não é um processo racional, mas vivencial. Por detalhes que escapam à razão, chegamos, por causa da vinculação estabelecida com o paciente, a respostas que pareciam inatingíveis. Para que esta definição fique bem entendida, devem ser estabelecidas as relações, em cada caso, entre os elementos do cotidiano e os objetivos terapêuticos. Que elementos serão esses? Que objetivos? Para cada caso, a resposta será diferente.

                Assim, podemos erigir uma das nossas definições de Acompanhamento Terapêutico:

                Uma das definições que podemos sugerir para o Acompanhamento Terapêutico, criada por Werneck Filho (2009):

               

Atividade clínica exercida no espaço-tempo cotidiano, mediada e potencializada pelo mesmo, tendo como instrumentos a intuição e a relação terapêutica para remissão de crises e produção de movimento saudável (concreto e subjetivo), visando a um resgate existencial e ocupacional do paciente.

               

Sugerimos, também, a observação da conceituação de Rossi (2007), que diz:

 

El AT es un recurso clínico especializado que opera desde un abordage psicoterapéutico, en forma articulada con el profesional o el equipo terapêutico que lo indica. Se incluye en el tratamiento interdisciplinario de pacientes severamente perturbados, en situaciones de crises o emergencias, y en casos recurrentemente problemáticos o que no son abordables para las estratégias psicoterapéuticas clásicas. (p. 44).

 

                A convivência cotidiana entre acompanhante e acompanhado traz possibilidades muito diferentes em relação à avaliação e ao plano de tratamento a ser estabelecido. O at está dentro do ambiente do paciente, observa e passa a conviver com a família, interfere na relação familiar, afeta e é afetado de forma incontestável, sem dar chance a um ideal de neutralidade. Pela relação estabelecida com o terapeuta, o paciente escapa gradativamente da rotina que o coloca constantemente no lugar de incapaz ou de aberração. Assim sendo, no fim de uma crise, o paciente sai do lugar de louco sem ter deteriorado suas possibilidades futuras, sociais e existenciais. 

                É imprescindível que o profissional estabeleça sempre um projeto terapêutico. Caso se entre na casa de um paciente para, simplesmente, propor atividades que lhe ocupem o dia, não se alcançará qualquer objetivo. Para cada caso, uma forma de intervenção, uma linguagem, uma maneira diferente de chegar devem ser utilizadas.

                O quadro maníaco, por exemplo, ilustra muito bem a necessidade de uma outra abordagem do paciente e da família. A gravidade do quadro e a dificuldade de intervenções terapêuticas demandam um contato próximo, na tentativa de minimizar interferências contraproducentes dos familiares (Werneck Filho, 2009).

                A clínica do AT é uma clínica diferenciada. Torna-se mais complexa por causa da mentalidade estimulada nos meios acadêmicos de buscar uma atuação isenta de envolvimento pessoal. Nós, ao contrário, e baseados em numerosos exemplos de nossa experiência sustentamos a ideia de que uma vinculação afetiva potencial é imprescindível a um bom trabalho de Acompanhamento Terapêutico. Temos alguns diferenciais nesta função: a relação de proximidade estimulada, que vai além da relação estabelecida entre profissional e doente; os instrumentos utilizados (concretos e subjetivos) para a atuação do profissional e, atrelado aos instrumentos, o lugar diferenciado onde ocorrem os atendimentos.

                Diversos estudos contemplam a relação entre terapeuta e paciente; desde as preocupações Freud com a contratransferência à preocupação da abordagem cognitivo-comportamental com a relação terapêutica. No caso do AT, essas relações são completamente diferentes. O AT não é uma psicoterapia, mas uma abordagem pontual, que geralmente se inicia em momentos de crise, e raramente se mantém após a remissão dessa crise. O terapeuta deve se comportar de forma diferente daquela que ele utiliza no consultório, sob pena de não conseguir realizar o trabalho, caso se cristalize na isenção. Defendemos que o processo terapêutico só se inicia com a instauração de uma relação autêntica entre os dois, para que o paciente possa intuitivamente deslizar pela própria rigidez, a partir do momento em que tem uma pessoa diferente em sua companhia; uma pessoa que não vai reproduzir a relação cronificada que ele tem com o mundo.

                O profissional de saúde mental deve dar valor à intuição como instrumento para a sua avaliação coerente das pessoas que acompanha.  A intuição tem uma conceituação muito complicada, mas aqui, tratamo-la como uma capacidade ou o processo de apreensão de características dinâmicas relativas ao paciente e seu mundo. De acordo com a fenomenologia a intuição é uma intencionalidade, pela qual conseguimos reconhecer uma identidade dentro de uma multiplicidade (Sokolowski, 2004). Ainda de acordo com Sokolowski, nomeamos a intuição eidética, como aquela que nos permite apreender mais do que as características do outro e o próprio outro. Pela intuição eidética apreendemos as essências, o que não acontece apenas com os terapeutas, mas também com os pacientes. Este processo, quando vivenciado de forma autêntica, fornece material de trabalho para o desenvolvimento de uma intersubjetividade, que vai movimentar a relação entre acompanhante e acompanhado. Pela intuição, o terapeuta consegue estabelecer uma relação mais produtiva para o trabalho, por conseguir encontrar o canal de comunicação com o paciente, não precisando impor a ele a sua forma de viver o mundo. Assim, as vivências são compartilhadas e respeitadas, algo que geralmente não é possível com a família e outros leigos.

                Outra característica importante e diferencial do AT é o lugar alternativo onde ocorre. Não há ambiente específico para que o acompanhamento aconteça. Ocorre na rua, nos shoppings nos campos de futebol, no quarto dos pacientes, no banheiro etc. A formação do profissional deve ser muito cuidadosa, entre outras coisas, com o lugar que vai frequentar. O terapeuta deve estar preparado para entrar no ambiente do paciente, deve star preparado para se oferecer sem que o paciente queira a sua presença.

                Esses três elementos se entrelaçam no cotidiano da atividade. Não há como separar intuição eidética de relação acompanhante-acompanhado e do local diferenciado onde ocorre esse encontro. Por isso, podemos chamar o AT de uma clínica do encontro, que não pode prescindir desses três elementos e só pode utilizá-los a contento no cotidiano.

                Com essas caracterizações dos serviços aqui estudados, vimos defender o AT e o HD como atividades clínicas essenciais para o resgate de cidadania e a produção de vida não-doente de pacientes psiquiátricos.

                Uma das mais importantes atribuições do Acompanhamento terapêutico é no tratamento da Esquizofrenia. Esta atividade compõe o complexo quadro de uma atuação realmente eficaz, capaz de abarcar as necessidades médicas e psicológicas que o quadro apresenta.

               

 

Esquizofrenia e Acompanhamento Terapêutico: importância da intuição na avaliação, no diagnóstico e no tratamento.

 

A ideia de que a intuição deva ser considerada como um dos principais instrumentos no diagnóstico psiquiátrico não é unanimidade. Na clara diferença de vertentes da  psicopatologia, um dos fatores preponderantes parece ser o fator cultural. As referências em psiquiatria na América do Norte são obviamente mais pragmáticas do que as referências europeias. Para que sejam descobertos os motivos, devem ser considerados entre outras coisas os processos de formação das culturas de cada lugar, para que seja feita uma análise eficiente e tão pouco tendenciosa quanto possível. Uma boa ilustração do pragmatismo americano, na questão diagnóstica da esquizofrenia está no trecho que se segue, nas palavras de Andrew Sims:

 

“Atualmente, o diagnóstico na psiquiatria está sendo feito, cada vez mais, com base na presença de ‘critérios de diagnóstico’, que são frequentemente entidades psicopatológicas. Trata-se de um avanço considerável sobre os modos anteriores de realização de um diagnóstico, que frequentemente apresentavam semelhança maior com a intuição do que com o exame rigoroso das evidências. Um problema do uso dos critérios de diagnóstico é que diferentes autores podem usar diferentes características como gabarito. Isto é bem exemplificado pelo diagnóstico de esquizofrenia, para o qual Geddes (1993) listou sete conjuntos separados de critérios de diagnóstico...” (2001; p. 356).

 

                 

                O trecho acima dá a ideia do tal pragmatismo simplista da tendência norte-americana. Entretanto, o próprio Sims declara, no primeiro capítulo da mesma obra, que todo o seu livro é inspirado na concepção de Jaspers a respeito da Fenomenologia como ponto de partida para a avaliação psicopatológica eficiente. Sims afirma, ainda, que a Fenomenologia não é uma disciplina a ser estudada, mas “um método empático que evidencia os sintomas” (Ibidem p. 18), aproximando-se da concepção de atuação complexa, citada anteriormente.

                Para acabar, ou, pelo menos, minimizar as confusões teóricas, melhor consultar o próprio Jaspers. O que ele considera realmente importante na avaliação está relacionado ao modo como o doente lida com o seu modo de ser no mundo. Relações são estabelecidas pelo paciente esquizofrênico - com outras pessoas e consigo mesmo – e tais relações são o caminho para uma avaliação criteriosa e eficiente. A descrição do que se vê deve ser relacionada a uma interpretação sem devaneios poéticos. Segundo Jaspers, sobre alguns aspectos do quadro esquizofrênico:

 

“... vai de alterações ligeiras para o lado de incompreensibilidade até quase completa desintegração (...). Todas essas personalidades têm algo de peculiarmente incompreensível, frio, inacessível, rígido, mesmo que se manifestem lúcidas e capazes de conversar, gostando até de exprimir-se. (...) Eles, no entanto, nada vêem de incompreensível no que se nos afigura enigmático. (...) A alteração mais ceve da personalidade consiste, a bem dizer, no resfriamento e enrijecimento. Os pacientes ficam com a mobilidade diminuída, trornam-se státicos, quase sem iniciativa.” (2005; vol. I p. 533).

 

                Jaspers ressalta, em vários momentos, a necessidade de compreensão existencial do paciente. Com tal compreensão, não será definidor de diagnóstico, por exemplo, um conjunto de sintomas produtivos. Um sujeito pode ser um esquizofrênico sem que apresente delírios ou alucinações. Em suas palavras:

 

“A diferença mais profunda que existe na vida psíquica parece ser aquela a notar entre a vida para nós empática, compreensível e a vida incompreensível, por sua maneira, isto é, a vida louca, desvairada, no sentido autêntico: a vida esquizofrênica (sem que haja, necessariamente, ideias delirantes).” (2005 vol II p. 700).

 

                Fica clara a ideia de buscar uma compreensão mais global – ou complexa – do que um amontoado de critérios diagnósticos poderia fornecer. Fica claro também que a atitude fenomenológica faz uso da intuição como instrumento, sem transformar o processo diagnóstico em uma interpretação selvagem, que não leve em conta os aspectos realmente importantes. É notável o valor dado à sensação do terapeuta, na afirmação acima. Quando algo está esquisito, para nós, isto deve ser levado em consideração. A partir daí, toda uma sequência de fatos, impressões ou delírios vai construir o encadeamento lógico para a avaliação do caso. No fim das contas, o paciente poderá ter uma vasta sintomatologia produtiva e não receber um diagnóstico de esquizofrenia.

                A abordagem que defendemos não está baseada no pragmatismo da psiquiatria norte-americana, que ainda tende a enquadrar a esquizofrenia no molde dos chamados sintomas de primeira ordem, oferecidos de maneira vasta na literatura psiquiátrica e sustentados pelas fontes de maior prestígio perante a comunidade acadêmica, no que concerne a diagnósticos psiquiátricos (CID – X e DSM IV). O movimento crítico em relação ao diagnóstico simplificado da esquizofrenia se aproxima de uma atitude fenomenológica, entre outras coisas pela contestação da compilação de sinais e sintomas, como mostram as palavras de Parnas, in Maj e Sartorius (2005):

 

“Os critérios operacionais foram desenvolvidos como uma ferramenta provisória e pragmática, mas foram sendo materializados e gradualmente elevados ao status de verdade inquestionável. Portanto, faz-se necessária uma avaliação crítica dos critérios da Esquizofrenia (CID – X e DSM IV). (...) Os sintomas de primeira ordem recebem forte proeminência devido à sua presumida simplicidade, confiabilidade e à sua atratividade como modelos de sintomas médicos.” (p. 45).

 

                Ainda assim, a postura crítica pregada por Parnas permanece como algo de diferente dentro da psiquiatria e do trabalho clínico em saúde mental. Várias hipóteses podem ser levantadas, principalmente quanto ao interesse mercadológico dos psiquiatras presos aos moldes das classificações internacionais e o interesse pessoal de ascensão (também um interesse mercadológico) dos profissionais do campo da saúde mental. Mas, mais uma vez, navegar por tais teorias seria um caminho provavelmente sem volta.

                O Acompanhamento Terapêutico (AT), em sua proposta de trabalho, pode lançar mão de uma estratégia que favorece e é favorecida pela postura crítica.  A principal “ferramenta de trabalho” do AT é o encontro com o paciente. Esse encontro vai possibilitar que os dois sejam afetados um pelo outro. A partir daí, o processo estará favorecido, pois, com base em sua própria afetação, o terapeuta poderá compreender o funcionamento do paciente. Além disso, é um encontro que não se furta aos atravessamentos, de ordem material ou afetiva, tornando-se uma atividade mais exposta e, consequentemente, menos protegida do que o atendimento ambulatorial. Para o acompanhante terapêutico (at), as intervenções são potencializadas pelo ambiente onde se encontram ele e o paciente. A estratégia terapêutica deve frequentemente considerar as variáveis presentes em um encontro como esse. E é nesse encontro de forças, muitas vezes com sentidos opostos, que o campo para a vivência de uma atitude fenomenológica se apresenta.

                Consideramos, portanto, a subjetividade muito mais importante do que qualquer outro critério de avaliação e de planejamento de intervenção terapêutica. A afetação provocada pelo paciente, no terapeuta, é crucial para o trabalho clínico. Mais uma vez, em concordância com Jaspers, vemos a importância dada à intuição dentro do processo de diagnóstico em psicopatologia.  De acordo com Alfred Kraus:

 

“A classificação e o diagnóstico atual em Psiquiatria (...) baseiam-se em critérios operacionais e regras específicas de uso. Em uma medida ampla, a intuição é excluída do processo diagnóstico. A intuição do elemento esquizofrênico é principalmente identificada com o sentimento precoce. O ‘diagnostique par penetration’ de Minkowsky e o’ diagnóstico atmosférico’ de Tellenbach também são abordagens intuitivas do elemento esquizofrênico. Segundo Wyrsch, o reconhecimento da pessoa esquizofrênica não se baseia em sinais, como expressões faciais ou gestuais ou contato emocional negativo, nem apenas em uma limitação da compreensão dos motivos de outras pessoas. Segundo Wyrsch, o sentimento precoce tem a ver com uma certa modalidade do ser, uma certa maneira de ‘estar no mundo e participar dele’ (in Maj e Sartorius, 2005; p. 49)    

 

                Portanto, para o caso do trabalho com pacientes esquizofrênicos, a atitude crítica propicia um conhecimento das relações que o paciente estabelece com o mundo. Esta compreensão torna possível ao terapeuta auxiliar na promoção de mudanças que possam melhorar a qualidade de vida do paciente.

 

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