Volume 14 - 2009
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Maio de 2009 - Vol.14 - Nº 5

Psiquiatria Forense

CRIMINOLOGIA E A NOÇÃO PSIQUIÁTRICO-FORENSE DE IMPUTABILIDADE

Ruy B. Mendes Filho:
Coordenador da Residência em Psiquiatria do CHJ- Secretaria do Estado da Saúde. São Paulo.
Hilda C.P. Morana:
Coordenadora do Departamento de Ética e Psiquiatria Legal da ABP.

É certo que o “crime” assim como a “imputabilidade” são termos jurídicos que apresentam significados definidos legalmente. O que se pretende discutir neste artigo é se a ligação entre essas ocorrências legais e a psiquiatria forense está suficientemente esclarecida.

O objeto principal da ligação entre criminologia e psiquiatria é, em poucas palavras, se há correlato entre transtorno mental e criminalidade. O nexo causal é a ligação estrita entre o fato caracterizado como delito e as condições definidas legalmente como entendimento e auto-determinação com noção do caráter ilícito dos atos. Nem sempre porém, a avaliação dá-se pelo estrito nexo causal. Pode ocorrer a eventualidade de que certos atos sejam compreendidos pelo agente como ilícitos, até mesmo na vigência de um transtorno mental psicótico. Porém, como os quadros psicóticos ou síndromes de comprometimento mental mais abrangente traduzem ruptura com a realidade objetiva consensual, nesses casos considera-se o agente inimputável. È claro que deve haver evidência de que no período dos atos caracterizados como ilícitos já ocorria o transtorno mental.  Observe-se que não se trata da constatação óbvia de que certas características mentais propendem ao crime e sim de se transtornos mentais estão relacionados à criminalidade. A primeira afirmação, ainda que válida, não é do âmbito psiquiátrico. No entanto, mesmo delitos banais sem relação intrínseca, ou nexo causal direto, com o transtorno mental, como por exemplo um furto ou um ato contra patrimônio, seria avaliado de modo distinto se ocorreu na vigência de psicose, demência ou deficiência mental.

O núcleo do problema está na categorização de “transtorno mental”. Se verdadeiramente a psiquiatria for capaz de evidenciar quadros sintomatológicos e correlações etiopatogenéticas  inequívocas, o problema estará resolvido.  Não é, infelizmente o caso mais comum, pois a avaliação das situação  carece de dados objetivos com muita freqüência.

O dado principal não se resume, no tema, a encontrar correlação funcional ou orgânica entre certas estruturas cerebrais e condutas mais ou menos desviantes, mas a determinar as razões desses achados e verificar a relação destas com as ocorrências caracterizadas como crime.

A Psiquiatria validou com razoável grau de precisão os quadros clássicos de síndromes como a demência, o delirium, os quadros amenciais e psicóticos mais variados, mas resta delimitar as síndromes que envolvem principalmente o desenvolvimento mental. Como exemplo dessa dificuldade está a caracterização da deficiência mental, que oferece transição quase imperceptível no que diz respeito à inteligência, mas que é de fato um quadro de insuficiência global do desenvolvimento, afetivo e cognitivo. Assim, a síndrome de deficiência mental pode ter vários determinantes etiopatogenéticos e cabe à psiquiatria estabelecê-los. Se encontrada essa correlação, a deficiência mental caracteriza-se como claramente mórbida. Os fatores de sua determinação podem ser genéticos, constitucionais ou mesmo acidentais (de origem tóxico-infecciosa), os quais tendo incidido, levam ao estado de insuficiência na vida adulta. Portanto, dizer que a deficiência mental não é patológica só é válido no sentido de que já não está em vigência um processo patológico atual, mas que esse estado deveu-se a patologia do desenvolvimento é inequívoco, se o quadro for bem caracterizado.

Dentre os vários aspectos dessa dificuldade que enfrenta a psiquiatria está o tópico, especialmente controverso, dos transtornos específicos da personalidade, as antigas “personalidades psicopáticas”. Neste caso especial é necessário, antes de mais nada, decidir se tais condições são mórbidas e em que sentido. Sabe-se que em grande parte desse grupo de ocorrências não estão em jogo quadros clínicos, em acepção médica e sim apresentações da conduta, que se desviam de padrões normativos. É bem reconhecido o fato de que, se há lesão ou evidência de perturbação orgânica determinada (de origem infecciosa, tóxica ou neurodegenerativa) a psiquiatria diagnostica “alterações orgânicas da personalidade” e não “transtornos específicos”.

Portanto, o que está em jogo para a psiquiatria não são “padrões de conduta” e sim conjuntos sintomatológicos ou síndromes que possam ser reconhecidos em suas bases funcionais. De fato, esses quadros traduzem também síndromes do desenvolvimento, só que no caso, dizendo respeito à vida afetiva e ao controle volitivo. Claro está que é mais do que admissível essa insuficiência do desenvolvimento afetivo.

Afirmar simplesmente que delinqüentes contumazes ou graves são psicopatas seria de um simplismo inaceitável, pois arrasta-se para o terreno biopsicológico um domínio institucional, ou seja, os termos jurídicos que definem transgressão. O tipo de crime não define o agente, inclusive em seus aspectos subjetivos, ainda que indique, eventualmente, certas modalidades de perturbação mental.

A questão, enfim, se resume da competência da psicopatologia e, no seu conjunto, da psiquiatria para superar esse impasse: qual a base etiopatogenética dos assim denominados transtornos específicos da personalidade?

Em outro extremo há o caso daqueles que discrepam na conduta daquilo que se considera aceitável ou certo no âmbito psicossocial.  “Encrenqueiros”, “embusteiros”, “dissimulados”, “vagabundos”, “retraídos” ou “hostis”. Tais foram alguns dentre tantos termos utilizados pela psiquiatria nascente, com clara conotação ético-social. Mas, questões ainda muito mal resolvidas são dissimuladas pelos termos “paranóide”, esquizóide”, esquizotípico”, narcisista”, histriônico”, etc...

Com efeito, se alguém possui personalidade totalmente paranóide então é psicótico. Assim como totalmente esquizóide, esquizofrênico. E, ainda, se uma pessoa é inteiramente “histriônica” só representa papéis sociais, sem nenhuma autenticidade ou internalização normativa. E se é completamente narcisista, seria incapaz de sair de si mesma. O problema principal está na compreensão dos termos psicopatológicos.

Histrionismo, por exemplo, é uma designação referida à fácil excitação dos movimentos expressivo, no sentido de Wernicke. Ora, essa expressividade fisionômica e gestual pode corresponder a condições mórbidas ou não. No primeiro caso, há diferentes determinantes para o histrionismo: Imaturidade afetiva global, desvio psicopático           (histrionismo como representação de condutas “normais”, no perverso e histrionismo como afetação e hipersensibilidade afetiva, no hiperemotivo). Há também o caso do histrionismo relacionado a reações dissociativas ou conversivas muito freqüentes na história pessoal, devidas à sugestionabilidade e à baixíssima tolerância a frustrações       (pitiatismo de Babinsky).  Por outro lado, o histrionismo pode ser apenas um traço de expressividade e até mesmo originado em condições histórico-culturais (conduta dos cortesãos no século XVIII, período iluminista).  

A conduta antissocial oferece a mesma dificuldade e idêntica pluralidade de determinações. Podendo ser devida a descontrole dos impulsos, seria então relacionada aos quadros do espectro impulsivo–compulsivo (borderlines, lábeis e explosivos). Mas, é igualmente imperceptível a transição entre delinquência comum e quadros psicopáticos mais graves, sem estudo clínico consistente. No caso mais acentuado de psicopatia encontra-se a deficiente integração dos impulsos (sexuais, hostis e de afirmação individual) aos estados de sentimentos correspondentes à empatia e consideração pelos demais. Tais impulsos dirigem fortuitamente a conduta consciente, sem conflitos ou sofrimento moral. 

Só a avaliação meticulosa do desenvolvimento pessoal e do modo como o indivíduo integrou os seus relacionamentos no transcorrer de sua história é que possibilitará validar o diagnóstico de psicopatia. No caso, portanto, da psicopatia, é necessário avaliar com critérios bem estabelecidos a dinâmica de integração afetiva e de controle dos impulsos (volição ou determinação voluntária ) no curso do desenvolvimento pessoal.  

Convém que tais termos sejam depurados de acepção absoluta, para que possam designar atributos ou traços às vezes parciais e nem sempre manifestos. A dificuldade principal reside em evidenciar quando e de que modo se manifestam  tais traços ou tendências, pois sabe-se que são compartilhados por quase todas as pessoas, em maior ou menor grau e extensão. È dessa verificação, de padrões que se manifestam nas mais diversas áreas de funcionamento pessoal que resultará maior validade e precisão no diagnóstico de psicopatia.   

 

Finalmente, a questão médico-legal da imputabilidade.

Observe-se que aí se pisa em terreno jurídico e não mais psicopatológico. Infelizmente a linguagem jurídica está ainda impregnada de termos absolutos, o que se constata com muita freqüência nos próprios quesitos de laudos: “é o agente totalmente incapaz de entender o caráter ilícito de seus atos?”, “é o agente completamente incapaz de se auto-determinar, tendo  em vista  o caráter ilícito dos atos?” Ora, a rigor, “totalmente” ou “completamente” só seria o caso em síndromes demenciais avançadas, em deficiências mentais muito graves ou em ruptura drástica do nível de consciência. Nos casos mais comuns ocorre “relativa” incapacidade de se orientar ou de se conduzir, bastando entretanto a constatação de uma síndrome de desvio cognitivo de feitio psicótico ou com grave repercussão sobre a conduta,  que resulte em desorientação quanto aos atos praticados ou de descontrole quanto a esses mesmos atos. Daí a tradição jurídica de considerar inimputáveis quadros demenciais, psicóticos e de deficiência, mesmo não havendo a rigor “completa” incapacidade.  Sabe-se que nenhum portador de esquizofrenia é completamente incapaz, mas o perito responderá “sim” aos quesitos apresentados de modo absoluto, pois dizer “não” evocaria outra figura jurídica, a do perturbado ou semi-imputável.

Os indivíduos portadores de psicopatia não são “semi-loucos”, como ainda se menciona em texto jurídico. Essa comparação não tem nenhum sentido em psicopatologia. A psiquiatria caracteriza as antigas personalidades psicopáticas como pessoas desequilibradas ou desajustadas, mas não com desvio significativo da cognição. A caracterização da semi-imputabilidade indica que fica a critério da Autoridade Judicial  a aplicação da pena.  No entanto, em termos psicopatológicos, o perito está mencionando simplesmente que o portador dos transtornos específicos da personalidade oferece risco maior de reincidência ou de cometer outros delitos, mas não como afirmação absoluta. Assim, semi-imputabilidade não exclui necessariamente pena e não implica também obrigatoriamente tratamento viável. Daí a extrema dificuldade de caracterização dessas condições.


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