![]() ![]() Volume 14 - 2009 Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini |
Novembro de 2009 - Vol.14 - Nº 11 Farmacoterapia OS ANOS SESSENTA OU TODAS AS DÉCADAS SÃO IGUAIS, APENAS UMAS SÃO MAIS QUE IGUAIS QUE AS OUTRAS... J. Romildo Bueno Da
década de sessenta, pode-se dizer que apesar de oficialmente ter-se iniciado no
primeiro de janeiro de 1960, passou por 1989 derrubando o muro de Berlin e não
terminou nem com a virada do século que,
por previsão de Nostradamus nem
deveríamos ter atingido. E
por quê? Pois,
em psiquiatria e por razões diferentes das políticas, nos anos que se seguiram aos de
cinqüenta nada de novo aconteceu e que
bom que assim tenha sido: progredimos um século em uma década e é justo que
ruminemos o produto nas próximas... Nesse período, maravilhas e coisas maravilhosas se sucederam: na
literatura, o realismo fantástico de
Garcia Marquez, Cortazar, Veríssimo, Vargas Llosa substituiu o realismo mágico de Rulfo e o hiper-realismo
de Burroughs, Kerouac e
Durrel; mesclou-se à literatura construída, conceito meio vago criado pela OuLiPo de Perec, Quéneau, Bernabon, Ítalo Calvino, Marcel Duchamp,
Lúcio Cardoso, Clarice Lispector e seguidores
como Böhl, Grass e Butor desembocando,
imbricando-se no nouveau Roman de Robbe
Grillet e Duras e criou novas-velhas formas de narrativa. Nas artes, o hiper-realismo
de Warhol, Grüber, Stipl, Piccini, Kuebler transforma a fotografia em coisa irreal... No cinema, da nouvelle vague – Godard, Truffaut, Malle, Rohmer, Varda, Demy, Bresson
– até o cinema novo – Glauber Rocha,
Walter Hugo Khouri, Nelson dos Santos – passamos pelo
cinema de Nova Iorque – Cassavetes, Scorcese, Cimino, Lumet e pelo Actor’s Studio que vai influenciar Kazan,
Kubrick, Aldrich e desembocamos no pós neo-realismo – Bertolucci, Pasolini, Bolognini, Bolognini, Scola,
Germi, Zurlini. E o homem chegou à
lua!!! ... após o sucesso
das missões LUNIK ao final dos anos cinqüenta e que foram as primeiras a nos
enviar fotos dos “selenitas”... Em medicina, o final do que se convencionou chamar de segunda guerra mundial o progresso é acelerado, quase
atinge a velocidade do som: anti-maláricos são criados pela necessidade, o
abuso de antibióticos desemboca na resistência
bacteriana coisa impensada, novas cepas de micro-organismos conduzem à
síntese de antimicrobianos cada vez mais potentes e mais tóxicos, o microscópio eletrônico revela-nos uma multidão de vírus, o sucesso da vacina anti-pólio e a criação de tantas outras
erradica doenças antes fatais, no tratamento da hipertensão arterial convive-se
com a mudança dos bloqueadores ganglionares e dieta
hipossódica para os saluréticos e agentes anti-hipertensivos de ação renal,
a tuberculose recua junto com outras doenças transmissíveis – a esquistosomose continua onde sempre esteve: sem tratamento
– a semiologia armada avança a largos
passos – hoje o diagnóstico clínico é coisa de museu, só é válido se confirmado por exames ditos complementares – e no hemisfério
norte... consolida-se o império do seguro saúde! ...
e no Brasil aconteceu a REDENTORA que, além de não nos redimir entre sangue,
suores e lágrimas, consolidou o status quo que nos
legou como bendito fruto o POPULULISMO... A primeira conseqüência de tamanho progresso é a “medicamentalização” do cotidiano,
quase como uma reação à
excessiva “psicologização”
do dia-a-dia que se observara nos
quinze anos anteriores... Tem-se como pressuposto que a ampliação da “cobertura
da assistência médica” ou a “universalização
do direito ao melhor tratamento” passa forçosamente pelo emprego de vacinas
– prevenção primária – e chega ao TRATAMENTO
medicamentoso ou cirúrgico – prevenção terciária. O fenômeno abrange a medicina enquanto atividade que melhora a qualidade de vida e diminui o absenteísmo laboral além de aumentar o
número de dias vividos seja pelo
aumento da expectativa de vida, quer pela prevenção de atos de auto-aniquilação. Como a psiquiatria
moderna “nasceu” nessa era de progressos, inevitável tornou-se sua “medicamentalização”
que precede infortunadamente sua “medicalização”. Desse pequeno tropeço, surgem os movimentos da “anti-psiquiatria” e posteriormente já ao final da década
de setenta, a negação da doença mental enquanto
entidade médica, clinicamente comprovada... E, entretanto, se jamais houve uma “década do cérebro”, sem dúvida ela
ocorreu de 1º de janeiro de A clínica
psiquiátrica, ainda atordoada com a enxurrada de medicamentos que lhe caiu no
colo e sem saber o que fazer começou a combinar medicamentos e criar hipóteses que deveriam não apenas
esvaziar os manicômios como tratar todos os indivíduos, algo como a fluoração
da água potável para eliminar cáries ou a iodetação
do sal de cozinha para acabar com o bócio... De 1960 em diante, criaram-se hipóteses, algumas nem mereceriam o ‘codinome’ de “supóteses”. Como soe acontecer, a
partir de uma mera hipótese que não consegue superar o crivo da refutação, a
vaidade dos pigmaliões científicos cria adendos a que se
convencionou denominar de hipóteses ad-hoc a quem compete comprovar a hipótese original, primeira que deveria ser descartada
por não ter resistido ao choque com a
hipótese negativa, com sua refutação pura e simples. E,
com isso, vivemos a milagreira era da multiplicação
das hipóteses... Deixando de lado os malabarismos intelectuais que sustentam
serem as chamadas ciências humanas
diferentes das outras manifestações científicas e, por isso não são reguladas pela lógica da
pesquisa, diversos psiquiatras embrenharam-se em problemas neuroquímicos,
biofísicos, fisiológicos e, a partir dos dados daí oriundos esboçaram uma
construção para entender o funcionamento
do cérebro chocando-se com a opinião de Habermas para quem tal função só
poderia ser entendida enquanto ocorrendo,
em plena “acontecência” e, para isso, só se criando um auto-cerebroscópio... Na ausência de tão mirabolante instrumento, contentamo-nos
com as neuro-imagens funcionais. E tudo começou quando os neuro-transmissores
foram envolvidos com os mecanismos de ação das substâncias psicotrópicas, medicamentosas ou não. Ainda nos anos cinqüenta, B.
B. Brodie postula que as esquizofrenias poderiam ser
devidas ao acúmulo de substâncias psicodislépticas,
alucinógenas no cérebro de seus padecentes. Posteriormente, propôs que os
efeitos antidepressivos da imipramina dar-se-iam pela soma
de seus efeitos próprios mais os de seu metabólito ativo, a desmetil-imipramina e de novo
envolvia os dois principais neuro-trans- missores: serotonina e nor-adrenalina. Dessas propostas iniciais a década de sessenta criará
uma cascata de hipóteses cuja convivência persiste até hoje... Comecemos com
nosso fantasma na máquina: as
esquizofrenias. Smythies, Osmond
& Oswald afirmam ter detectado em amostras urinárias de pacientes
esquizofrênicos, e tão somente nessas
mostras, utilizando cromatografia de camada fina uma mancha bem determinada
a que denominam de mauve spot, posteriormente confirmada por Friedhoff & van Winckle que
não a consideram tão mauve assim e a renomeiam
como pink spot apesar de ocupar na
coluna cromatográfica o mesmo local e com as mesmas características. Alvoroço na taba psiquiátrica: um simples exame de urina poderia auxiliar no diagnóstico das esquizofrenias...desânimo nas hostes psicanalíticas: uma simples mancha urinária botava por terra
o jamais testado “complexo de Édipo” e sem complexo de
Édipo, adeus “banquete totêmico” e sem totens não há tabus e sem interdições
não há culpa e sem culpa extingue-se a reparação pela “cura psicanalítica”... Posteriormente, Friedhoff
& van Winckle fazem mais identificam a substância presente no Pink spot: trata-se da DMPEA -dimetóxibetafeniletilamina. Providenciam-se testes em “voluntários sadios” já com
a substância sintética: a DMPEA é
desprovida de efeitos alucinógenos... Ai entra em cena a hipótese
ad-hoc: com
certeza, a DMPEA não é o produto ativo, mas sim o metabólito final de
outras substâncias polimetiladas derivadas da beta feniletilamina como, por exemplo a
trimetóxifeniletilamina que é também conhecida pela alcunha de mescalina! Estava aberta a via para a elaboração da hipótese dopaminérgica da gênese das esquizofrenias
que chegou a eleger o núcleo acumbens como “sede” da doença. Arvid Carlsson, ganhador do prêmio Nobel de Medicina por
seus trabalhos nessa área declarou no primeiro semestre desse ano a uma
publicação de um Instituto de Pesquisa escandinavo que não mais acreditava em tal hipótese e, se fosse só por ela, não seria merecedor
de tamanho galardão... honestidade acima de tudo,
maior mérito do bom cientista!!! Logo a seguir, Tanimukai, Himwich, Pschdeit e Bueno ( no caso, eu...) publicam série de intrigantes trabalhos:
precedendo a eclosão do surto esquizofrênico em pacientes crônicos não-tratados
e durante sua vigência isola-se da urina
desses pacientes uma série de substâncias: 5-OH-dimetiltriptamina
(bufotenina), 5-MeO-dimetiltriptamina e 6-MeO-dimetiltriptamina,
todas dotadas de propriedades alucinogênicas nos chamados “voluntários sadios”. A hipótese corre como se segue: precedendo o surto, devido à
diminuição de ingesta, há “quebra” de proteínas
musculares que liberta amino-ácidos
doadores de grupos metil, como a metionina, a cisteina. Ai entra em cena a transmetilase que promove a polimetilação
e a polimetoxilação dos neurotransmissores e cujo resultado
final seria a auto-síntese de
substâncias alucinógenas que, por seu turno, desencadeariam o quadro
delirante-alucinatório. Os neurolépticos-antipsicóticos
bloqueiam a transmetilase e essa foi a única variável testada a
seguir, uma vez
que a hipótese maior e suas variáveis
múltiplas não foram colocadas em cheque pois já estávamos in the age of aquarius e sob o domínio da equação esquizofrenia=dopamina. De qualquer modo, despertou o interesse de pesquisadores da
indústria que chegaram a lançar um neuroléptico serotoninérgico: a oxypertine
que chegamos a testar no IPUB e no Sanatório Botafogo ainda no estágio de
determinação de doses eficazes. Como qualquer substância nova mereceu o adjetivo de promissora. De qualquer modo, o ciclo estava fechado: neuroléptico-antipsicótico digno do nome deve bloquear os
receptores D2 e estamos conversados;
melhor dito, estávamos conversados, pois eis que
caindo do céu-azul estatela-se no pátio dos hospícios a clozapina, fraco bloqueador de D2, interfere
mais com D4 e uma gama de receptores serotoninérgicos... O núcleo acumbens quase se transforma em “sucumbens” não fora a utilização da clozapina
proibida devido aos seus efeitos sobre a crase sangüínea. Em nosso trabalho de 1974, em colaboração com Roberto
Piedade, observamos ser a clozapina tão eficaz quanto
a clorpromazina, mas muito
melhor tolerada, sem os efeitos extra-piramidais dos neurolépticos-antipsicóticos
até então Como se vê, hipóteses eram feitas, descartadas antes de testadas
e, se verificadas, recebiam logo um adorno ad-hoc... será que algo mudou? Terão afinal se encerrados os anos
sessenta?... Ainda no que diz respeito às
esquizofrenias, os tempos vivenciaram os trabalhos de Bowlby
sobre apego, as experiências etológicas de K. Lorenz sobre períodos críticos de
desenvolvimento e hoje mesclamos tudo isso colocando no mesmo cesto as
influências genéticas, os neuro-transmissores, o
desenvolvimento e a maturação cerebrais, parece um saco sem fundo e escuro:
quanto mais se sabe da minúcia, menos se vê do conjunto, do “ser”, daquele que adoece... Necessário se faz saber se estamos face à
uma doença que se apresenta de forma polifacetada ou se cada faceta é uma doença diferente, uma entidade clínica definida. Resolvido esse impasse, hipóteses mais
precisas poderão ser elaboradas e testadas. Fica claro, logo de saída que nada adianta continuarmos a
falar sobre homeostásia apenas, a alostasia e
os fenômenos epigenéticos
têm tamanha importância que, talvez melhor fora começar por eles... Em linguagem clara: sabemos muitíssimo mais, mas ainda falta
a saída do labirinto que,
segundo indicam os dados pode estar próxima... se
conseguirmos juntar as partes... Se conseguíssemos um elo entre fatores genéticos, maturação
cerebral e perda seletiva de sinapses com plasticidade neuronal, neurogênese e sinaptogênese seria
um bom começo; a partir daí entrariam os moduladores cerebrais, os diversos
neurotransmissores e os tipos e sub-tipos de
receptores que, por sua vez podem interagir com intervenções terapêuticas
diversas e inespecíficas... caramba! onde estávamos
mesmo? Em outra área, a da ansiedade, as coisas caminhavam bem com
a hipótese de o GABA
funcionar como carro-chefe da neurotransmissão no
sistema límbico. A partir dos trabalhos de Papez, Moruzzi &Magoun e McLean começamos a ter uma visão de como se exteriorizam as
emoções humanas. O sistema límbico que
congrega a amígdala temporal, o hipocampo, o hipotálamo o giro cíngulo e o
córtex pré-frontal recebe informações do sistema mesodiencefálico de ativação – formação reticular – o que
implica dizer que a ativação cerebral é necessária para a exteriorização das
emoções e isso ocorre no estado vigil e durante a
fase paradoxal do ciclo de sono: essa informação acaciana consumiu dezesseis anos de pesquisa para comprovação... Os neurotransmissores responsáveis pela vigilância, pelo estado de alerta
são a dopamina e a nor-adrenalina que tem seus
efeitos ativadores contrastados pela ação do GABA ao nível do hipocampo. Ao
abrir os canais de cloro controlados pelos receptores gabaérgicos
do hipocampo esse passa a agir como um disjuntor
do circuito límbico retro-alimentado: um estímulo necessário e suficiente
desencadeia a reação adaptativa de ansiedade, cessado o estímulo o GABA é
liberado e o circuito interrompido no hipocampo. Em havendo estímulos
adicionais que atinjam o córtex frontal, entra em ação o circuito retículo-fronto-reticular que eleva o limiar do sistema mesodiencefálico de ativação; tudo muito simples e
previsível... Quando o disjuntor não
funciona a reação – ansiedade – se retro-alimenta e desemboca em um estado ansioso, ansiedade patológica e,
nessa situação, o padecente nem mais se lembra qual foi o estímulo – ou seu somatário – que desencadeou o fenômeno. Os benzodiazepínicos são agonistas
gabaérgicos que possuem atividade intrínseca superior à
do GABA, além de permanecerem ligados ao
receptor por muito mais tempo por não disporem de sistema metabólico
local, daí sua elevada eficácia ansiolítica. Num repente, as coisas se complicam... Com as novas classificações, os transtornos de ansiedade passam a englobar uma
série outra de condições clínicas além da ansiedade que merece a rubrica de transtorno de ansiedade generalizada (TAG) e
que são as seguintes: transtornos fóbico-ansiosos,
fobia social fobias específicas, pânico, transtorno obsessivo-compulsivo,
transtorno misto de ansiedade e depressão. O busílis é que a maioria
desses transtornos respondem melhor aos antidepressivos, principalmente aos inibidores
seletivos de recaptura de serotonina- ISRS – que aos
benzodiazepínicos de mesmo modo a timopatia ansiosa (ataque de pânico) de Lopez Ibor
(pai) respondia melhor aos inibidores de
MAO na longínqua década de
cinqüenta. Entrou um fantasma na máquina... Fibras serotinérgicas oriundas do
núcleo da rafe medial chegam ao hipocampo, à
amígdala, ao giro cíngulo e aos córtices pre´-frontal e frontal. Conseqüência imediata: formula-se uma hipótese ad-hoc e a serotonina
ganha o status de neuro-modulador q ue “regula” a função gabaérgica
que, por sua vez, freia a atividade causada pela liberação de dopamina e de nor-adrenalina e... E assim, de hipótese ad-hoc
para hipótese principal caminha a ciência... o mundo
gira e a “Lusitana” roda... ![]()
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