Volume 14 - 2009
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Outubro de 2009 - Vol.14 - Nº 10

COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA

UMA NOVA TEORIA DOS SONHOS

Leonardo Cardoso Portela Câmara
Fernando Portela Câmara

A teoria psicológica dos sonhos dominou grande parte do século XX, incluindo aí a psicanálise (Freud), a psicologia analítica (Jung), e a Gestalt (Pearls) dentre as mais conhecidas e importantes. Contudo, desde a descoberta do sono REM (“rapid eye movement”) o mecanismo neural íntimo dos sonhos vem sendo gradualmente compreendido. Tais estudos avançaram o suficiente para se relacionar fisiologicamente o sonhar (mais especificamente o sono REM) com a consciência. Em um artigo recente na Nature Neuroscience, o psiquiatra J. Allan Hobson (2009) sugere que os numerosos dados agora disponíveis sobre o sono REM nos permitem considerar este estado como um estado protoconsciente, que simula continuamente o mundo fornecendo um modelo para orientação e tomada de decisões à consciência desperta. Em outras palavras, Hobson considera haver suficiente evidência para que possamos afirmar serem os sonhos um “estado paralelo de consciência que funciona continuamente, porém que é normalmente suprimido enquanto a pessoa está desperta”.

Ursula Voss coordenou um grupo de pesquisas, no qual Allan Hobson colaborou, para analisar ondas cerebrais durante o sono REM, o despertar e o sonho lúcido, usando um EEG de 19 canais (Voss ET al., 2009). Descobriram que o sonho lúcido tinha elementos de REM especialmente nas áreas frontais do cérebro, que nos sonhos normais estão calmas. Estes achados foram uma importante contribuição para a psiquiatria, pois, o sonho lúcido é definido como um estado dissociativo onde se combina uma atividade onírica alucinatória com uma consciência reflexiva semelhante à desperta. Este estado pode ser induzido voluntariamente (o estudo usou seis indivíduos treinados), O trabalho de Voss e col. (2009) mostra que a tese original de Hobson pode estar certa, isto é, que os dois sistemas (sono REM/sonhos) e consciência podem funcionar ao mesmo tempo. Estas descobertas poderão trazer importantes contribuições para a psiquiatria, por exemplo, pode ser que a esquizofrenia decorra de uma ativação anormal da consciência onírica no estado desperto; ou que a narcolepsia decorra de uma intrusão do sono REM na consciência desperta.

Os sonhos são manifestações da fisiologia cerebral, da atividade de redes neurais processando cenários visuais, sonoros, afetivos, etc, que mantém a consciência orientada e sintonizada com o mundo e nossas relações com os outros e nós mesmos. Em outras palavras, os sonhos – mesmo que não nos lembremos deles – têm uma função fisiológica, cujo desempenho consiste em ajustar a mente para assumir o estado de consciência ao despertar. É interessante notar a proximidade desta hipótese com um grupo de teorias sobre a natureza do sonho que Freud cita em sua obra “A interpretação dos sonhos” (Freud, 1969). Segundo tais teorias, o sonho seria principalmente caracterizado como um estado parcial (incompleto) de vigília, que ao longo do sono caminha progressivamente para a sua completude (isto é, a consciência desperta), sendo ainda um processo unicamente somático, cuja efusão de imagens seria aleatória e dependente da reativação de células nervosas.

Freud assumiu uma posição epistemologicamente diversa, uma vez que, ao contrário de explicar o fenômeno do sonho, buscou compreender o mesmo enquanto dotado de significados inerentes à subjetividade do sujeito, distanciando-se radicalmente da dimensão fisiológica. Hobson, ao contrário, retornando à tradição científica abandonada por Freud, não trata do significado dos sonhos, mas da sua função na economia nervosa, partindo de um ponto de vista positivo, com metodologia e experimentação controlada. Deste modo, não discute a validade ou a refutação das teorias psicológicas, valorizando somente o enfoque neurofisiológico. É sabido que o sono REM facilita a consolidação de conexões neurais, particularmente nas áreas visuais, e como este sono já aparece na fase intrauterina, não é impossível que o feto já possa “ver” algo antes mesmo de seus olhos abrirem-se para a luz. Os sonhos como nós os conhecemos vêm muito depois. Seu conteúdo, de acordo com esse raciocínio, é um tipo de teste grosseiro para o que o dia seguinte pode trazer.

Pessoalmente, preferimos adotar o método de Wundt, tentando encontrar um divisor comum entre a experiência introspectiva e os dados positivos da neurofisiológica. Acreditamos que paralelamente à nossa consciência desenvolve-se um mecanismo inconsciente de busca e de mineração de dados que funciona continuamente. Muitas vezes topamos com uma situação ou uma questão para a qual não temos uma decisão pronta, um comportamento pré-esquematizado ou um conceito instrumental. Após algum tempo, quando estamos ocupados com outra coisa, ou na manhã seguinte, ao despertar, nos vem a resposta desejada já pronta. Matemáticos, compositores, cientistas, escritores, muitas encontram uma solução durante um sonho vívido ou na manhã seguinte, ao despertar. Vemos situação semelhante em pessoas cronicamente ansiosas devido a uma experiência traumática (incluindo o transtorno de estresse pós-traumático), sonharem repetidamente o mesmo sonho. Cada sonho não é exatamente igual a outro, havendo sempre uma pequena variação, parecendo que o cérebro está testando uma solução mais adequada, como acontece com processadores que operam no modelo de redes neurais artificiais. A certa altura, o indivíduo pára de sonhar, sua ansiedade se autorregula e ele retoma sua vida sem mesmo ter consciência de que seu problema foi solucionado. Algumas vezes o cérebro não possui um repertório vivencial suficiente para testar uma solução, e então utiliza toda situação que chega do meio: leituras, notícias, filmes, novelas, versos de uma música, etc. É neste particular que as terapias, quaisquer que sejam, têm suas utilidades, pois, fornecem inadvertidamente e involuntariamente dados para que a computação paralela prossiga. De fato, nem sempre o paciente abandona a terapia por questões transferenciais, mas unicamente porque o terapeuta forneceu sem saber ou planejar os dados necessários ao reajuste interno, ou seja, muitas vezes o abandono é expressão de uma cura não consciente tanto para o sujeito quanto para o psicoterapeuta.

Não sonhamos apenas dormindo. Tem razão Allan Hobson quando afirma que despertos também sonhamos, um processo que é contínuo.

Referências

·        Freud, S. A interpretação dos sonhos (1900), vol. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

·        Hobson, JA. REM sleep and dreaming: towards a theory of protoconsciousness, Nat. Rev. Neurosci, 2009; 10: 803-813.

·        Voss U; Holzmann R; Tuin I; Hobson A. Lucid dreaming: a state of consciousness with features of both waking and non-lucid dreaming, Sleep 2009; 32: 1191-1200.

 

Nota sobre o sonho lúcido


O sonho lúcido é um estado em que despertamos dentro de nossos sonhos, ou seja, tomamos consciência dos nossos sonhos e passamos a atuar como um observador externo. Este estado, já definido como “um pitada de consciência dentro do sono REM”, pode ser também voluntariamente induzido através de auto-sugestões ao deitar ("sou capaz de estar consciente nos meus sonhos”, “observo meus sonhos”, “desperto dentro dos meus sonhos”, etc). Uma coisa importante a observar nesta prática são os sinais indicadores de sonho (os interruptores não funcionam; as pessoas não nos ouvem gritar ou é impossível gritar; é possível levitar). O trabalho de Voss e col. (2009) mostra que o sonho lúcido é um estado híbrido de consciência.


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