![]() ![]() Volume 14 - 2009 Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini |
Março de 2009 - Vol.14 - Nº 3 COLUNA PSIQUIATRIA CONTEMPORÂNEA PSIQUIATRIA E ESTATÍSTICA. PARTE IV: A HIPÓTESE NULA Fernando Portela Câmara, MD, PhD Muita gente pensa que a hipótese nula é uma
bobagem, artifício de estatística, o que é um grave erro. Vejamos as
implicações deste importante princípio para a experimentação científica. Ao formular um experimento, devemos antes desafiá-lo
mediante a hipótese nula para ver se vale a pena prosseguir. Isto significa ter
que descartar a hipótese nula para tornar razoável a nossa hipótese de trabalho,
o que nem sempre é possível. A hipótese nula é o princípio que nega a priori qualquer teoria, atribuindo o
fenômeno observado a um mero efeito do acaso. O grande desafio da análise de
dados é estabelecer testes seguros para rejeitar a hipótese nula. Idéias científicas
brilhantes podem não ter valor algum quando suas conclusões não conseguem
superar satisfatoriamente a hipótese nula em uma inferência estatística. Outro
grande problema está em rejeitar a importância da estatística em avaliar
resultados e em tomadas de decisão. Há também os que defendem o conceito
“justificado” de "hipótese infalsificável", ou seja, que suas
hipóteses são sempre corretas, e mesmo que as evidências disponíveis apontem o
contrário, sempre alegam que, se as previsões não estão corretas, é porque
ainda é necessário mais informações. Ora, trata-se apenas de um artifício de
retórica para justificar uma má pesquisa. Em qualquer experimento deve-se
desafiar a conclusão com a hipótese nula. A pesquisa científica parte de observações
cuidadosas que ganham importância à medida que são confirmadas por observadores
independentes, bem como de experimentos planejados para testar hipóteses sem
vieses que visem conformá-las ao interesse do pesquisador, mas desafiá-las no rigor da hipótese nula para assim afirmar uma
conclusão. Se a hipótese resiste aos mais variados experimentos e
observações ela se transformará numa teoria, mas não numa verdade, pois, toda
hipótese científica é em si mesma falseável, como ensinava Popper, e sempre
será, mais cedo ou mais tarde, substituída por outra melhor ou radicalmente
diferente. Publicar trabalhos com dados interpretados
dentro de teorias estabelecidas sem questionar tais teorias produzem atraso
considerável no desenvolvimento científico, pois, rejeita-se
muitas vezes evidências valiosas por não se conformarem ao paradigma vigente.
Há muitos exemplos deste conformismo, hoje disseminado devido à obrigação de se
publicar para se manter o status
acadêmico. Trabalhos que fogem ao conformismo dominante são mais freqüentemente
rejeitados e isto porque o conservadorismo ou “sabedoria convencional” é
dominante dentro do meio científico. A maioria dos pesquisadores parte do
seguinte princípio: “Será que eu posso interpretar meus dados de acordo com a
teoria X?”. Se isso não acontece ele tende a abandonar
sua experiência e passa para outra. Por outro lado, se ele pode explicar seus
dados dentro da teoria X, teremos uma enxurrada de trabalhos repetitivos tipo
“eu também!”, e são estes os indivíduos que fazem a
política do “quanto mais publicar melhor para você”. Entretanto, o pesquisador mais
produtivo para a ciência não é aquele que publica enxurradas de papers encaixados numa teoria corrente,
mas aquele que diz a si mesmo “Como posso
interpretar meus dados?”. São estes que, não produzindo tanto, produzem os trabalhos
que mais contribuem para o avanço de um conhecimento. A contribuição científica será tanto maior
quanto menos se procura trabalhar para conformar um experimento a uma teoria
vigente, e mais se procura desafiar a hipótese nula que, em última análise,
rejeitará ou não uma diferença entre a teoria vigente e o resultado de uma
análise neutra. Isto constitui um verdadeiro avanço, e normalmente tais avanços
esbarram na resistência do establishment
que, como já vimos, é conservador. Contudo, à medida que os resultados que desafiam
a teoria vigente são publicados e começam a ser reproduzidos por outros
observadores independentes, eles começarão a serem discutidos pela comunidade
científica. J. B. S. Haldane expressou ironicamente este fenômeno dizendo que
uma nova teoria deve vencer os seguintes quatro estágios até ser aceita na
comunidade científica: 1. “isso não passa de
uma bobagem”; 2. “é uma teoria
inteligente, mas infelizmente errada”; 3. “bem, é verdade mas
não tem valor científico”; 4. “eu sempre disse que
essa teoria é perfeita!” Por outro lado, uma teoria pode nascer da
necessidade de explicar evidências à medida que elas se acumulam sem que seja
necessariamente comprovada. Essas teorias são julgadas mais pela sua
simplicidade, beleza e apelo intuitivo, do que pela massa de dados que lhe serve
de lastro. Uma simples teoria pode dizer mais sobre a Natureza do que uma
coleção de dados, como é o caso da Teoria da Evolução que jamais foi comprovada
experimentalmente. Por outro lado, uma teoria, ainda que nascida de “rigorosa
análise”, pode não ter valor algum se os dados são obtidos dentro de um esquema
formulado segundo uma opinião preconcebida (ou seja, nem sempre os dados falam por si mesmos). A literatura científica
está cheia de tais exemplos, e como em certos setores é o interesse corporativo
quem manda, muitos destes resultados viciados prevalecem
nesses campos. Vemos atualmente um exemplo candente na argumentação
pseudocientífica da chamada “antipsiquiatria” que procura, por meio de
argumentos ideológicos e raciocínio tipicamente reducionista, negar a realidade da doença mental. ![]()
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