Volume 14 - 2009
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Novembro de 2009 - Vol.14 - Nº 11

Artigo do mês

A (QUASE EXCLUSIVA) ABORDAGEM BIOLÓGICA DAS DOENÇAS MENTAIS: ATÉ QUANDO?

Vanessa Fabiane Machado Gomes Marsden
Mestre em Psiquiatria e Saúde Mental, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto
Especialização em Psiquiatria pela Universidade Federal de Uberlândia

Eu adoro praticar a Medicina Psiquiátrica. Acredito que tudo nesta área da medicina é arte: das práticas do diagnóstico clínico, no qual o médico bem treinado é o melhor instrumento diagnóstico às relações interdisciplinares para o entendimento bio-psico-social do doente (muito mais do que da doença). A Psiquiatria é o ramo da Medicina com a maior preocupação humanista e que realmente vê o paciente numa perspectiva global.

 

 Em 2005 deixei o Brasil para um Mestrado em Portugal. A possibilidade de testemunhar um olhar diferente sobre as mesmas categorias diagnósticas foi sedutora na decisão de deixar para trás família e segurança. A aposta valeu a pena e pagou dividendos. A experiência trans-cultural enriquece e amadurece, etapas essenciais no desenvolvimento saudável de qualquer pessoa. Ao final do Mestrado, mais uma vez fiz as malas e rumei Norte, desta vez para a Inglaterra. Outra possibilidade sedutora, de novos conhecimentos e tecnologias....mas foi aqui que me decepcionei um pouco ao descobrir um lado da psiquiatria que, embora reconheça como extremamente importante, preocupa-me por estar a dominar o pensamento básico atual.

 

 Citando o artigo de Richard Bentall (2009) no jornal britânico Guardian, Edward Shorter, um historiador da psiquiatria disse: "Se há uma única realidade intelectual central ao final do século 20 é que a abordagem biológica da psiquiatria - que trata a doença mental como uma doença da química cerebral influenciada geneticamente - é um verdadeiro sucesso".

 

Desde que aqui cheguei tive a oportunidade de conhecer a psiquiatria que está sendo desenvolvida nos centros ingleses, chegando até mesmo a conhecer o autor mais citado na área pelo Pubmed. A psiquiatria aqui não tem lugar para a individualidade ou para a história de vida. É a ciência das massas, da estatística, da matemática e exatidão convertendo a personalidade em intervalos de confiança.

 

Entretanto, críticos ao movimento têm extravazado seu descontentamento com os novos rumos da especialidade. Richard Bentall relembra que "longe de ser um sucesso, há importante evidência de que a abordagem biológica tem sido um fracasso lamentável. Enquanto que no último século observou-se melhorias dramáticas nas taxas de sobrevivência de pacientes que sofrem de doenças cardíacas e câncer, até agora os resultados esperados para os pacientes que sofrem das formas mais severas de transtornos psiquiátricos - as psicoses (desordens nas quais os pacientes experimentam alucinações ou delírios, geralmente resultando em um diagnóstico de esquizofrenia ou doença bipolar) - mudaram muito pouco desde o período Vitoriano”.

 

Longe de ser tão radical quanto o autor acima, acredito que a psiquiatria biológica teve sua importância nos últimos 50 anos ao revolucionar o cuidado com os pacientes. Para melhor exemplificar, cito o discurso do antigo presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria no Congresso de Psiquiatria do Porto, há uns dois anos atrás. Ele ilustrou com um exemplo interessante o avanço da psiquiatria nas últimas décadas, ao dizer que da primeira vez que foi convidado a participar do congresso no Porto, ele era jovem e estava excitado por viajar de avião. Quando jovens queremos aventura e nem que tivesse de enfrentar as nove horas de vôo de pé ele iria. Naquele congresso que presenciei, entretanto, ele estava perto de se aposentar e referiu que agora, o que mais queria era conforto. Hoje em dia os aviões (na primeira classe) oferecem até pijama, poltronas que ficam praticamente horizontais para um perfeito relaxamento e máscaras para dormir, confortos plenamente condizentes com seus desejos. Mesmo assim o vôo dura 9 horas. E embora o campo da aviação tenha tido grandes e importantíssimos avanços, os aviões atuais (assim como nos últimos 50 anos) continuam a voar a 780km por hora e não há qualquer modelo disponível que reduza o tempo de vôo. A aviação moderna apenas oferece mais conforto e segurança.

 

Assim é o avanço biológico em psiquiatria. Os antipsicóticos de hoje agem baseados nas mesmas hipóteses de há 50 anos atrás. Não há previsão de cura para as psicoses graves no horizonte. Embora eles ofereçam maior conforto e segurança com menos efeitos colaterais, o tratamento continua longo e muitas vezes sem sinais de possibilidade de interrupção do uso continuado.

 

No campo do diagnóstico, continuamos com critérios que não especificam uma doença particularmente. Pacientes com uma mistura de sintomas bipolares e esquizofrênicos são quase que mais comuns do que pacientes que se encaixam em uma ou outra categoria diagnóstica (SALVATORE et al., 2009). O conceito de esquizofrenia continua tão amplo que dois pacientes podem partilhar o mesmo diagnóstico sem ter qualquer sintoma em comum. Os critérios diagnósticos (que são estabelecidos artificialmente, através de consensos) continuam a ser fatores preditivos ruins no que tange a resultados esperados (PFEIFFER et al., 1996).

 

Evidência de que experiências de vida influenciando doenças mentais continua a aparecer nas pesquisas. Imigrantes (que têm sido um problema político-social na Europa e têm sido muito investigados) apresentam pelo menos quatro vezes mais risco de psicose do que outros grupos e este parece ser mais pronunciado se eles vivem em áreas nas quais são minorias (MCGRATH et al., 2008). A separação precoce dos pais também parece aumenter o risco de psicose, assim como crescer em ambiente urbano e o assédio moral crônico (KELLEHER et al., 2008; MCGRATH et al., 2008).

 

Enquanto isso, a pesquisa nos componentes biológicos da doença mental grave continua a ser priorizado em detrimento de pesquisas de cunho social e psicológico. No Reino Unido, investigações biológicas nas psicoses são cinco vezes mais comuns do que as demais abordagens. Não quero propor que toda a pesquisa genética seja abandonada, afinal desde os estudos finlandeses em gêmeos nos anos 80 sabemos que há um componente hereditário na esquizofrenia. Entretanto os resultados obtidos até agora mostram que o reducionismo em voga nas investigações conduzidas nos países anglo-saxões, nos quais tenta-se explicar a doença psiquiátrica tão simplesmente como autossômica, recessiva ou metabólica deixa muito a desejar (PORTIN & ALANEN (1997).

 

Não quero com este artigo sugerir uma rebelião contra os medicamentos. Nunca a qualidade de vida dos pacientes foi tão boa e a destruição das instituições asilares, nos quais seres humanos eram enviados para livrar a sociedade de sua presença, só foi possível devido à qualidade das novas terapêuticas. O objetivo final deste texto é melhor entendido no contexto de alertar jovens psiquiatras a questionar as tendências atuais e pensar por si próprio. No Brasil, a pesquisa é muitas vezes financiada por órgãos governamentais, o que nos dá liberdade de escolher a área de investigação de forma muito mais livre do que nos países de primeiro mundo, nos quais o cientista tem que lutar por bolsas que já são divulgadas de forma enviesada. Um breve olhar no site do MRC ou Medical Research Council, principal órgão financiador de pesquisas médicas na Inglaterra ilustra o argumento. As bolsas são distribuídas já com etiquetas sobre para quê e onde serem utilizadas. Como país emergente, não temos condições de concorrer com a infraestrutura de pesquisa em abordagem biológica dos países norte-europeus mas, devido às mudanças sociais e a peculiaridades de nossa cultura, temos um rico pool que permite a investigação social e psicológica dos transtornos psiquiátricos. 

 

Referências

BENTRALL R. (2009) – Diagnoses are psychiatry’s star signs. Let’s listen more and drug people less. Guardian.co.uk, Monday 31st of August 2009.

KELLEHER I., HARLEY M., LYNCH F., ARSENEAULT L., FITZPATRICK C., CANNON M., (2008) – Associations between childhood trauma, bullying and psychotic symptoms among a school-based adolescent sample. Br J Psychiatry, 193(5):378-82.

MCGRATH J., SAHA S., CHANT D., WELHAM J. (2008) – Schizophrenia: a concise overview of incidence, prevalence and mortality. Epidemiol Rev, 30:67-76.

PFEIFFER S.I., O’MALLEY D.S., SHOTT S. (1996) – Factors associated with the outcome of adults treated in psychiatric hospitals: a synthesis of findings. Psychiatr Serv, 47(3):263-9.

PORTIN P., ALANEN Y.O. (1997) – A critical review of genetic studies of schizophrenia. I. Epidemiological and brain studies. Acta Psychiatr Scand, 95(1):1-5.

SALVATORE P., BALDESSARINI R.J., TOHEN M., KHALSA H.M., SANCHEZ-TOLEDO J.P., ZARATE C.A.Jr, et al. (2009) – McLean-Harvard International First-Episode Project: two-year stability of DSM-IV diagnoses in 500 first-episode psychotic disorder patients. J Clin Psychiatry, 70(4):458-66.


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