Volume 13 - 2008
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Novembro de 2008 - Vol.13 - Nº 11

História da Psiquiatria

A PSIQUIATRIA E A UNIVERSIDADE NO BRASIL: A CONTRIBUIÇÃO DE JOÃO CARLOS TEIXEIRA BRANDÃO NO SEU NASCIMENTO

Manoel Olavo Loureiro Teixeira

Gostaria de dedicar este trabalho à memória do Professor João Ferreira da Silva Filho, ex-diretor do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, importante nome da psiquiatria brasileira, falecido recentemente, co-autor junto comigo deste texto publicado no livro 1968 e a Saúde Mental, também organizado por ele, e que, infelizmente, foi sua última publicação em vida. João Ferreira foi para mim um mestre, uma referência como intelectual e psiquiatra, e um grande amigo. Sua erudição, sua verve, sua originalidade, sua capacidade de trabalho e realização farão muita falta para a psiquiatria brasileira. É com grande honra que recebi o convite da Ana Oda e do Departamento de História da Psiquiatria para falar, hoje, no Simpósio onde deveria estar o professor João Ferreira.  

Nesta apresentação, tomarei como objeto a trajetória de um indivíduo que soube encarnar o espírito e as convicções do seu tempo: o médico alienista João Carlos Teixeira Brandão. Teixeira Brandão tomou para si a tarefa de representar, em terras brasileiras, o papel histórico que coube, na França, a Philippe Pinel: fundar o alienismo, como modo de humanizar a abordagem dos loucos e, pelo tratamento moral, fornecer aos alienados uma terapêutica; elaborar uma legislação específica que configurasse um estatuto social diferenciado para os alienados; e assumir o encargo de iniciar o ensino de psiquiatria nas escolas médicas de nosso país. Vamos discutir o contexto histórico-cultural no qual viveu Teixeira Brandão, analisar alguns aspectos da experiência brasileira de constituição da psiquiatria como um campo institucional, e destacar o seu papel nesta constituição.

O ano de 1852 é considerado o marco do início da atividade da medicina mental no Brasil com a inauguração no Rio de Janeiro do Hospício de Pedro II, no bairro da Praia Vermelha, junto à extinta Praia da Saudade - atual sede do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, no campus da Praia Vermelha. Obra imponente e suntuosa, o Palácio da Praia Vermelha foi o primeiro hospício do Brasil, da América Latina, e o primeiro hospício situado ao sul da linha do equador.

 

Para que possamos compreender o contexto onde surge o Hospício de Pedro II, é preciso recuar até o chamado Período Regencial (1831-1840). Nesta fase, eclodiram diversas revoltas provinciais e separatistas como a Cabanagem, no Pará; a Sabinada, na Bahia; a Balaiada, no Maranhão; e a Farroupilha, no Rio Grande do Sul. Talvez tenha sido o momento em que a preservação da unidade territorial do Brasil correu maiores risco. Contudo, nossa composição geográfica foi mantida, ao contrário do restante da América Latina, onde antigas colônias espanholas pulverizaram-se e adotaram governos republicanos. O Brasil tornou-se o único grande Império da América do Sul. Desencadeou-se o movimento político do Regresso, isto é, a atuação política desejosa de fazer regressar a centralização política e reforçar a autoridade do Imperador, frente à convulsão política então vivida. O consenso conservador entre as elites apressou a ascensão de D. Pedro II ao trono, antecipando sua maioridade, e ele assumiu o trono do Brasil, aos catorze anos de idade. Sua coroação ocorreu em 18 de julho de 1841, e seu primeiro ato foi a assinatura, no mesmo dia, do decreto de fundação do Hospício de Pedro II. Tal fato dá a medida da importância simbólica da construção de nosso primeiro Hospício. Assim, é no contexto do movimento do regresso, isto é, da reconstrução e do fortalecimento do Império brasileiro em moldes centralizados, que situa-se a monumental obra do Palácio da Praia Vermelha. O Hospício surge no Brasil como símbolo da reconstrução de um Estado Monárquico conservador, centralizado e católico, ameaçado pelas concessões liberais feitas durante a Regência. No contexto, portanto, de uma Restauração e não, como no caso da França, de uma Revolução inspirada pelo ideário iluminista. O Hospício nasce entre nós num Estado oficialmente religioso, surgindo como um símbolo e homenagem à ciência, num nascente Império mestiço ao sul do Equador, ávido por mostrar-se em sintonia com a modernidade representada pelo continente europeu.

 

 

O Segundo Império da França foi adotado como modelo de modernidade pelo Segundo Reinado. Esta adoção reforçou a francofilia das elites brasileiras, francesismo que ia além da cópia das modas parisienses nas lojas da Rua do Ouvidor. Desenhava-se a representação de uma sociedade rural francesa que aparecia como paradigma de civilidade para a sociedade tropical e escravagista do Império. Neste período, houve um declínio das velhas estruturas agrárias. Os centros urbanos, em particular o Rio de Janeiro, cresciam, e outras profissões eram requisitadas, para a atividade política, a burocracia estatal e as práticas liberais. O Brasil caminha, durante o século XIX, da distinção senhorial dos grandes proprietários rurais para a distinção explícita dos títulos de nobreza; até atingir, num terceiro movimento, a nobreza implícita conferida pelo título de doutor. Esboça-se o surgimento de um novo modelo de intelectual. Organizam-se novos campos de atuação profissional e institucional, entre os quais, o da medicina. São criadas as Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. Surgem os primeiros jornais médicos. Em 1829, é fundada a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro.

            Diferentes em composição, ideologia e ação política, os médicos, - dentre os quais, Teixeira Brandão - eram membros das elites não magistradas, e muitos faziam formação em Paris. Identificavam-se com um liberalismo libertário e radical, de tipo francês, diferente do conservadorismo das elites magistradas tradicionais. As academias, as sociedades literárias, as sociedades secretas, formadas no Brasil, exibiam invariavelmente a presença dos elementos formados na França ou influenciados por idéias de origem francesas, os primeiros em geral médicos, os segundos padres. Padres, médicos e maçons eram os típicos representantes do radicalismo político desse período.

Desde a década de 1830, os membros da recém-fundada Sociedade de Medicina e Cirurgia protestavam contra as condições dos alienados no Rio de Janeiro, capital do Império, denunciando a presença de alienados vagando pelas ruas como ameaça à segurança pública e risco de insalubridade, além de criticarem os maus tratos a que eram submetidos os alienados recolhidos à Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Esta crítica vinha no contexto de uma campanha maior, na qual os médicos reivindicavam melhorias nas condições de higiene pública da capital do Império. A questão dos loucos era um aspecto dentro deste conjunto, que reunia propostas de saneamento social, médico e moral, além da medidas de remodelação urbana. 

À voz destes médicos,  soma-se a voz do próprio provedor-geral da Santa Casa de Misericórdia, José Clemente Pereira, grande mentor da construção do Hospício de Pedro II. Com essa atitude, Clemente Pereira se livra do complexo problema da presença dos loucos nas suas enfermarias, e amplia o poder político-institucional da Santa Casa, ao propor e administrar a construção de um novo tipo de estabelecimento, identificado com a modernidade científica e a caridade religiosa. Pereira constrói um pavilhão em anexo à lavanderia geral da Santa Casa, na Chácara do Vigário Geral, no qual experimenta colocar algumas das mulheres alienadas que se encontravam na Santa Casa. Foi o embrião do Hospício de Pedro II. A seguir, dirige uma campanha intitulada “Aos loucos, o Hospício”, visando a obtenção de fundos para a construção do Hospício. O prédio é erguido, inspirado no desenho arquitetônico da Maison Nationalle de Charenton, na França. O Hospício é inaugurado em 5 de dezembro de 1852, embora as obras tenham prosseguido até 1855.

 

 

Dois aspectos caracterizaram seus os primeiros anos de funcionamento: a superlotação e o conflito de autoridade. Planejado para comportar 300 doentes, vinte e um meses após sua inauguração, sua lotação já estava completa. Estabelece-se uma percepção social de que o Hospício era um abrigo ou depósito caritativo de toda sorte de desvalidos e desenganados, que acorrem ao Rio oriundos das várias Províncias do Império, por terra ou por mar. O hospício fica superlotado. Em 1854, estabelece-se a proibição de serem admitidos alienados das províncias sem prévia autorização do Ministro do Império. Mais tarde, em 1862, são proibidas novas admissões, a não ser as que contassem com a anuência do provedor da Santa Casa. O Hospício torna-se uma entidade caritativa inespecífica para toda sorte de desvalidos, a serviço de uma administração religiosa diretamente subordinada à Santa Casa de Misericórdia.

A rigor, os doentes permaneciam entregues aos cuidados dos enfermeiros, freiras e padres da Ordem de São Vicente de Paulo, mantenedora da Santa Casa, que privilegiavam a visão caritativa e religiosa da loucura. Um mal estar adicional provinha da origem portuguesa destes religiosos. O antilusitanismo e a afirmação da identidade brasileira eram uma questão da ordem do dia. Além disso, o anticlericalismo era um componente intrínseco do ideário iluminista encarnado pelos médicos.

A administração do Hospício passa a ser atacada por vários flancos: pelo fato de não abrigar uma população exclusiva de loucos definida através de critérios científicos e convenientemente tratada; pelo fato de haver no Rio de Janeiro loucos não recolhidos ao hospício, convivendo com criminosos e mendigos; e também por seu modelo de funcionamento que, segundo Teixeira Brandão, mais parecia o de um convento que o de um asilo de alienados. A onda de ataques atinge principalmente a administração da Santa Casa de Misericórdia, e João Carlos Teixeira Brandão foi uma voz importante a se levantar. Este conflito entre a ordem médica, portadora de um discurso médico-científico, e a ordem religiosa, encarnada pelas freiras, irá marcar o funcionamento do Hospício durante quase quarenta e cinco anos.  As representantes clericais da Santa Casa absorvem toda a sua administração do Hospício, e as baterias dos médicos, relegados a papel coadjuvante, voltam-se contra estas.

Desde muito cedo, o discurso do alienismo no Brasil mostrou-se em grande sintonia teórica com o discurso do alienismo francês. As referências teóricas vinham todas do tratamento moral proposto por Pinel e Esquirol. A formação dos primeiros alienistas brasileiros passava necessariamente por Paris. Teixeira Brandão, primeiro alienista com formação específica a dirigir o Hospício de Pedro II, tinha inegável fascínio não só pelo alienismo, mas por toda a cultura francesa. João Carlos Teixeira Brandão (1854-1921) nasceu em 1854 em São Marcos, Estado do Rio de Janeiro. Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, começou clinicando em Barra Mansa, Estado do Rio. Suas primeiras publicações mostram um interesse dedicado à cirurgia. Gradativamente, Teixeira Brandão volta-se ao tema da alienação mental. Por sugestão de mestre e amigo, o Professor Torres Homem, embarcou para a Europa, onde estudou psiquiatria na França, Alemanha e Itália. À época, a idéia de um médico especializado em cuidar de loucos não tinha o menor glamour ou apelo social. O alienismo era considerado como um ramo inferior da medicina, e o alienista era visto com temor pela população. Além disso, a remuneração dos alienistas era baixa. Entretanto, o nascente campo da medicina mental, carente no Brasil de qualquer especialista de renome, aparece como chance de ascensão para o jovem Teixeira Brandão.

Em 1883, Teixeira Brandão viaja de novo à França e apresenta uma comunicação à Sociedade Médica-psicológica de Paris, “Des Établissements d’aliénés au Brésil”, por meio da qual se torna o primeiro brasileiro aprovado como membro estrangeiro associado. Curiosamente, nesta apresentação, o crítico feroz do funcionamento do Hospício de Pedro II não se pronuncia; pelo contrário, predomina um tom de apologia. De volta ao Rio de Janeiro, Teixeira Brandão prossegue uma feroz campanha contra a administração do asilo, em termos muito distintos. No decorrer da década de 1880, publica artigos em jornais não-especializados, como O Paiz e o Diário Oficial, onde critica a ausência de um verdadeiro tratamento moral no Hospício, sua superlotação, a violência a que os doentes eram submetidos, a inexistência de qualquer registro estatístico e de trabalhos científicos. Denuncia que o Hospício apenas admitia pensionistas pagantes, doentes que enlouqueciam no hospital da Santa Casa, ou apadrinhados de seu provedor. Reclama a necessidade de uma administração pelo poder público, com critérios científicos de gestão. O Hospício é denunciado como lugar de privilégios e abandono, e não como uma instituição voltada para a caridade e a ciência. Teixeira Brandão identifica no poder clerical a gênese da falta de orientação científica no asilo. Para Teixeira Brandão, as mudanças necessárias envolviam dois aspectos: a laicização do asilo, através de sua desvinculação administrativa da Irmandade da Santa Casa, e o reforço da autoridade médica em sua gestão. Teixeira Brandão também defende a necessidade de criar-se uma legislação sobre os alienados, dando sugestões em sua maioria inspiradas na lei francesa de 1838.

Em 1883, o jovem médico de 29 anos, João Carlos Teixeira Brandão, é aprovado, por concurso público, para a cátedra de professor de clínica psiquiátrica e moléstias mentais da Faculdade de Medicina, tornando-se o primeiro titular aprovado por concurso público. Teixeira Brandão é, dessa forma, o primeiro professor de psiquiatria com reconhecimento oficial do país. O alienismo somente obtém o status de tema médico de ensino especial, trinta anos após a inauguração do hospício. Até então, os temas da medicina mental eram tratados dentro na Clínica Geral e na Medicina Legal.

Em 1886, Teixeira Brandão, que começa a trabalhar como alienista no Hospício em 1884, redige o célebre relatório Os Alienados no Brasil, enviado ao Barão de Cotegipe (1815-1889), presidente do Conselho de Ministros e provedor da Santa Casa, onde alinhava suas denúncias e chama a atenção para a necessidade da decretação de leis de proteção ao alienado. O Barão de Cotegipe torna-se protetor político de Teixeira Brandão, e termina nomeando-o diretor do Hospício de Pedro II, em 1887, no contexto de um regime monárquico enfraquecido e de um crescente movimento republicano.  

 

 

Em 1889, acontece a Proclamação da República. Esta passagem representou nossa primeira grande transição política desde a Independência. Aristides Lobo, constatou, em frase famosa, seu desapontamento com a maneira como esta havia sido instaurada, praticamente como um golpe militar, sem resistências ou participação popular. Para ele, o povo assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se passava, julgando talvez assistir a uma parada militar.

A proclamação da República encontra na direção do Hospício de Pedro II o jovem de 35 anos, ardente nacionalista, republicano, liberal e anticlerical Teixeira Brandão, um dos signatários do Manifesto Republicano de 1870. Ele é mantido no cargo pelo novo regime. Finalmente, em 1890, o governo republicano edita o decreto que desanexa o Hospício de Pedro II da Santa Casa de Misericórdia e determina a reversão do patrimônio a ele pertencente. A Santa Casa não recebe indenização. O asilo passa a ser administrado pelo Estado e sua denominação é mudada para Hospício Nacional de Alienados.

Teixeira Brandão inicia a reforma administrativa do hospício e retira poder das freiras, que são expulsas do asilo. Ele prega uma reforma das mentalidades, e não apenas do prédio do Hospício: "Não é na falta de apparelhos hydroterapicos e electrotherapicos, como acredita muita gente, que supomos residir a principal causa do atrazo do hospício, mas na organização do serviço medico e principalmente nas funcções do director”[1].

Teixeira Brandão considerava essencial o fortalecimento da figura do alienista diretor do hospício. Para ele, esta era a única reforma que poderia implantar o verdadeiro tratamento moral entre os alienados e controlar a conduta dos demais funcionários. A onipresença do alienista diretor iria regular os desvios passionais de loucos e funcionários. Neste ponto, revela-se o discípulo fiel de Pinel e Esquirol, que afirma sua profissão de fé no Hospício como um instrumento de correção pedagógico-moral, de acordo como os princípios norteadores do tratamento moral:

 

“Os asylos de alienados têm muitas annalogias com os estabelecimentos de educação; tanto em uns como em outros, são em primeiro logar as faculdades afecctivas que devem ferir a attenção e solicitude dos que os dirigem, e não é sem contacto prolongado e constantes cuidados que será possível imprimir-lhes uma influencia salutar. Sem esta attribuição e autonomia, o director ficará tolhido nos seus meios mais poderosos de acção. De que lhe servirão todos os recursos therapeuticos, todas as drogas e medicamentos, si a sua influencia moral, que na especie é o mais benefico agente, não se fizer sentir em toda a sua plenitude?”[2].

 

Mais adiante, Teixeira Brandão organiza a Assistência Médico-Legal a Alienados, que engloba o Hospício Nacional e as novas Colônias do Galeão e de São Bento, na Ilha do Governador. Pelo Hospício nacional passariam todos os doentes admitidos, sendo o único a receber pensionistas pagantes. As colônias ficariam reservadas aos indigentes. Também é criado um serviço de avaliação preliminar dos pacientes que se apresentavam para ser internados no Hospício Nacional: o pavilhão de observação. Neste serviço, os doentes eram examinados por até 15 dias, para decidir-se seu encaminhamento, numa espécie de triagem. O pavilhão era destinado a receber os doentes gratuitos, suspeitos de alienação mental, enviados pelas autoridades públicas, e exclusivamente reservado para a clínica psiquiátrica e de moléstias mentais da Faculdade de Medicina, sob a direção do catedrático Teixeira Brandão. O pavilhão também servia para aulas dadas aos alunos do sexto ano do curso médico. Foi o primeiro espaço acadêmico específico para o ensino da psiquiatria no Brasil. O professor de clínica psiquiátrica era pago pela Assistência a Alienados, e devia residir numa casa vizinha ao Hospício, com a incumbência de atender aos doentes do pavilhão a qualquer hora em que fosse solicitado. Este pavilhão, mais tarde chamado Instituto de Psicopatologia da Assistência aos Alienados, é a origem histórica do Instituto de Psiquiatria da UFRJ - (IPUB).

 

 

 

Acusado pela imprensa de preocupar-se mais com sua carreira política do que com o atendimento dos alienados, chamado de ultrapassado em termos teóricos, por aferrar-se aos “decadentes princípios do alienismo francês”, Teixeira Brandão vê pipocarem denúncias de violências e maus-tratos contra os internos do Hospício Nacional dos Alienados, de mortes de alienados por cólera e outras doenças contagiosas, além de afirmar-se que o bairro da Praia Vermelha, agora mais populoso, expunha os doentes à mofa e ao escárnio dos transeuntes. 

Teixeira Brandão defende-se, responsabilizando os monarquistas e a direção da Santa Casa como financiadores de uma campanha de difamação sem base na realidade, motivada por sentimentos de vingança e pelo desejo da Santa Casa de reaver a administração do Hospício. Com a morte de seu protetor, o Barão de Cotegipe, e o recrudescimento da campanha contra sua gestão, Teixeira Brandão deixa, em 1897, a direção do Hospício, após dez anos de exercício, debaixo de uma bateria de ataques da imprensa e do Congresso. Também deixa a direção da Assistência Nacional aos Alienados e a cátedra de Professor de Psiquiatria da Faculdade de Medicina. Após seu afastamento da direção do Hospício e da Assistência aos alienados, dedica-se à atividade política e atua como polemista na imprensa da Capital Federal. Também participa da fundação e publica artigos na Revista “Brazil Médicos”, publicação voltada para a discussão de temas médicos, psiquiátricos, forenses e antropológicos.

Exerce dois mandatos como deputado federal pelo Estado do Rio de Janeiro, de 1903 a 1911; e de 1915 a 1920. Em 1903, o deputado João Carlos Teixeira Brandão torna-se o relator, junto à comissão de saúde do Congresso, do projeto de lei 1.132, nossa primeira lei geral sobre jurisprudência e assistência aos alienados, que consolida os dispositivos legais legitimadores da medicina como gestora da alienação mental. O campo da jurisprudência sobre o alienismo, enfim, consolidava-se no Brasil. O deputado Teixeira Brandão também foi relator, junto à Câmara, do projeto de lei que instituiu a vacinação obrigatória contra a varíola, que culminou com a rebelião popular conhecida como a Revolta da Vacina (1904). Neste ponto, mais uma vez, cruzavam-se os destinos dos pioneiros da higiene pública e dos alienistas.

Apenas em 1907, por influência de Juliano Moreira, será fundada a Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, cujo órgão oficial torna-se os Archivos Brasileiros de Psychiatria, Neurologia e Sciencias Affins, revista exclusivamente dedicada aos temas da medicina mental. Teixeira Brandão foi eleito presidente de honra desta Sociedade. O primeiro congresso brasileiro de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal também o elegeu como presidente de honra. Entretanto, os tempos do pioneirismo francófilo de Teixeira Brandão lentamente iam se esgotando, e seu papel caminhava para um descenso, tanto político, quanto científico. Capitaneada por Juliano Moreira, a psiquiatria brasileira caminhava rumo à assimilação da psiquiatria alemã de base kraepeliniana.

 

CONCLUSÃO

 

A queda da Monarquia e a proclamação da República permitiram, na passagem do século XIX para o século XX, uma inflexão nas características típicas dos intelectuais brasileiros. Com a República, temos a valorização de intelectuais com um perfil diferenciado da elite magistrada tradicional: intelectuais urbanos, oriundos da classe média, defensores de suas convicções técnicas e intelectuais, e não da perpetuação de sua linhagem social – homens da ciência e ação, que colocam-se contra os “políticos tradicionais” e consideram-se, por suas idéias e alto índice de especialização técnica, a própria encarnação da modernidade. O que, em última análise, representou um novo caminho de deslocamento na escala social e acesso ao poder político.

Este grupo, constituído por militares e membros da classe média urbana com formação técnica, assume o intento de implantar um projeto de nação baseado em normas de cientifização e modernização radicais, em contrapartida aos valores das elites dirigentes tradicionais. O problema da identidade nacional é abraçado com ardor por esta nova elite, que se põe a agir e refletir sobre as condições que permitiriam a verdadeira modernização do país, numa cruzada de salvação nacional. Esta temática podia ser condensada na pergunta: que tipo de Pátria queremos formar para a República brasileira?

A questão da constituição da identidade nacional torna-se ainda mais preemente. A afirmação de uma imagem nacional positiva assume um caráter de obsessão, maior que a vista durante o Segundo Reinado. A questão principal para estes “homens de ciência” era definir o Brasil como povo e nação perante o mundo civilizado. Pensava-se sobre a solução dos problemas decorrentes do atraso do Brasil; sobre a criação de acesso aos direitos de cidadania; sobre a construção de um ideário de modernidade. Homens da ciência, estes novos intelectuais-cientistas apresentavam-se como missionários em luta para a superação de nosso atraso. Aliado ao nacionalismo dos militares, entra em ação o nacionalismo de intelectuais, escritores e, não menos importante, da elite intelectual científica. Só que, novamente, esta tentativa recai na necessidade de um reconhecimento pelo olhar do outro, novamente, do europeu. A estratégia parecia ser provar que éramos uma França localizada no continente errado, que o Rio de Janeiro era uma Paris tropical, onde vivia uma elite refinada e sintonizada com a cultura européia, retirando do imaginário europeu a idéia de sermos um triste e exótico país de negros e mestiços incultos.

João Carlos Teixeira Brandão encarnou de modo exemplar este nascente tipo de intelectual da segunda metade do século XIX e início do século XX, este novo e moderno personagem da elite brasileira: médico, membro da classe média urbana, liberal e iluminista, em sua versão jacobina, anticlerical, francófilo, auto-intitulado o Pinel Brasileiro, defensor dos avanços da ciência e do progresso da nação, Teixeira Brandão representa o tipo de intelectual-cientista que, com o advento da República, toma para si a tarefa de pensar a reconstrução do destino nacional em bases científicas, a partir dos referenciais de seu conhecimento técnico especializado. Teixeira Brandão pensa um projeto de país fundado nos ideais apontados por sua especialização técnica e aspirações políticas.

Paradoxal na sua francofilia e nacionalismo, a trajetória biográfica de Teixeira Brandão espelha o caminho de ascensão política que estes homens de ciência angariavam. Em sua personalidade rica e contraditória, temos,  de um lado, a indiscutível adesão ao ideário liberal-iluminista, a atuação de um “homem da cultura francesa”; de outro, temos o inegável e arraigado nacionalismo, capaz de motivar ações generosas dignas de um Policarpo Quaresma, como a participação em armas, em 1893, da defesa do governo Floriano Peixoto, durante a Revolta da Armada, sendo por isso patenteado como Coronel Honorário do Exército Nacional; ou a doação espontânea de terrenos que lhe pertenciam em Angra dos Reis, com o propósito de “aprimorar a Marinha Republicana”, onde até hoje funciona o Colégio Naval. 

O pensamento de Teixeira Brandão, que aqui iremos apenas tangenciar,  é um produto do seu tempo. Ele faz a exaltação tardia da cruzada do conhecimento científico contra as concepções religiosas e os preconceitos do passado, no melhor estilo do ideário iluminista do século XVIII. Para ele, a marcha inexorável da ciência traria a regeneração moral da humanidade. Teixeira Brandão, como muitos dos pensadores do período, acreditava na promessa da revolução antropocêntrica que o espírito das luzes e da ciência acenava: o domínio da Terra e de tudo que nela acontece. Ele defende a adesão ao método experimental empirista de Francis Bacon, e louva  a postura anti-metafísica do mestre fundador do alienismo francês, Philippe Pinel.

Muito do que podemos encontrar no pensamento de Teixeira Brandão ainda precisa ser ouvido com suavidade e atenção: Teixeira Brandão destaca o fato de Pinel e seus seguidores terem reconhecido a dignidade presente na condição dos doentes mentais, e a necessidade de tratá-los com humanidade e convívio próximo.  E vai mais além, ao afirmar que o grau de civilidade de uma sociedade é medido por sua capacidade de reconhecer e exercitar esta atitude humanitária em relação aos alienados mentais. A idéia central desenvolvida nos seus textos é a ardente defesa da humanização no trato dos alienados, sustentada pelo reconhecimento de um estatuto de diferença radical que, entretanto, não é pensado como um abismo intransponível. E esta parece ter sido a sua maior contribuição.



[1] Teixeira Brandão – Questões relativas a Assistência Médico-legal aos Alienados e a Alienados - pg. 99. 

[2] Brandão, Teixeira – idem, pg. 100.


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