Volume 13 - 2008
Editores: Giovanni Torello e Walmor J. Piccinini

 

Dezembro de 2008 - Vol.13 - Nº 12

Psiquiatria Forense

NEUROCIÊNCIA FORENSE

Daniel Martins de Barros *

Os avanços das neurociências têm se feito ver quase que diariamente – não passa uma semana sem que sejamos brindados com novas e surpreendentes descobertas feitas pelos cientistas que se debruçam sobre o mundo mental: por vezes é a localização da área cerebral responsável pelo sentimento de certo e errado, por outras uma técnica de neuroimagem que revela os pensamentos, às vezes até mesmo a descoberta de substâncias capazes de aumentar o potencial de nossa mente.

Muito dessa avalanche de conhecimento é conseqüência direta de uma decisão do governo norte-americano, que decretou os anos 90 do século passado como “A década do cérebro”. Numa confluência até então inédita de esforços e verbas, diversos centro de pesquisa, públicos e privados, reuniram cientistas, pesquisadores, alunos de graduação e pós-graduação em torno do desafio de desvendar os meandros do cérebro. Uma verdadeira revolução nas técnicas de imageamento cerebral se seguiu, e a cada avanço novas descobertas surgiam, dando origem a novas perguntas e novos projetos de pesquisa.

Diversos desafios surgem diante das revoluções científicas: como incorporar esses conhecimentos de forma saudável à sociedade? Como impedir usos antiéticos das descobertas? Como adaptar as antigas visões de mundo ao novo modelo que surge e assim por diante.

Um dos grandes desafios a emergir da revolução neurocientífica diz respeito à Psiquiatria, particularmente em sua interface com o Direito, ou seja, à Psiquiatria Forense.

Desde priscas eras a humanidade decidiu que imporia penas aos indivíduos que não se enquadrassem em determinados padrões de comportamento, e assim, com o instituto das leis e do apenamento, foi viabilizada a vida em sociedade. Logo, porém, notou-se que nem todos os indivíduos eram dotados de razão suficiente para discernir o certo do errado: as crianças, notadamente, mas também dos que padeciam de algum transtorno mental que impusesse privações de entendimento ou de autocontrole. Estes então não seriam apenados da mesma forma, mas submetidos a algum outro tipo de controle, que historicamente já variou da devolução à família, passando pelo enclausuramento puro e simples até chegar ao atual modelo de medidas de segurança.

A determinação de quem eram esses indivíduos que necessitavam de um olhar diferenciado perante a lei ficou ao encargo do médico psiquiatra, por motivos óbvios: se o psiquiatra é o profissional apto para diagnosticar a doença mental e aferir o déficit de entendimento ou autocontrole, a ele cabe informar à justiça sobre o real estado de saúde das pessoas sobre quem pairam dúvidas concernentes à saúde mental.

Isso veio funcionando bem até hoje, já que durante séculos pouco mudou o entendimento sobre os determinantes dos transtornos mentais e suas conseqüentes alterações de impulso e vontade. Com o advento das neurociências, no entanto, algo de novo se apresenta no horizonte. Começamos a descobrir as causas dos transtornos mentais, e podemos a cada dia com mais precisão correlacionar comportamentos a seus determinantes físico-químicos. Assim, hoje sabemos que o córtex pré-frontal do cérebro de psicopatas tende a ser menos desenvolvido. Sabendo que essa é a região responsável, entre outras coisas, pela capacidade de autocontrole, facilmente poderíamos imaginar que encontramos o “culpado” pelo comportamento anti-social dessas pessoas: não são eles, são seus cérebros.

Esse raciocínio, embora tentador, está eivado de armadilhas que, uma vez armadas, são inescapáveis. Isso acontece porque, com o progredir das técnicas em neurociência, em breve será possível encontrar todas as “causas” dos comportamentos humanos, quer saudáveis ou criminosos. A partir daí seria a extinção da possibilidade de pena – se tudo tem uma causa, ninguém mais seria culpado.

A saída para tal aparente dilema é solidificar o conceito que explicação não é justificação, ou, mais simplesmente, causa não é desculpa.

A partir de agora, e cada vez mais, ao psiquiatra forense não bastará analisar a pessoa e dizer-lhe capaz ou incapaz, imputável ou não. Será preciso cotejar o exame psíquico com informações oriundas das neurociências – quer sejam imagens do cérebro, genes ou neurotransmissores alterados – e dizer se elas diminuem ou não a capacidade racional do indivíduo em questão. O principal será dizer, ao menos nessa primeira fase da Neurociência Forense, estabelecer se a racionalidade do indivíduo estava alterada, independentemente das causas que possam ser invocadas. Veremos os quesitos passarem de “Era o agente, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de se autodeterminar segundo esse entedimento?”, para algo do tipo “As alterações cerebrais encontradas eram suficientes para, ao tempo da ação ou da omissão, privar totalmente o agente do entendimento do caráter ilícito do fato ou de sua autodeterminação segundo esse entendimento?”.

Creio que saber responder a tal questão será central para o futuro da Psiquiatria Forense, doravante, “Neurociência Forense”.

 

* Daniel Martins de Barros é médico psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, fazendo parte da coordenação do Núcleo de Psiquiatria Forense. Pesquisador do Laboratório de Neuroimagem em Psiquiatria, onde realiza seu doutorado, lançou em 2008 o livro “O que é Psiquiatria Forense”, pela Editora Brasiliense. Diretor científico da Visum – Medicina Forense.


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