Volume 12 - 2007
Editor: Giovanni Torello

 

Novembro de 2007 - Vol.12 - Nº 11

História da Psiquiatria

História da Psiquiatria no Brasil: que história é essa? *

Carlos Francisco Almeida de Oliveira
Mestre em Ciências Médicas pela Unicamp
Coordenador do ECP (Encontros Científicos de Psiquiatria do Hospital
Areolino de Abreu) - Universidade Federal do Piauí (UFPI)
Samuel Robson Moreira Rego
Médico-Residente em Psiquiatria da Universidade Federal do Piauí
Professor de Ciências Sociais Aplicadas à Saúde da Universidade Estadual do Piauí (UESPI)
Secretário Geral da Associação Nacional de Médicos Residentes -ANMR
Déborah Jordânia Nascimento Silva
Médica-Residente em Psiquiatria da Universidade Federal do Piauí

*Trabalho apresentado no XXV Congresso Brasileiro de Psiquiatria (Porto Alegre - RS, de 10 a 13 de Outubro de 2007)

PREÂMBULOS

 

É voz comum dentre as referências bibliográficas da historiografia psiquiátrica no Brasil, atribuir-se ao alienismo brasileiro, no século XIX,  a absorção “tal e qual” do alienismo europeu, seja da França, da Alemanha, da Itália, da Inglaterra e em menor grau até mesmo dos Estados Unidos da América. Para tanto, observa-se duas citações como exemplo dessa teoria:

 

Em meados do século XIX surgem no Brasil os  primeiros trabalhos teóricos  sobre  alienação  mental  ...  A teorização psiquiátrica  é,   nesta  época,  um exercício   de   cunho  universitário,   escolar e burocrático    ...  Elas expõem a contradição de um saber que se diz baseado na experiência, dela dependente,  mas  que  se  limita  a  reproduzir  o  saber  dos  outros. Apoiadas em autores  estrangeiros,   notadamente   franceses,  a   referência  à  situação   brasileira  inexiste ou é ocasional”. (ROBERTO MACHADO et al., 1978)

 

Reconhece-se  apenas   uma    práxis   psiquiátrica    nacional,   uma    prática profissional  e científica em modelos  alienígenas,  ora  franceses, germânicos e   mais   recentemente   anglo-saxões  ou  norte-americanos.  Mais uma  vez  a história  se repete...  Na realidade,  ainda  estão por ser escritas as histórias da  psiquiatria e da psicopatologia  brasileiras.  Ambas são dois personagens pirandelianos   à   procura    de   um   autor . (OTHON BASTOS, 2002)

 

Além dessas citações, encontra-se outra de cunho ainda mais contundente no livro do Dr. JURANDIR FREIRE COSTA (1981), quando afirma que as theses e memorias no século XIX das faculdades de medicina da Bahia e do Rio de Janeiro foram meras compilações de autores franceses.

 

Apresentam-se a seguir, por outro lado, exemplificações que denotam um entendimento diferente dessa tese.

 

 

PRIMEIRA CITAÇÃO ACERCA DA SAÚDE MENTAL NO BRASIL

(Século XVII)

 

Em livro de 1683, Morão Rosa Reinhipo, um médico nascido em Covilhã (Portugal) e diplomado em Salamanca (Espanha) que se instala em Pernambuco e adota o nome de Simão Pinheiro Morão, faz a primeira citação acerca da saúde mental ao correlacionar os quadros de mania ás regiões temperadas no Brasil. Essa idéia torna-se tão arraigada no alienismo, que sua refutação definitiva só aconteceria com Juliano Moreira em sua apresentação no XV Congresso Internacional de Medicina em 1906 em Lisboa.

Gilberto Osório de Andrade (1956) na publicação “Morão Rosa & Pimenta”, reprodução dos três primeiros livros em vernáculo sobre a medicina no Brasil, traz a citação de Morão: “A mania é produto dos humores coléricos adustos típicos das regiões quentes do Brasil”.

 

 

TRATAMENTOS MÉDICOS NO SÉCULO XVII

 

Temos uma diferença primeva em termos de assistência  médica entre o Brasil e a Europa, que seria um fator  diferencial nos séculos seguintes. Na Europa, vivia-se sob a égide da inquisição e, por conseguinte, a assistência médica era disputada por médicos e pelo clero, das ordens dominicanas e beneditinas. No Brasil, os jesuítas, escanteados  para as colônias, imprimem uma aliança com a medicina que vai perdurar  mesmo depois da sua expulsão de terras brasileiras nas  reformas pombalinas no século XVIII. Os jesuítas tinham  cultura  muito erudita  e o seu saber medicinal suplantava o dos médicos que viriam para o Brasil, até o século adjacente.

“Os jesuítas haviam  absorvido  dos indígenas  o  uso das plantas medicinais, sendo também os grandes responsáveis até então pelos mapas nosográficos que  incluíam  até  mesmo  as  doenças  de  origem africanas.  Este  saber  e  prática,  longe  de  serem  rejeitados  pela medicina oficial, foram, na verdade, incorporados à bibliografia e ao receituário acadêmico”(HOLANDA et al.1977).

 

 

 PRIMEIRA REFERÊNCIA ACERCA DA SAÚDE MENTAL FEITA POR UM BRASILEIRO (Século XVIII)

 

Pedro Nava em “Capítulos da história da medicina no Brasil” (1949) relata que Francisco de Mello Franco foi um médico e naturalista mineiro formado pela Universidade de Coimbra, liberal e adepto da filosofia iluminista francesa,  que fez seus estudos  básicos em colégios jesuítas no Brasil. O seu pendor contra os métodos inquisitoriais de tratamento  das vesânias, ou loucuras, aproxima-se da intelectualidade  jesuítica. É importante ressaltar que os jesuítas, durante o período inquisitorial, assumiram as funções de  confessores dos “hereges”, enquanto a função de juízes cabia  notadamente aos dominicanos. O título da obra de Mello Franco, (A Medicina Theologica, ou Suplica Humilde feita a todos os Senhores Confessores, sobre o modo de proceder com seus Penitentes na emenda  dos pecados, principalmente da Lascivia, Colera e Bebedice 1794 – Lisboa), por si só já explicita a  tentativa de remediar os pecados, trazendo as “heresias” para o  campo das doenças.

 

 

PRIMEIRA TÁBUA CLASSIFICATÓRIA NO BRASIL DO SÉC. XIX (1817)

 

O professor Tácito Medeiros, na sua dissertação de mestrado, traz uma importantíssima contribuição para o entendimento do alienismo brasileiro do século XIX. Coube a um médico generalista, Dr. Domingos José Cunha, diretor da Santa Casa de Misericórdia em são João Del Rei-MG, fazer o primeiro ensaio classificatório alienista no Brasil. Nesse ensaio, observamos uma miscelânea classificatória que vai do senso popular à itens diagnósticos, científicos para o período, de Boissier de Sauvages, um classificador naturalista do século XVIII(melancolia histérica), passando por Pinel(idiotismo) e, o mais surpreendente, o ítem-chave da classificação de Esquirol(monomania) que havia sido publicada um ano antes, em 1816, na sua primeira versão. Portanto, maior e melhor atualização seria  impossível para a época.

 

PRIMEIRA TÁBUA CLASSIFICATÓRIA NO BRASIL (1817):

 

Santa Casa de Misericórdia – S. João Del Rei (Dr. Domingos José Cunha)

 

Alienação Mental                                  Melancolia Histérica

 

      Muito Pouco Cizo                                Melancolia Hipocondríaca

 

     Abuso de Cachaça                               Delirante

 

     Bebedeira                                            Epilepsia Conseqüente à Embriaguez

 

    Doido Furioso                                    Monomania

 

   Desordenado do Juízo                        Alienado por Grande Queda de Cabeça

 

   Vida debochada                                Idiotismo Completo

 

Fonte: Formação do Modelo Assistencial Psiquiátrico no Brasil  (Medeiros, 1977)

 

 

THESES SOBRE ALIENAÇÃO MENTAL FEITAS NO BRASIL, NO SÉC. XIX               

 

A primeira “these” sobre alienismo feita no Brasil para obtenção do título de “Doutor em Medicina”, Consideraçoes geraes sobre a alienação mental -  Antônio Luiz da Silva Peixoto (Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro – 1837), que coincide com a formatura da primeira turma em medicina, já revelava o despertar precoce do interesse dos jovens doutores na ciência alienista da época. Apesar de Roberto Machado e cols.(Danação da Norma) considerarem as teses de valor reduzido (simples compilações de autores franceses), sem nenhuma preocupação com os tratamentos ou com o aprisionamento hospitalar dos loucos, isso não se confirma. Há claras referências, por exemplo, aos maus tratos sofridos pelos doentes mentais nas Santas Casas de Misericórdia e um clamor pela construção de um asilo.

             Têm-se  mais referências, onde se encontram outras contradições a essa idéia de que os trabalhos alienistas brasileiros apenas copiavam o modelo europeu. Exemplificando-se:

 

A Monomania - Francisco Albuquerque (Faculdade de Medicina da Bahia –1858). “O reconhecimento  da  loucura  depende  da  época  em que vivemos,do caráter e   graus  de  instruções  das pessoas  que nos rodeiam: a  nossa  razão  é  a medida   da loucura alheia”.

Tratamento das moléstias mentais - Vieira da Silva (Faculdade de Medicina da Bahia – 1858). “ Foi sobre a fogueira inquisitorial que expiraram milhares de alienados (...). Passaram-se os séculos da barbaridade e despontou o século das luzes e civilização, trazendo à sua frente o homem filantrópico, o sábio e o profundo Pinel”. 

 

A citação de Francisco Albuquerque demonstra uma inserção temporal e cultural da loucura bem estruturada, levando em conta os fatores culturais e geográficos, das alienações mentais.

No segundo caso, Vieira da Silva faz uma demonstração de uma apropriação do saber alienista francês, mas com um dimensionamento histórico evolutivo e significativamente coerente.

Seria, portanto, por demais rígido, exigir-se desses alienistas a produção de um saber próprio, original, sobretudo se levarmos em conta a avassaladora escalada colonialista dos países europeus sobre o restante do mundo no curso do século XIX.       

Balizando-se o paradigma da “questão moral”, vê-se que  Maria Cristina Consolim (2002) ao analisar a historiografia de Voltaire, associa o iluminismo do século XVIII a um “projeto de moralização social”.Fazendo-se, em seqüência um corte temporal e indo-se até o início do século XX , percebe-se em citação do livro texto do nazismo,escrito por Adolf  Hitler, “ Mein Kampf ” ( Minha Luta), a permanência da mesma “questão moral” agora sob uma forma eugênica, da “pureza” humana: “ A causa primaria estava, porém, na prostituição do amor. Mesmo que essa prostituição não tivesse por conseqüência a terrível epidemia que devastava a nação, ela, só por seus efeitos morais, seria bastante para levar um povo à ruína”.

Sendo assim, nesse  zeitgeist (espírito dos tempos) científico e cultural, seria natural que ao alienismo brasileiro no século XIX perpassasse todo o reflexo da matriz européia, sobretudo a franco-germânica, encaixotando-se entre o moralismo iluminista do século XVIII e o moralismo eugenista do início do século XX. Diante de tão fortes influências, torna-se lógico entender-se que o alienismo brasileiro no século XIX tenha sido original, dentro de limites efetivamente estreitos.

 

 

A PSICOPATOLOGIA NAS PUBLICAÇÕES BRASILEIRAS NO SÉCULO XIX

 

Jorge Jaime (1998), em sua “História da Filosofia no Brasil”, apresenta Eduardo Ferreira França como um médico e filósofo sensualista, da escola de Locke e Condillac. França afirmava: “O eu é o eu espiritual”.

Eduardo França, que havia defendido sua these na Faculdade de Medicina de Paris, acerca da influência de certos alimentos e bebidas na “moral” do homem, publica em 1854, o livro “Investigações de Psicologia” onde apresenta um singular agrupamento das faculdades mentais (modificabilidade; motividade; intelectualidade; instintividade e a vontade). Não se encontra descrição semelhante em autores franceses e à despeito da primariedade nessa ordenação, ela demonstra uma nítida tentativa de originalidade.

“Neste trabalho encontra-se uma classificação das faculdades mentais em cinco grandes grupos, que são: a modificabilidade; a motividade; as faculdades intelectuais; os instintos {físicos, intelectuais, morais e sociais} e  a  vontade ou atividade livre”( JAIME, 1998).   

 

 

A VIRADA ORGANICISTA NAS THESES BRASILEIRAS.                

 

Em  consonância  com  a  nova  atmosfera   cientificista,  moralista e evolucionista, portanto, positivista nos meios acadêmicos, surgem na Bahia, em 1857, as theses de  Pedro Araújo,  ”Herança”  e  Cid Cardozo,   “Influencia da civilisação  sobre  o desenvolvimento das affecções nervosas”. No mesmo ano de 1857, Morel publica a obra básica do alienismo organicista da segunda metade do século XIX: “Traité des Dégénérescences physiques, Intellectuelles et morales”.

Isso pontifica a atualidade das theses brasileiras, pois se vê uma antecipação da “Teoria da Degenerescência” que viria com o tratado de Morel (publicado no mesmo ano, após esses trabalhos baianos). Pedro Araújo e Cid  Cardozo, apresentam as theses tomando como base as obras de Prosper Lucas, em 1847, e  Moreau de Tours, em 1851, dois proto-degenerencistas franceses.

Nas palavras de Otávio Serpa Jr.: “O alienismo ganhava a sua etiologia organicista e os alienistas podiam sentir-se um médico como os outros”.

 

 

 

DO ECLETISMO AO POSITIVISMO.             

 

             Sérgio Buarque de Holanda, Bóris Fausto e vários outros historiadores nacionais, publicaram uma extensa e valiosa coleção denominada de “História Geral da Civilização Brasileira”, entre 1976 e 1981, onde pontuam que as idéias positivistas chegam ao Brasil, através das “theses” de medicina dos Drs. Justiniano da Silva Gomes e Luís Pereira Barreto, respectivamente na Bahia e no Rio de Janeiro. Jorge Jaime na sua “História da Filosofia no Brasil”, em 1997, além de confirmar esse fato, relaciona esses dois doutores no rol dos filósofos positivistas brasileiros.O positivismo só iria  alcançar o seu apogeu no decorrer do ùltimo quarto do século XIX, e datam também desse período pesadas críticas de Sílvio Romero, o maior dos críticos literários da época, à qualidade filosófica desses dois autores. Críticas à parte, o pioneirismo dessas “theses” por si só já é suficiente para a sua valorização. Em defesa desses médicos-filósofos brasileiros, há que se dizer também, que Sílvio Romero foi impiedoso até mesmo com Machado de Assis.

           

“As primeiras  idéias  positivistas no Brasil aparecem em 1844, na tese – Plano e Método de um Curso de Fisiologia, sustentada perante a Faculdade de Medicina da Bahia pelo Dr. Justiniano da Silva Gomes”. (HOLANDA et al. 1976).

 

O prelado positivista  brasileiro  tem  seus  primeiros  registros  no Rio de Janeiro com  Luís  Pereira Barreto,já formado em Medicina pela Universidade de Bruxelas, com a apresentação de tese,em 1865, perante a Faculdade de Medicina sobre – A teoria das gastralgias e das nevrozes em geral”. ( FAUSTO et al. 1976).

 

 

MENTALISMO  X  ORGANICISMO

 

 

A partir do segundo semestre de 1879, os Annaes Brasilenses de Medicina, um jornal com publicações médicas gerais, passa a apresentar  concomitantemente   em   capítulos, como se fossem folhetins,  as  memorias, apresentadas  à  Academia  Imperial  de  Medicina  com  vistas  à  obtenção do grau de membro titular, de Nuno de Andrade denominada “Da  natureza e  do  diagnóstico  da  alienação mental”(1876),  e  a  de Afonso  Pereira  Pinheiro, Intitulada “Das lesões somáticas na loucura”(1879). Observe-se que há um lapso de tempo, entre a publicação das memorias, de três anos, o que indica que, propositadamente, houve a intenção de se contrapor os direcionamentos mentalistas e organicistas. Oposição que permanece até hoje na ciência psiquiátrica. Com a ressalva de que essa “oposição” mente e corpo, físico e psíquico, era menos radical e acirrada que nos dias atuais, propiciava-se o diálogo e não a estratificação como a que ocorre nos simpósios e mesas-redondas dos congressos da ABP. Andrade, autor da primeira síntese classificatória brasileira, utilizou itens nosográficos de Guislain, organicista e mentor de outro arraigado organicista, Griessinger, e por outro lado, Pinheiro admitia a existência da alma, uma característica mais apropriada aos mentalistas da época.    

 

“Somos  vitalistas  convicto,  não só porque  a  lógica  no-lo ordena, como também

             porque    os    organicistas,    com   sua    argumentação    contraproducente,    nos  

            ensinarão a robustecer a crença na vida-principio”. (NUNO DE ANDRADE, 1876)

 

“É   por   isso  que  os  diversos  estados  da alma se representão na parte material da entidade    humana,    como    as    excitações    orgânicas     modificão    também   a  atividade  psychica,   reconcentrando-se,   ou  tendendo   a  concentrar-se   no centro cerebral”.(AFFONSO PEREIRA PINHEIRO, 1879)

 

 

 A BANALIZAÇÃO DOS DIAGNÓSTICOS DE DEGENERAÇÃO

 

Chegando-se  a Juliano Moreira  e  Afrânio Peixoto, na virada do século XIX para o XX,  apresenta-se   uma  crítica mordaz,  onde  eles  desancam o  alienismo, importado seja de onde  for, para denunciar o  caos  que   havia  se   instalado, com  a  banalização   no  diagnóstico     dos degenerados. Um outro fenômeno semelhante, já havia ocorrido  na primeira metade do século XIX,  com as  monomanias  de Esquirol.  Por volta de 1882, Machado de Assis  no  seu  clássico conto “O  Alienista” já ironizava  o excesso classificatório no asilo da “Casa  Verde”. Juliano Moreira  e  Afrânio Peixoto  deram olhos  e ouvidos a esse viés  cultural  do alienismo  e  concretizaram  esses  questionamento  sob  bases  científicas. (Archivos Brasileiros de Psychiatria, Neurologia e Sciencias Affins, 1905)

 

“É um  verdadeiro estado  de  Babel  ou confusão  psychiátrica,  em  que  a   gente se arrisca, no  fim,  a  não shair   à   luz com  uma  iddéa  definida ... Por  outro  lado,   uma enfiada  de  designações francezas,  allemãs,  inglezas,  italianas,  todas  sem  sentido limitado, abrigam, velleidades   diagnosticas  de  especies   affins,  completando  o  labyrinto...  Permitindo   de um  lado  suppôr   degenerada   toda   a  especie  humana,    marcando-lhe  do  outro,  como destino  ineluctavel,   o  hospital,  o  manicomio,   a  prisão,  a   esterilidade  e  a   extincção, fazem  crer  que  chegamos  a  um  finis hominis  irremediavel...  Quanto  ao  atavismo peior ainda”. (JULIANO MOREIRA & AFRÂNIO PEIXOTO)

 

 

EPÍLOGOS

 

Ao estudar-se a história da Psiquiatria no mundo, tem-se que os ciclos da ciência mental repetiram-se, por exemplo, no Império Romano a partir dos pilares gregos.Depois,com a renovação destes conhecimentos dentre os árabes que os abrigaram no período das trevas da Idade Média que entremearam-se com o período do Renascimento:

 

“ Depois da queda do Império Romano do Ocidente, quase todo conhecimento grego na Europa ficou recluso ou se perdeu e os hospitais das ordens monásticas passaram a ser quase apenas depósitos de doentes à espera da cura ou  mais freqüentemente da morte, caso esse fosse o desejo de Deus”.

Enquanto isso ocorria, a Medicina era a primeira ciência grega estudada  profundamente nas escolas islâmicas. Numa época em que aprender e pensar transforma-se em heresia na Europa, pensadores encontram refúgio no mundo árabe. (CORDÁS, 2002)

 

 Após a época do Renascimento e chegando-se, enfim, ao século das luzes (XVIII) onde se tem em Pinel , o proto-alienista dessa nova ciência,agora “contemporânea”:

 

“ A marcha imponente que, neste século, o espírito de observação, a linguagem aforística e os métodos de classificação comunicaram à história natural não deveriam servir de exemplo e de guia na Medicina? E cada objeto novo de pesquisa não aponta tal necessidade? É um teste que eu mesmo fizera ao querer aplicar outrora aos alienados de Bicêtre estudos anteriores realizados sobre a mania. Tudo me ofereceu a princípio a imagem da confusão e do caos. Estavam ali alienados sombrios e silenciosos, aqui furiosos, com os olhos ferozes e em contínuo delírio; acolá, todos os indícios de juízo sadio eram acompanhados de arrebatamentos frenéticos; mais além, havia um estado de nulidade e de idiotismo estúpido”. (PINEL, 2007)

 

            Dessa maneira, exigir-se do alienismo brasileiro no século XIX uma produção científica original é algo excessivamente rigoroso. Os alienistas brasileiros, com pouquíssimos recursos ao acesso científico da época, conseguiram realizar adaptações criativas e com personalidade própria. Ainda mais se levarmos em conta que os conhecimentos alienísticos no século XIX tinham uma evolução lenta e gradativa, pelas dificuldades óbvias de difusão desses saberes. O caso da evolução histórica da psicopatologia exemplifica muito bem esse fato:

 

“ Os conhecimentos psicopatológicos, sejam eles referentes aos transtornos mentais ou aos sinais e sintomas básicos do adoecimento mental, foram gerados, principalmente, a partir da segunda década do século XIX até o final da primeira metade do século XX. Nesse período surgiu o que Berrios (1996) chamou de uma linguagem da descrição, o que implicou a criação tanto de um léxico como de uma gramática, especificamente devotados à descrição, à compreensão e à delimitação das doenças mentais e suas manifestações. A psicopatologia é, nesse sentido, apreendida como um quadro geral, teórico de um lado, clínico-empírico de outro, que estabelece um vocabulário e um protocolo de observação e narração ( que inclui a escrita, tanto da história clínica como do texto sobre a psicopatologia)”. (DALGALARRONDO, SONENREICH & ODA, 2004)

 

            O alienismo brasileiro foi eclético, bem mais que positivista. Apoiou-se terapeuticamente nas pesquisas jesuíticas dentre os nativos indígenas, assim como cita o padre José de Anchieta:

 

“Até agora estive sempre em Piratininga, que é a primeira aldeia de índios, que está pelo sertão dez léguas do mar, como em outra vos escrevi, na qual sarei, por que a terra é muito boa, e porém não tinha xaropes nem purgas, nem os mimos da enfermaria. Muitas vezes e quase o mais continuado, era o nosso comer folhas de mostardas cozidas e outros legumes da terra, e outros manjares que lá não podeis imaginar”. (JOSÉ DE ANCHIETA, (1555) apud NAVARRO, 1997)

 

 

A prevalência do tratamento aplicado pelos religiosos seria observada de forma concreta nas descrições de Carl Von Martius, um médico, botânico e antropólogo que veio para o Brasil em 1817, permanecendo no país até 1820. DALGALARRONDO, 1999 reproduz relatos de Von Martius: “ A única doença mental de que ouvi falar deveria ser comparada com a licantropia, isto é,  com a alienação, na qual o indivíduo, fora de si de raiva, corre ao ar livre imita a voz do cão ou do lobo, transformando-se em lobisomem... Os missionários consideram sempre necessário separar  os doentes da sociedade, para que o mal não se alastre mais”.

            Como prova de que a influência do alienismo europeu não se expandia fortemente apenas para países recém-emancipados politicamente, atesta-se na descrição da difusão das idéias eugênistas nos EUA no início do século XX: “O movimento eugênico atingiu seu pico de notoriedade na América do Norte no período de 1908-1925. Atraiu proeminentes cientistas, reformadores sociais, educadores, políticos e industriais”. (PICCININI, 2001)

            Para finalizar, vale ressaltar que, em comunicação oral feita pelo Prof. Dr. Mário Eduardo Costa Pereira, da UNICAMP, no XXV CBP no curso de “Psicopatologia”, caracterizou-se que os dois únicos autores brasileiros citados em toda a obra de Jacques Lacan, acerca de referências à paranóia, incorporadas somente depois por Kraepelin, foram Juliano Moreira e Afrânio Peixoto, dois legítimos representantes do alienismo nacional advindo do século XIX.

Pergunta-se: será mesmo, que o  alienismo  e  a  psiquiatria  brasileira,  no  século  XIX,  foram  meros  repassadores dos ditames do alienismo e da psiquiatria européia dessa mesma faixa temporal?

 

REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS

 

 

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