Volume 10 - 2005
Editor: Giovanni Torello

 

Dezembro de 2005 - Vol.10 - Nº 12

História da Psiquiatria

"TRATAMENTO HOSPITALAR COM ORIENTAÇÃO PSICANALÍTICA"

Walmor J. Piccinini

Introdução



O título desse artigo é, na verdade, o título da Tese de Livre Docência do Professor Marcelo Blaya, apresentada na Faculdade de Medicina de Porto Alegre em 1960. Sua Pesquisa foi desenvolvida na Menninger Clinic, de Topeka, Kansas onde fez Residência em Psiquiatria durante 4 anos. Consideramos esse trabalho um marco na história da modernização da assistência psiquiátrica no Brasil.

Sumário da Tese.

Tratamento psiquiátrico hospitalar ou ambulatório é uma necessidade para milhões de seres humanos. A maioria deles não recebe tratamento algum; outros recebem cuidados médicos não psiquiátricos e poucos recebem tratamento especializado.

Dos pacientes hospitalizados uma minoria recebe tratamento intensivo e se recupera. Os demais se eternizam nos hospitais, somando aos seus problemas os criados pela cronicidade da dependência do hospital. O estudo de asilos e hospitais para enfermos mentais graves através dos tempos, mostra que, seu aparecimento e utilização visaram o atendimento das necessidades do grupo social, raramente o das necessidades dos pacientes. O êxito terapêutico limitado dos hospitais classificados na primeira, segunda e terceira etapa parece ser devido a esses objetivos mencionados.

A mudança de um hospital da terceira para a quarta etapa de evolução, independe de instalações materiais dispendiosas, Esse progresso foi feito no hospital mencionado no texto (Topeka State Hospital), na base de treinamento intensivo de profissionais em número suficiente para atender às necessidades terapêuticas dos enfermos. O trabalho desses profissionais em equipes, parece ser a forma mais racional para a utilização máxima de seu potencial de trabalho, mas certamente não é a única solução. Estudei nesta tese dois grupos de pacientes tratados no mesmo hospital, em períodos separados por um espaço de quinze anos. O sucesso terapêutico foi avaliado em termos de recuperação social e alta do hospital.

Os resultados verificados nos pacientes do grupo-controle são por mim atribuídos á insuficiência do tratamento estabelecido, baseado exclusivamente em métodos somáticos, Os resultados terapêuticos obtidos com os pacientes por mim tratados são estatisticamente mais satisfatórios do que os do grupo-controle. Acredito que isso é devido a que os programas de tratamento utilizados vão ao encontro das necessidades conscientes e inconscientes dos pacientes. O tratamento utiliza métodos somáticos mas repousa principalmente em técnicas terapêuticas de tipo psicológico. Os programas ecléticos prescritos enquadram-se dentro de uma orientação psicanalítica. O sucesso terapêutico obtido é potenciado pelos cuidados dispensados ao paciente após sua alta através do Serviço Ambulatório, Serviço Social, médicos da coletividade e pela utilização de lares adotivos.

Método: O Professor Blaya estudou dois grupos de pacientes do Topeka State Hospital que havia sido entregue para administração da Menninger Clínic. (Essa administração conseguiu reduzir o número de pacientes internados de 1870 para 300 crônicos, residentes).

O grupo controle era constituído de 30 pacientes admitidos a partir de 1 de julho de 1941. Essa data foi escolhida por coincidir com a introdução da eletroconvulsoterapia nos tratamentos daquele hospital. Os pacientes do segundo grupo foram aqueles que estudou e tratou no período de 1/07/1956 a 30/06/1957. A seleção dos pacientes obedeceu ao rodízio normal dos internamentos. As diferenças entre os dois grupos são fáceis de serem notadas. No grupo controle se observa, história clínica curta, amplo uso de métodos somáticos de tratamentos, longos internamentos, cronificação. No segundo grupo, histórias longas e exaustivas permitindo conhecer a fundo a personalidade do paciente, menor uso de métodos biológicos, menor tempo de internação, maior reintegração social.

Quadro 1.

Tipos de tratamento - comparação entre os dois grupos

Somáticos. Grupo Controle. Pacientes estudados.
Coma insulínico 36% 6%
Convulsoterapia 43% 10%
Hidroterapia 17% -
Lobotomia 3% -
Malarioterapia 13% -
Sedativos 40% -
Tranqüilizadores 3% 48%
T.E, para sífilis e penicilina 13% 3%
Psicológicos.
Atitude e Ambiente - 100%
Psicoterapia de Grupo - 26%
Psicoterapia Individual 3% 35%
Terapia Ocupacional - 96%


A tese é rica em ensinamentos, seja pelo aspecto historio, mas principalmente por nela estarem delineados conceitos que se tornaram ferramenta de trabalho em todas as mudanças ocorridas a partir de então nos hospitais psiquiátricos brasileiros: ambientoterapia, praxiterapia, socioterapia, hospital-dia, hospital-noite, alta progressiva, reinserção social do enfermo, acompanhamento terapêutico, equipe multiprofissional, hospital de orientação dinâmica, o uso de tranqüilizantes com objetivos dinâmicos e outros.

Relato de uma experiência pessoal.

Lá pelos idos de março do ano de 2005, fui visitar uma paciente e me deparei com uma faixa na entrada do hospital onde estava escrito com destaque: Clínica Pinel, 45 anos, data da fundação, 28 de março de 1960. Considerando que comecei a trabalhar na Clínica no início de junho de 1960, logo eu também teria 45 anos de envolvimento com a psiquiatria. Passei no vestibular para a Medicina em fevereiro de 1960, iniciei a Faculdade em março e em meados de maio li um anúncio na entrada da faculdade ofertando possibilidade de emprego numa clínica psiquiátrica. Pensava em ser cirurgião e trabalhar no interior, nem tinha idéia do que seria a tal psiquiatria. Minha realidade naquele momento era conseguir sustento, eu precisava e muito de um trabalho remunerado. Na época, a Clínica Pinel, estava situada próxima da faculdade, na Av. João Pessoa. Lá comparecendo, desanimei diante de uma ameaça concreta ao meu objetivo, a sala de espera estava cheia de alunos do terceiro ano, aqueles quase doutores eram muito mais que um calouro com três meses de faculdade. Como lá estava, não desisti e fiquei para a entrevista com o dono da clínica, o Dr. Marcelo Blaya. O horário era um problema, a maioria dos candidatos desistiu e eu consegui a vaga. Comecei a trabalhar no dia 1 de junho de 1960 no horário das 15 às 23 horas. A única vantagem é que podia pegar o bonde das 11;15 e descer em frente da minha casa no Bairro Partenon. Meu primeiro dia de trabalho consistiu em observar os atendentes mais veteranos, dar medicação aos pacientes e realizar atividades recreativas. Era um mundo completamente diferente. Observar uma pessoa falando sozinha, outra imóvel num estado que depois soube que se chamava catatonia, outros com atitudes bizarras. Tive que me esconder para rir, depois entendi que estava rindo "de nervoso". Não se usava uniforme, o espaço era compartilhado com os internados, em determinados momentos era difícil distinguir o paciente do atendente. No mês seguinte o Dr. Marcelo solicitou que indicasse algum colega que eu achasse que poderia se entrosar no serviço. Aí convidei a Carmen Dametto, que hoje está radicada no Rio de Janeiro. Junto com ela entrou o Jorge Rodrigues, que fez carreira dentro da Clínica, formou-se em Enfermagem e tornou-se professor da Escola de Enfermagem da UFRGS, mais tarde formou-se em Psicologia e trabalha em seu consultório.

Essa foi uma marca da Clínica Pinel, seus atendentes. Muitos se tornaram psiquiatras, psicanalistas, professores universitários o que demonstrava uma boa seleção e uma escola de vida excepcional. Alguns que não seguiram na psiquiatria, se tornaram excelentes profissionais nas suas especialidades.

O tempo foi passando e fui conhecendo melhor a vida das pessoas envolvidas na clínica. Marcelo Blaya formou-se em Medicina na UFRGS em 1954. Era filho de um padeiro de Santa Maria e funcionário da Caixa Econômica Federal. Depois de namorar a neurologia, foi para os Estados Unidos da América e conseguiu vaga de residente na Clínica Menninger, em Topeka, Kansas. Depois de quatro anos retornou ao Brasil e começou a trabalhar em Porto Alegre. Na época existiam o Hospital Psiquiátrico São Pedro, o Sanatório São José, O Hospital Espírita e a Clínica Santa Elizabeth em São Leopoldo. Para situar a psiquiatria gaúcha no tempo:

No período de 1937 o Dr. Jacinto Godoy dirigiu o HPSP. Em 1938 foi realizado o primeiro concurso para psiquiatras, tendo sido aprovados: Luiz Pinto Ciulla, Mário Martins, Cyro Martins e Victor de Brito Velho. Nesse mesmo ano foi fundada a Sociedade de Neurologia e Psiquiatria do Rio Grande do Sul e seu primeiro presidente foi Jacinto Godoy. Mário Martins foi para Buenos Aires, foi analisado por Angel Garma, fez sua formação analítica e retornou para Porto Alegre em 1947. Depois dele chegaram José Lemmertz, Celestino Prunes e Cyro Martins e esses quatro começaram a formação de analistas no Rio Grande do Sul.

Em 1957, David Zimmermann, com Paulo Guedes iniciou o primeiro curso de formação em Psiquiatria Dinâmica do Brasil. A primeira turma formou-se em 1959.

Em 1959 Marcelo Blaya voltou para o RS e começou a atender pacientes psicóticos. Quando esses pacientes necessitavam hospitalização, ele utilizava o Hospital Espírita. Ao descobrir que os pacientes recebiam "passes" atritou-se com sua direção e aí a alternativa que restava era a de abrir o seu próprio hospital. Foi apoiado pelo Dr. Manoel Albuquerque que serviu de fiador do imóvel onde começou a funcionar esse hospital/clínica. A batalha seguinte foi conseguir montar um corpo clínico. O primeiro a ser procurado foi David E.Zimerman. Na época David flutuava entre a pediatria e a medicina interna. Trabalhava na Brigada Militar e em consultórios de bairro. Foi uma grande aquisição, David logo demonstrou uma aptidão natural para o manejo do paciente psiquiátrico e no ensino. (Hoje em dia, David E. Zimerman é psicanalista e autor de vários livros sobre psicanálise com grande impacto no público da área psi.). O outro membro da equipe foi o Dr. Nelson Lemos, que ficou pouco tempo devido às suas crenças religiosas, era espírita e isso não foi aceito por Marcelo Blaya. Nelson Lemos montou seu próprio hospital na cidade de Canoas, a Clínica Santa Tecla e lá construiu profícua vida profissional. Foi substituído por Isacc Sprinz, oriundo da Faculdade de Medicina de Santa Maria, de lá, por influência do Prof. Oscar Schelp vieram muitos outros.

A Pinel era uma revolução, tornou-se um ideal de vida e trabalho para muitos jovens médicos. Seus primeiros anos foram extraordinários. Foi transformada num Fundação. Depois vieram crises, crises sucessivas, muitos se afastaram e com o tempo, com o afastamento de Marcelo Blaya da psiquiatria e sua dedicação a psicanálise, ela foi perdendo sua característica de escola psiquiátrica e transformou-se numa clínica privada.

No período de 1961 a 1991 a Clínica Pinel, formou 152 profissionais entre médicos, psicólogos, enfermeiras, assistentes sociais. Foi a primeira residência multi-profissional do país. Citar todos que por lá passaram deixaria esse trabalho muito extenso. Vou lembrar apenas dois, já falecidos, e que guardamos em nosso coração. Harri Valdir Graeff, ex-presidente da AMRIGS, construtor do Centro Amrigs, presidente da Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. Ex-presidente do INAMPS, ex-prefeito de Pato Branco, um cavalheiro, um amigo. Milton Shansis, professor de psiquiatria na UFSM, lembrado pelo carisma, alegria de viver e seriedade profissional.

Nosso objetivo nesse trabalho foi o de assinalar um momento da psiquiatria brasileira que pode ser visto por vários ângulos. Um deles, é a presença marcada nas transformações que ela sofreu nos anos 60, da influência norte-americana. Considero a transposição para o nosso meio das concepções da Clínica Menninger, um fato muito positivo. As idéias desenvolvidas a partir da Clínica Pinel se difundiram pelo país, seja pelos seus ex-alunos como José Onildo Betioli Contel em Ribeirão Preto, Antonio Napoleão dos Santos em Marília, Evaldo Melo de Oliveira em Pernambuco, Eduardo Afonso Junior em Natal. Juarez Straatman em São Paulo e tantos outros, como pela adesão de Luiz Cerqueira, Oswaldo Santos e outras figuras marcantes da psiquiatria brasileira.

A experiência vivida na Clínica Pinel de Porto Alegre não pode ser transmitida num artigo apenas. Vamos analisá-la com novos artigos abarcando algumas áreas especiais. (continua).


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