Volume 9 - 2004
Editor: Giovanni Torello

 

Agosto de 2004 - Vol.9 - Nº 8

Psiquiatria, outros olhares

Perfil etnopsicológico do enfermo

Dr. Antonio Mourão Cavalcante

INTRODUÇÃO

Estar doente é vivenciar uma situação especial. Muitas vezes concebida como ruptura. O equilíbrio seria a normalidade. Além de apresentar um envolvimento orgânico - alguma parte está ferida ou fora da regularidade - a pessoa experimenta um momento diferente de sua dinâmica. Vamos comentar alguns destes aspectos na perspectiva de compreensão do ato de estar enfermo, sobretudo na dimensão etnopsicológica. Como fica a cabeça de alguém que adoece? Quais são os fatores que interferem nessas circunstâncias? O que a cultura processa nessas circunstâncias?

O quadro pode ser distinto, conforme o paciente esteja em situação:

- Ambulatorial - ele vem em consulta. Será um encontro menos formal e mais rápido. A semelhança sugere proximidade. Seja na vestimenta ou mesmo na aparência. “Nem parece doente!”

Nesse caso a grande preocupação girará em torno da questão: está ou não doente? Parece elementar questionar-se dessa forma. Não raro, porém, o médico assume uma postura equivocada. Sente-se na obrigação de encontrar uma doença. Busca, desesperadamente, um diagnóstico para “oferecer” ao paciente. O que pode explicar, por exemplo, a insistência no pedido redobrado de exames complementares e de prescrições vazias de senso clínico.

Para o médico é importante indagar-se: quem é essa pessoa? Qual o significado/implicação dessa possível patologia em sua economia psíquica? Pois, um mesmo sintoma adquire significado distinto, conforme quem o relata.

Ganhar a confiança é outra recomendação fundamental.

- Hospitalar - o paciente está internado. Esse status torna-o mais frágil. Não encontra-se mais em seu hábitat natural, sua casa. Indica, igualmente, que o seu caso requer mais cuidados. Estréia uma vestimenta específica, a roupa de doente do hospital. Todos os seus hábitos e rotinas são quebrados: o lugar dos chinelos, da escova de dentes, do banheiro, do leito, a ausência da família e dos amigos. Nessa circunstância, não é raro, sentir-se acuado. Este será um evento que marcará sua vida. Ninguém esquece essa experiência.

- Emergencial - o paciente está em cuidados intensivos. Foi pego de uma forma abrupta e jogado num local onde pessoas correm risco de vida. Isolado, algumas vezes experimentar situações de perda de consciência e de obnubilação. O ambiente ajuda nessa perspectiva: iluminação artificial, cortinas, ar condicionado, pessoas com máscara, todos de branco, aparelhos cintilando. Breve, uma vigorosa vivência. Além, obviamente, dos preconceitos em torno do assunto. Que ele já sabe e já ouviu falar.

Além desses aspectos, as reações psicológicas estão em função de outros parâmetros:

+ comprometimento orgânico - quanto mais as funções vitais parecem dificultadas, maior será o grau de preocupação e ansiedade. Para o leigo a momentânea subtração de uma função ou aparecimento de um certo sintoma, podem ser hiper-majorado em termos da percepção do quadro. E, paradoxalmente, negligenciando um sintoma que revela uma imensa gravidade. Exemplo, uma momentânea reação alérgica da pele versus uma lesão hanseniana indolor.

+ gravidade da patologia - o abalo emocional será sentido pelo paciente conforme seja o enunciado do problema. Muito mais que a gravidade, conta a percepção que ele faz da patologia, as experiências vivenciadas e o conhecimento básico do assunto. A doença pode ter uma dimensão genética/hereditária, provocando considerações e julgamentos os mais díspares.

+ personalidade de base - a doença vai ser uma nova peça no puzzle existencial. Há uma estrutura de base, um jeito de ser e a patologia vai-se instalar encima dessa realidade pessoal. Se a pessoa é constantemente ansiosa, vivenciará o episódio com mais intensidade e emoção acrescidas. Sendo emocionalmente mais consistente, suportará melhor o desenvolvimento desses acontecimentos. Daí a relevância em conhecer bem a estrutura psíquica do paciente.

+ importância do corpo para a pessoa (valor narcísico) - algumas pessoas investem mais em construir ou preservar a imagem do corpo. Acreditam que valem o que significa o corpo ou uma de suas partes. Fala-se das pessoas belas e que a doença pode ser um motivo de inquietação e desestabilidade. Das que fazem especificamente de um órgão sua identidade, como por exemplo, um atleta, um artista. Para estas pessoas acrescenta-se ao corpo, um valor narcísico;

+ grau de instrução - evidancia-se um paradoxo. Quanto menos sabe e quanto mais sabe, melhor. Isto é, aquele que ignora completamente a dinâmica clínica, desconhece ou não pode aquilatar plenamente o grau de comprometimento da referida patologia. E, por ignorância, não sofre. O mesmo pode-se afirmar do que sabe muito. Desde o início e ao longo do processo patológico tem plena consciência do que ocorre e isso é fator de equilíbrio. Os graus intermediários, que geram dúvidas e incertezas, parecem ser os mais difíceis a administrar emocionalmente.

+ idade - em nossa cultura admite-se que os processos patológicos são mais recorrentes entre os idosos. Isso faz uma enorme diferença. Se jovem, aumenta a ansiedade. Se mais idoso, rende-se a evidência. “Também, com essa idade!..”

+ classe social - dada à circunstância de sofrimento em que vivem, as camadas populares mostram suportar com mais resignação as situações de patologia. O sentimento religioso, impregnado de acentuado fatalismo reforça essa situação.

+ sexo - item controverso. O sexo feminino saberia conviver melhor com o sofrimento e a dor. Isso por dois motivos: a vivência dos ciclos menstruais e da gravidez. Pode-se, igualmente, associar ao fato que culturalmente foi atribuído à mulher um papel de conformação e subserviência.

COMPORTAMENTO

Podemos assinalar algumas características próprias ao comportamento do indivíduo enfermo.

(*) Labilidade emocional - diante da situação de fragilidade, vai mostrar uma labilidade emocional acrescida. Fica mais vulnerável ao choro. Pode torna-se agressivo e reivindicativo. O quadro de limitação, imposto pela doença ou pelas circunstâncias da doença, pode levá-lo a situações de irritação, tanto com a equipe médica, como para os familiares. Inconscientemente, essa irritabilidade pode ser entendida, do ponto de vista sistêmico, como uma forma de testar a equipe médica e a família, se seriam capazes de suportar-lhe, ficando o quadro ainda mais grave...

(*) Regressão - Assume condutas infantis, buscando proteção e defesa. Uma espécie de retorno a níveis anteriores do desenvolvimento. Aceita ou até mesmo solicita cuidados especiais.

(*) Sentimento de inferioridade - Pode achar-se inferiorizado diante do médico, vindo a associá-lo com a figura de um pai autoritário. A imponência do médico favorece essa impressão: a roupa branca (jaleco), o consultório sofisticado e a própria distância que este estabelece. Por outro lado, ter que exibir um corpo despido, doente ou mutilado torna-se uma experiência bastante constrangedora. Até mesmo vestir uma roupa comum e padronizada. O “território” é estranho, com espaço limitado. O choque parece maior para as crianças e os idosos.

(*) Carência afetiva - dada à circunstância, vai precisar de muito apoio afetivo. Estará mais aberto ao carinho, afago. Muitas vezes é o próprio paciente que reivindica essa situação, desejando ser o centro das atenções. E, em termos culturais, será mais autorizado. Isto é, se antes existiam barreiras, interditos, agora o afeto pode assumir formas mais concretas. Essa carência poderá ser suprida através de cuidados mais redobrados, na alimentação, no horário dos remédios, na proximidade física, no ouvido mais atento. Em todo caso, deve-se ter cuidado para não desenvolver a dependência.

(*) Sentimento de atemporalidade - não reconhece mais o dia e a noite, o mês e o ano. O que pontuava o tempo era a atividade profissional, o trabalho, o ir e o vir. Agora, isolado, preso ao leito, esses elementos ficam sem sincronia com a vida normal. Ademais, os hospitais primam pelo isolamento, com portas e janelas cerradas. Iluminação artificial. Até mesmo a falta de um trivial relógio de parede...

(*) Função na economia psíquica -, alguns pacientes podem achar "bom" estar doente. Essa tem sido a única forma de despertar a atenção da família, obtendo carinho. Nestes casos, paradoxalmente, estar bem é ficar ruim. Significa deixar de receber a atenção dos que lhe são caros. A doença pode ter uma função sistêmica. Por exemplo, o fato de alguém estar doente na família favorece uma maior aproximação de todos e uma comunicação / diálogo mais construtivo e amoroso.

(*) Negação do diagnóstico - a expectativa da espera e do que pode ser revelado, gera um certo temor. Algumas vezes o paciente chega a omitir dados essenciais - fatos e sintomas - sobre o quadro atual, receioso do que isso possa trazer como conseqüência, em termos de diagnóstico e tratamento.

(*) Medo da morte - Seria diretamente proporcional ao quadro clínico, isto é, a situação que o paciente está enfrentado, em face de sua estrutura psicológica. A doença é um elemento concreto de confrontação com a morte.

RELAÇÕES SOCIAIS

Do ponto de vista social aponta-se alguns itens a refletir:

(*) Dependência - receio de tornar-se um peso para a família e a sociedade. Ficar enfermo seria, para estas pessoas, dar uma demonstração de fraqueza ou de comprometimento da autonomia. Nos idosos, essa situação é ainda mais delicada porque eles não desejam aprofundar o laço de dependência. Escondem o quanto podem a situação em que se encontram ou como se sentem. Muitos dizem: “prefiro morrer a ter que dar trabalho a minha família..”

(*) Incapacidade - Vir a ser considerado ou visto como um frágil e inútil. O meio em que vivemos nos ensina, desde cedo, que devemos ser produtivos. Afastado das atividades, gera o sentimento de inutilidade. Pode ocorrer uma grande ansiedade que compromete o tratamento e uma vontade de ir embora, abandonar o tratamento, principalmente quando responsáveis pelo sustento da família, ou quando ocupam cargo de alta relevância.

(*) Mudança de hábitos - Certos procedimentos e condutas são modificados. Tem que se submeter a rotina instituída pelo hospital ou pelas instruções do médico. A conduta estará ditada pelo tipo de patologia e sintomas. Por exemplo, a substituição dos açúcares, do sal, de certos alimentos, de certas práticas. Isso nem sempre se processa de forma adequada.

(*) Resistência - paciente pode considerar-se um forte e tentar resistir às manifestações da doença. Considerando-se corajoso, esconderá os sintomas o quanto for possível. Essa resistência pode ser expressa em pequenos detalhes, como, por exemplo, ser ajudado a andar, a trocar de roupa, ir ao banheiro, etc. Pode perceber que a imagem pessoal fica comprometida com essa manifestação de fraqueza. Muito comum em pessoas públicas que precisam passar uma imagem positiva de vitalidade e força.

DIMENSÃO RELIGIOSA

Quanto à perspectiva religiosa observa-se:

(*) Introspecção - Reflexivo. A doença anuncia-se como uma ocasião para um balanço de vida. Como será quando sair dessa situação? Como determinará as relações a partir desse episódio? Quais serão os novos projetos? Enfim, muitos dizem: “depois dessa doença, ele não é mais o mesmo...”

(*) Aumento do sentimento religioso e da fé - há um processo de reativação religiosa, chegando até mesmo a conversão a uma nova religião ou o retorno a práticas esquecidas. As igrejas fazem desses locais espaços de assistência e proselitismo. Algumas prometem cura e milagres através de orações e ritos especiais. O arrependimento é tido como uma condição fundamental nesse processo.

(*) Doença como castigo - se está doente é porque rompeu o código moral, ético, religioso, cultural ou simplesmente normas alimentares. A doença configura-se como uma punição. Foi uma forma de pena pelo interdito rompido. Deve pagar com um castigo que é a doença. Isso explica, por exemplo, a vergonha em estar ali, portador daquela doença. Por isso, o sentimento subjacente de resignação: “fiz por onde estar assim!”

CONCLUSÃO

A doença deve ser entendida como um episódio que mexe em muitos setores da vida do paciente. O médico precisa levar em conta todas estas dimensões. A formação médica deve considerar todos estes momentos. O aprendiz deve experimentar todas estas vivências que não se encontra em tabelas e textos acadêmicos. Ater-se unicamente aos aspectos anatômicos e fisiológicos do enfermo é demonstrar uma rigorosa estreiteza clínica. Pode até ser perfeito como ato técnico. Não é jamais uma atitude médica.

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

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Duarte, Luiz Fernando Dias (org.) - Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas, Rio de Janeiro, Fiocruz, 1998;

Laplantine, F. - Anthropologie de la maladie, Paris, Payot, 1986;

Rabelo, M.C.; Alves, P.C.B.; Souza, I.M.A. - Experiência de Doença e Narrativa - Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz, 1999;

Venâncio, Ana Tereza A. e Cavalcanti, Maria Tavares (org.) - Saúde mental - campo, saberes e discursos, Edições IPUB - Cuca, 2001;


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