Volume 9 - 2004
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2004 - Vol.9 - Nº 1

Artigo do mês

Traumatismos craniencefálicos e disfunções sexuais

Carlos Alberto Crespo de Souza

“O problema das disfunções sexuais em conseqüência de raios, choques elétricos e traumatismos craniencefálicos é tão silencioso, silencioso, que os médicos responsáveis pelos seus pacientes não os questionam a respeito dessas disfunções em suas histórias pós-traumas.”

Simkins (Member of the Brain Injury Asso- ciation, Michigan, Estados Unidos) 1

  1. INTRODUÇÃO

De acordo com membros da Associação dos Traumatizados Cerebrais de Michigan, Estados Unidos, entre os quais Simkins - um advogado especializado em representar pessoas sobreviventes de traumatismos craniencefálicos (TCE), choques elétricos e raios - há, na medicina, um intrigante e surpreendente silêncio a respeito da sexualidade pós-trauma.

Segundo esse associado, "numa sociedade onde a sexualidade parece tão importante em nosso humor, televisão, comerciais, política e algumas vezes em outros aspectos de nossa cultura, é uma vergonha que as pessoas são deixadas a sofrer com elas mesmas sem conhecer as razões de suas disfunções sexuais, sem conhecimento de que eles possam estar carentes de cuidados, tratamento e formas terapêuticas que possam ajudá-las."

Avançando mais em excelente artigo que escreveu, Simkins mostra que a própria Organização Mundial da Saúde preconiza que "a saúde sexual é definida como a integração dos aspectos somáticos, emocionais, intelectuais e sociais do ser humano como forma de enriquecimento pessoal e elevação da personalidade, comunicabilidade e amor." 1

Ao mesmo tempo, o grupo de especialistas credenciados por esta organização internacional adotou a posição de que "a noção de saúde sexual implica na abordagem positiva da sexualidade humana, com o propósito de que represente uma elevação da vida e dos relacionamentos pessoais e não meramente num aconselhamento e cuidados a respeito da procriação ou da transmissão sexual de doenças." Ibid

Entretanto, de acordo com seu entendimento, "A saúde sexual é freqüentemente desprezada como parte integral da saúde como um todo. Por muitas razões, milhões de pessoas não discutem seus problemas de saúde sexual com seus médicos. Mantendo esses aspectos para si próprios, eles sofrem silenciosamente..." Ibid

Como tenho observado, tanto através de alguma experiência clínica e de registros bibliográficos, que os TCE de um modo geral não são devidamente avaliados e suas conseqüências deletérias pouco consideradas no mundo ocidental, fiquei a pensar nessa particularidade de modo especial. Lembrei-me de algumas situações clínicas com as quais tive oportunidade de participar como consultor, quando a personalidade se altera e a conduta se modifica, determinando impulsos sexuais até então nunca existentes. Os prejuízos decorrentes dessas situações, em termos familiares e pessoais, são catastróficos, além de que podem implicar em ações delituosas, agravando a situação.

Despertado sobre o tema e desejando ampliar o conhecimento a respeito do que a literatura registrou sobre ele, entendi da necessidade de realizar uma pesquisa ampla, avaliando dados existentes de acordo com registros de fontes de pesquisa.

Além disso, pela ausência absoluta em nosso país sobre artigos relacionados ao tema, com trabalhos indicativos de esquemas ou formas terapêuticas de lidar com os comprometimentos da sexualidade após os TCE, a pesquisa foi entendida como relevante.

  1. METODOLOGIA

De maneira a verificar como a bibliografia tem encarado a questão das disfunções sexuais após os TCE, foram utilizadas várias fontes de pesquisa, incluindo a MEDLINE, a Google, a BIREME e do "Centre for Neuro Skills" (CNS), que inclui artigos da "Brain Injury Association" dos Estados Unidos.

As seguintes palavras-chave foram usadas: “sexual dysfunction and traumatic brain injury”.

O período pesquisado foi bastante amplo de maneira que pudéssemos ter uma visão abrangente ao longo do tempos. Com isto, estabelecemos que todos os títulos existentes e encontrados na pesquisa fossem integrados, sem uma demarcação temporal feita previamente.

Outros livros pertinentes ao tema também foram pesquisados e algumas informações neles contidas foram incorporadas ao texto.

Os achados, em cada um dos tópicos, foram destacados isoladamente.

  1. RESULTADOS
    1. MEDLINE:

De acordo com o levantamento realizado junto à MEDLINE, foram encontradas 43 citações, sendo a primeira no ano de 1965 e a última com data de agosto de 2.003. Algumas citações foram desprezadas pelo fato de que nem o "abstract" estava disponível e outras por tangenciarem o tema.

Do total obtido, dividimos em sub-temas de acordo com o assunto principal desenvolvido pelos artigos encontrados. Assim, os seguintes sub-temas foram registrados

3.1- As seqüelas sexuais são valorizadas pelos médicos?

Em 1989, na Índia, Sabhesan e Natarajan afirmaram, em seu artigo sobre o comportamento sexual após os TCE em homens e mulheres, que "os transtornos nas funções sexuais constitui-se no mais prevalecente e no menos discutido problema em conseqüência dos traumas cerebrais". 2 Posteriormente, em 1996, nos Estados Unidos, Elliott comentou: "A despeito das evidências clínicas de que as disfunções sexuais após os TCE são prevalecentes e de grande importância, seu interesse foi negligenciado em grande parte da literatura dos pós-traumatizados cerebrais e pelo seu sistema de reabilitação." 3 Um pouco mais tarde, em 1999, em Israel, Aloni e Katz, discorrendo sobre esse tema, afirmaram: "Um número possível de conclusões confusas foram descritas indicando as causas e efeitos do funcionamento sexual depois dos TCE e a literatura não esclareceu até agora essa confusão." 4

Mais recentemente, em 2001, nos Estados Unidos, Bell e Pepping, analisando essa temática, descortinaram um outro aspecto ainda menos investigado: as seqüelas sexuais nas mulheres após os TCE. Tendo por base essa análise, afirmaram: "As mulheres com TCE têm sido estudadas de forma inadequada em relação a maior parte dos aspectos psicopatológicos, recuperação, saúde, comportamento e integração na comunidade. Isto não é surpreendente à luz da preponderância dos estudos sobre os TCE que refletem a tendência tradicional de pesquisas médicas concentrando seus esforços nos homens." 5

3.2- Sintomas decorrentes encontrados:

Entre os sintomas ou manifestações sexuais deficitárias decorrentes dos traumas cerebrais foram descritos:

  • ejaculação precoce em homens 6, 7
  • ausência de orgasmo em mulheres 8, 9
  • impotência, mais recentemente disfunção erétil 6, 9, 10, 11, 12, 13, 14
  • diminuição ou ausência de desejo tanto em homens como em mulheres 6
  • diminuição das habilidades corporais para a realização de atividades sexuais 15
  • dificuldades relacionadas com a imagem corporal 15, 16
  • transgressões ou delitos sexuais (toques ou manuseios de pessoas em locais públicos, exibicionismo e agressão sexual franca) 17, 18
  • conduta impulsiva, inapropriada e agressiva 3, 19, 20
  • hipersexualidade 17, 20, 21
  • alteração na preferência sexual (homossexualidade, transvestismo, exibicionismo) 17, 21, 22, 23, 24, 25
  • comportamento sádico 26
  • ninfomania 27
  • mutilação dos órgãos sexuais 28
  • ausência de lubrificação vaginal com dispareunia 15

3.3- Principais obstáculos identificados pelos profissionais:

Kats e Aloni, em Israel, realizando um levantamento entre profissionais no campo da reabilitação sobre as suas percepções a respeito das disfunções sexuais após os TCE, encontraram, como respostas, que a grande maioria deles indicou ser o principal obstáculo à recuperação as seqüelas cognitivas e emocionais e não as seqüelas físicas. 29

3.4- Graus de TCE, localização, idade ao momento do trauma, etc:

Kosteljanetz e cols., em 1981, na Escandinávia, examinarem 19 homens que desenvolveram síndrome pós-concussional. A avaliação incluiu tomografias computadorizadas, testes neuropsicológicos e verificações endocrinológicas através de inúmeros exames de laboratório, além de entrevistas sobre o funcionamento sexual.

Em seus resultados, mostraram que 68 % tiveram atrofia cerebral nos exames tomográficos, 79 % sofreram prejuízos intelectuais, sendo que 37 % destes de uma forma grave. Quanto aos prejuízos na área da sexualidade (redução da libido e disfunção erétil), 58 % confirmaram positivamente. Aumento na concentração do folículo estimulante foi observado em 37 % dos casos, sugerindo uma redução na espermiogênese. A possibilidade de um transtorno hipotalâmico primário causando a espermiogênese é levantada. Por outro lado, evidências radiológicas e laboratoriais de um transtorno hipotalâmico-pituitário foi demonstrado.

Como conclusão, os autores afirmam que a alta freqüência de atrofia cerebral com deterioração intelectual na síndrome pós-concussional sugerem uma disfunção orgânica, porém sem que uma causa tenha sido estabelecida. 30

Sandel e cols, em 1996 nos Estados Unidos, investigaram o funcionamento sexual em 52 pacientes com história de TCE. Seus objetivos foram os de determinar: 1) a prevalência de registros de disfunções sexuais, 2) a relação entre o funcionamento sexual e a idade, gravidade e local da lesão, tempo desde a lesão, funções físicas e cognitivas.

Como resultado, encontraram que os pacientes com lesões nos lobos frontais registraram níveis mais altos de satisfação sexual comparados com os que não as tiveram. Aqueles que sofreram lesões no hemisfério direito também evidenciaram melhores escores de satisfação em suas relações sexuais. 31

Hibbard e cols, em pesquisa mais recente, também examinando pessoas que sofreram TCE e apresentavam disfunções sexuais, entre outros achados, afirmaram que a idade ao momento do trauma e a sua gravidade não tiveram influencia sobre as disfunções sexuais. 15

3.5- O despertar para a sexualidade e o início das disfunções:

Sandel e cols., em 1996 nos Estados Unidos, estudando um grupo de 52 pacientes que sofreram TCE, entre outros resultados, encontraram que pacientes com lesões mais recentes registraram melhores níveis de despertar sexual do que aqueles com lesões mais antigas. 31

Um pouco mais tarde, Aloni e cols., em Israel, com o objetivo de estudar se as disfunções sexuais e a intimidade estão presentes nas fases iniciais de reabilitação de pacientes com TCE, pesquisaram 44 pacientes classificados como tendo sofrido graus graves de trauma. No tocante a esses aspectos pesquisados, utilizaram um questionário especial fechado.

Em seus resultados, constataram que as disfunções sexuais em pacientes com TCE graves é incomum nas fases iniciais. De posse desse dado, sugeriram que elas apareçam durante estágios posteriores da recuperação e que, possivelmente, estejam relacionadas com alterações reativas comportamentais, 32 confirmando os achados anteriores de Sandel e cols.

3.6- Fatores que influenciam a resposta sexual (preditores):

Crowe e Ponsford, na Austrália, afirmando que em torno de 50 % das pessoas que sofrem TCE demonstram um decréscimo na atividade sexual, investigaram as bases dessa perda e hipotetizaram que isso ocorre em função dos efeitos da lesão sobre a cognição, especificamente, diminuição da habilidade para desempenhar e manipular o imaginário no despertar da sexualidade. Em seus resultados, encontraram que a depressão e a ansiedade foram fatores significativos, mostrando que as perdas foram afetadas por essas condições. 16

Hibbard e cols, nos Estados Unidos, estudaram dois grupos de pacientes com dificuldades sexuais relatadas por eles mesmos : um dos grupos formados por 322 pessoas com TCE e 264 pessoas sem esses traumas. Aspectos fisiológicos, físicos e problemas de imagem corporal foram examinados individualmente. Como preditores de dificuldades sexuais foram investigados o humor, a qualidade de vida, o estado de saúde e a presença de um transtorno endócrino. Em seus resultados, encontraram que os pacientes que sofreram TCE, contrastando com os que não sofreram, registraram maior freqüência de 1) dificuldades fisiológicas reduzindo sua energia sexual, desejo sexual, habilidade para iniciar a atividade e obter orgasmo; 2) dificuldades físicas influenciando o posicionamento, movimento e sensação corporais, e 3) dificuldades com os sentimentos relacionados com a imagem corporal, atratividade e conforto com a visão do parceiro sobre seu corpo durante a atividade sexual.

Como preditores de dificuldades sexuais entre homens pós TCE encontraram a idade por ocasião da entrevista, idade quando ocorreu o trauma, lesões moderadas e, com saliência entre todos, a depressão. Já entre as mulheres pós TCE, os preditores de dificuldades sexuais incluíram idade quando ocorreu o trauma, lesões moderadas e, de forma mais significativa, depressão e transtorno endócrino combinado. 15

3.7- O papel da cultura nos traumatizados:

Sabhesan e Natarajan, na Índia, chamaram a atenção sobre o papel que a cultura desempenha nos traumatizados cerebrais. Segundo eles, três são os fatores que influenciam o patamar de melhora ("outcome"): as seqüelas neurológicas, a característica de personalidade e o contexto cultural no qual a pessoa traumatizada vive.

Os aspectos culturais possuem influências significativas no entendimento ou nas crenças que as pessoas têm sobre a etiologia do transtorno, nos papéis desempenhados por homens e mulheres, no impacto sobre a harmonia conjugal e no relacionamento familiar. 2

    3.8- Uma situação especial de impotência sexual após TCE:

Uma situação especial merece ser mencionada: a bicicleta, uma invenção capaz de promover alegria e o transporte de milhões de pessoas, pode ser também uma fonte de inabilidades e da própria morte. As vítimas envolvidas em acidentes com bicicletas são usualmente jovens e de boa saúde. A maior parte dos TCE existentes atinge crianças ou adolescentes.

De acordo com Cherington, muitos desses jovens envolvidos em acidentes com bicicletas podem sofrer TCE e neuropatia compressiva ulnar. A impotência sexual conseqüente poderá ocorrer tanto como seqüela da lesão cerebral como derivada em conseqüência da compressão do nervo pudendo ou de seus ramos. É necessário ter consciência dessas situações diferenciais na avaliação desses casos de forma a permitir um diagnóstico e condutas terapêuticas adequadas. 13

    3.9- Tratamento:

Blumer e Migeon, em 1975, reportaram-se ao uso de acetato de medroxiprogesterona (AMP) para o tratamento de homens agressivos ou com comportamento sexual desviante. 19 Anos mais tarde, em 1998, Britton apresentou um caso de hipersexualidade pós trauma craniano tratado com o mesmo acetato de medroxiprogesterona que obteve sucesso com seu emprego, após inúmeros outros tratamentos que não alcançaram resultados. 20 Heller e cols., em 1992, reportaram-se ao uso de "tumescência peniana por vácuo" no tratamento de impotência sexual gerada por vários transtornos cerebrais, como lesões sobre a medula, acidentes vasculares cerebrais, tce e neuropatia autonômica (p.ex., no diabete mellitus). De acordo com seus resultados, 50 % dos pacientes obtiveram melhora de sua insuficiência. Como conclusão, preconizaram esse método não invasivo como uma promessa no tratamento da impotência neurológica. 12 Em 1996, Elliott e Biever, num artigo de revisão sobre traumas cerebrais e disfunção sexual, registraram que os modelos de tratamento para os problemas sexuais após os traumas cerebrais mostraram-se muito limitados. 3 Mais recentemente, Dolberg e cols, em 2002, reportaram-se ao uso de mianserina, em doses baixas (7.5-15 mg/dia), para pacientes que sofreram TCE e tiveram complicações que os obrigaram ao uso de antidepressivos inibidores seletivos de recaptura da serotonina (ISRS). Como estes medicamentos promovem, entre seus para-efeitos, disfunções sexuais (impotência, dificuldade ejaculatória, perda ou diminuição da libido), os autores utilizaram a mianserina em acréscimo, objetivando aliviar esses para-efeitos. De acordo com os autores, dos 17 pacientes incluídos na experiência, 15 deles (88 %) lograram melhora após a instituição do tratamento acompanhado durante 3 meses. Destes, 10 (59 %) registraram que seu funcionamento sexual voltou ao nível pré-tratamento; 5 (29 %) afirmaram "significativa melhora", enquanto que 2 (12 %) não obtiveram bons resultados. Para estes foi administrado o citrato de sildenafil, com bons efeitos. Como conclusão, os autores enfatizaram o benefício da mianserina, em doses baixas, para aliviar os para-efeitos dos ISRS em pacientes que sofreram TCE e tiveram transtornos depressivos. 33 No mesmo ano, Conejero e colaboradores testaram a prostaglandina injetável em 41 pacientes com lesões medulares e TCE. De acordo com seus resultados, os pacientes com TCE alcançaram 100 % de sucesso, enquanto os com lesões medulares uma alta freqüência de melhora foi obtida naqueles com idades menores do que 30 anos (57,2 %), as cifras caindo naqueles com mais idade do que esse patamar. Como conclusão, os autores enfatizaram os bons resultados da prostaglandina na disfunção erétil em pacientes pós TCE e naqueles com idade menores do que 30 anos nas lesões medulares. Ainda de acordo com eles, as doses utilizadas nesses pacientes podem ser menores das empregadas em pacientes sem transtornos neurológicos. 14 Em 2003, Simpson e cols. reportaram-se ao tratamento de ejaculação precoce em pacientes que sofreram TCE. Afirmando que a ejaculação precoce é o distúrbio sexual mais comum que ocorre entre homens na população em geral, mostraram evidências de pesquisas sobre as disfunções sexuais após os TCE que identificaram que entre 17-36 % dos homens apresentam dificuldades ejaculatórias. Afirmaram eles que não há registros sobre tratamentos dessa disfunção na literatura. Por isto, em seu artigo, advogam a existência de tratamentos que incluam farmacoterapia e abordagens comportamentais e educacionais que possam reverter ou compensar as seqüelas motoras e cognitivas relacionadas com a ejaculação precoce em pacientes que sofreram TCE. 7

  1. Livros:

Nancy Gaviria, em dissertação de mestrado de terapia ocupacional, apresentada em Chicago, Estados Unidos, mostrou claramente, através do exemplo de duas mulheres mexicanas radicadas nesse país cujos maridos sofreram TCE, como elas suportaram por muitos anos a terrível convivência com eles. Os principais aspectos deteriorados neles foram as alterações de personalidade e de conduta, sendo que ambas desconheciam (não tiveram informações médicas adequadas, ninguém as ensinou) que as mudanças foram causadas pelos acidentes que sofreram. Portanto, passaram a crer que Deus é que havia determinado a tragédia em suas vidas.

Com isso, freqüentemente, sentiam-se culpadas pelo acontecido. Por outro lado, graças aos seus transfundos culturais (sistema familiar, crenças e gênero) permaneceram cuidando de seus maridos apesar de seu intenso sofrimento pessoal (não há luto, o cônjuge não morreu, segue vivo porém não é mais o mesmo, agora quem sustenta a casa é o trabalho delas, nada mais recebem dele, apenas agressões verbais e até físicas. Elas passam a ser verdadeiras "viúvas de maridos vivos"). 34

Zasler expõe no capítulo 14 do livro "Neuropsiquiatria dos Traumatismos Craniencefálicos", editado em 1992 - um extenso texto sobre esses traumas e suas conseqüências que pode ser considerado hoje como um clássico na literatura neuropsiquiátrica - um estudo sobre as disfunções sexuais após os traumas encefálicos. Inúmeros aspectos são abordados, desde a neuroanatomia e a neurofisiologia da sexualidade, revisão sobre a literatura, avaliação clínica (história sexual, exame físico e testes de diagnóstico clínico), manejo clínico (alterações neuroendócrinas, não-genitais e genitais), tratamento e efeitos sobre a família.

Na conclusão dessa ampla abordagem, o autor comenta; "Os profissionais estão somente iniciando a examinar as ramificações neurológicas e funcionais dos TCE nas funções sexuais. (...) No presente, há uma relativa carência de informação, (...) clínicos e pesquisadores devem estar conscientes da importância da expressão sexual relacionada com outras áreas da função humana conseqüentes aos TCE." 35

  1. "Centre for Neuro Skills" e Google

c.1. - Centre for Neuro Skills

Através do "Centre for Neuro Skills", que inclui os conteúdos da "Brain Injury Association" dos Estados Unidos, descortina-se um cenário bastante diferente. Aqui há indicadores claros sobre as conseqüências dos TCE e a respeito de seu manejo, com instruções, através de cartilhas, aos padecentes e seus familiares. Além disso, publica as últimas investigações e achados na área, estando freqüentemente na ponta das pesquisas sobre os TCE.

A "Brain Injury Association" é uma organização formidável, existente em todos os estados norte-americanos, que uniformiza as informações, educa, orienta os atingidos para locais de atendimento médico e presta até assistência jurídica aos necessitados em questões trabalhistas ou jurídicas. 36

O "Tools for living after brain injury" é um belo exemplo do afirmado, um pequeno livro que fornece as orientações mínimas e necessárias aos padecentes de TCE e a seus familiares, mediante um preço razoável. 37

c. 2. - Google

Alguns artigos encontrados no Google permitiram acessar páginas de organizações sobre a reabilitação de pessoas que sofreram TCE em outros países, como na Austrália. O modelo criado neste país parece obedecer a sistemática implantada pelos norte-americanos através da "Brain Injury". O "Liverpool Hospital Brain Injury Rehabilitation Unit", aberto em 1976, faz parte de uma organização envolvida num serviço de promover a reabilitação dos traumatizados cerebrais dentro de uma concepção holística.

Um estudo, patrocinado por essa instituição, mostra como as funções sexuais também merecem consideração em sua atividade, evidenciado através de artigo de Simpson. Nele, o autor, após ampla revisão bibliográfica, discute as dificuldades existentes, considerando a principal causa o fato de que pequena proporção de pacientes/familiares registram que nos serviços profissionais de reabilitação há questionamentos sobre se eles possuem ou não quaisquer queixas sexuais.

Após mencionar uma série de serviços e possibilidades de reabilitação na área da sexualidade pós-traumática, o autor enfatiza a necessidade de que os serviços de reabilitação abram seus olhos sobre essa área hoje relegada a um segundo plano ou mantida em reserva. Somente assim, esses serviços estarão seguindo as orientações da OMS, as quais sugerem que os pacientes com TCE possam "atingir o maior nível de adaptação alcançável." 38

Os novos dispositivos de avaliação da disfunção erétil, com seus testes especiais através de drogas, avaliações ultra-sonográficas, radiológicas, avaliação da inervação somática do pênis e da tumescência peniana noturna, abriram novos caminhos que possibilitam extraordinários avanços no diagnóstico e, conseqüentemente, no tratamento dessa disfunção. Cabe agora, implantar esses procedimentos e utilizá-los na avaliação dos traumatizados cerebrais. 39

c. 3- BIREME

Tentando verificar se houve algum registro de artigo sobre o tema em países da América Latina, nenhum resultado foi obtido.

  1. COMENTÁRIOS

Os dados encontrados permitem uma série de considerações e reflexões. É necessário lembrar que a bibliografia consultada foi bastante ampla no sentido temporal, ou seja, apanhando artigos publicados desde a década de sessenta até os dias de hoje sobre essa temática.

Examinando cada um dos sub-temas escolhidos, podemos resumir:

  • Realmente, há reconhecido entendimento de que os médicos que atendem a pacientes traumatizados cerebrais e serviços de reabilitação não questionam os pacientes a respeito das condições sexuais pós trauma. Isto está a confirmar o que disse Simkens sobre um intrigante e surpreendente silêncio a respeito da sexualidade pós trauma;
  • o montante dos artigos publicados a respeito é muito pequeno. Avaliando o conjunto de dados, podemos dizer que a cada década pingam alguns estudos interessados ou preocupados com esse tema;
  • se há pouco interesse em pesquisar a sexualidade comprometida em homens, menor interesse há ainda em relação as mulheres;
  • as deficiências pós trauma são muito variadas, sobressaindo-se a impotência sexual (hoje disfunção erétil), a ausência de orgasmo em mulheres, a ejaculação precoce em homens e a diminuição ou perda de desejo tanto em mulheres como em homens;
  • inúmeras outras mudanças no comportamento sexual podem ocorrer, algumas delas surpreendentes e que podem atingir ou constranger relações conjugais e familiares;
  • alguns comportamentos sexuais inadequados podem resultar em questões judiciais;
  • os principais obstáculos à recuperação parecem ser as seqüelas cognitivas e emocionais e não as seqüelas físicas;
  • pacientes com lesões mais recentes parecem ter melhores níveis de despertar para a sexualidade do que os que possuem lesões mais antigas. Isto possivelmente possa significar que as disfunções apareçam em estágios posteriores da recuperação e estejam relacionadas com alterações reativas comportamentais;
  • as perdas na área da sexualidade podem estar relacionadas com manifestações depressivas, de ansiedade, sentimentos de desvalia por seu próprio corpo e impossibilidade cognitiva de exercer o imaginário nas relações sexuais;
  • a cultura desempenha papel preponderante no desempenho sexual pós trauma, principalmente na maneira que cada cultura situa o papel dos homens e mulheres com impacto sobre a harmonia conjugal e no relacionamento familiar;
  • a falta de informações prestadas ao paciente e familiares pelos médicos e serviços de reabilitação - ao não estabelecer uma relação de causa e efeito entre as disfunções sexuais e o trauma sofrido - é capaz de gerar graves conseqüências psicossociais a todos envolvidos por criar distorções e fantasias;
  • impotência sexual após TCE em pessoas que sofreram acidentes em bicicletas merece atenção especial, pois podem não derivar da lesão cerebral e sim de compressão do nervo pudendo ou de seus ramos;
  • considerando o número de disfunções sexuais em sua variabilidade, a literatura mostrou estudos também variados, publicando artigos ora de tratamento de uma disfunção, ora de outra. Porém, estes estudos não foram validados por outras experiências, permanecendo uma lacuna em termos de conhecimento científico;
  • as organizações fortemente estabelecidas, como a "Brain Injury Association" dos Estados Unidos e sua correspondente na Austrália, são as depositárias dos melhores conhecimentos a respeito dos traumatizados cerebrais. Elas possuem experiência e pesquisas na área, são capazes de educar e de orientar, realizando um trabalho magnífico e pioneiro;
  • por incrível que possa isso ocorrer, mesmo assim, de acordo com seus testemunhos aqui relatados, foram incapazes de modificar ou de influir na ação dos médicos e dos serviços de reabilitação de seus respectivos países de maneira mais ampla;
  • isto está a nos dizer que a ciência caminha lentamente e que freqüentemente há resistências a serem vencidas;
  • cabe criar critérios adequados de diagnóstico e a conseqüente indicação terapêutica para cada situação existente. Para tanto, sistemas integrados de pesquisas e de organizações necessitam ser estabelecidas para cuidar dos traumatizados cerebrais em todas suas conseqüências deletérias, de forma que se constituam, como nos Estados Unidos, entidades nacionais responsáveis para sua orientação, educação e normatização do conhecimento.
  1. CONCLUSÃO

A Associação Americana de Traumatismos Craniencefálicos (USABIA) define "traumatismo cerebral" como "um insulto ao cérebro, não devido a um processo degenerativo ou congênito, causado por uma força externa que pode determinar ou alterar o estado da consciência, que resulta num prejuízo das habilidades cognitivas ou de funções físicas as quais causam perturbações do comportamento ou do funcionamento emocional." 39

De acordo com essa associação, "há muitos termos para descrever os TCE dependendo do grau da lesão (leve, moderada, grave). Ultimamente, os nomes para descrever os TCE estão relacionados com a causa, e ´TCE` pode ser chamado de dano cerebral, acidente vascular cerebral, concussão, trauma cerebral, lesão cerebral aguda, chicote, síndrome do bebê chacoalhado, lesão cerebral, golpe cerebral, lesão cerebral grave, lesão traumática cerebral e termos menos conhecidos, tais como anóxia cerebral em acidentes vasculares isquêmicos." Ibid

Se os acidentes vasculares, isquêmicos e hemorrágicos, forem incorporados aos traumatismos externos puros (concussões, tiros, acidentes de carro, etc.) o universo de pessoas comprometidas será altíssimo.

Perante esse universo, fácil é deduzir o quanto suas seqüelas significam em termos de saúde pública. Tal constatação pode servir de alerta no sentido que os traumatizados cerebrais tenham um melhor atendimento e mais cuidados no que diz respeito às seqüelas sexuais, pois fazem parte integrante do ser humano, de seu bem-estar e qualidade de vida.

Considerando sua importância psicossocial - quando milhares ou milhões de pessoas sofrem TCE pelo mundo e padecem de suas conseqüências, incluindo as que comprometem a sexualidade - impõe-se que essa verdadeira "caixa preta" seja aberta, o diálogo sobre a sexualidade substituindo o silêncio até hoje predominante.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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