Volume 8 - 2003
Editor: Giovanni Torello

 

Setembro de 2003 - Vol.8 - Nº 9

Psicanálise em debate

A FAMÍLIA SEGUNDO ROUDINESCO
Resenha do livro “A Família em desordem” de Elizabeth Roudinesco
Jorge Zahar Editor - Rio de Janeiro - 2003

Dr. Sérgio Telles
Psicanalista do Departamento de Psicanálise de Instituto Sedes Sapientiae
e escritor, autor de MERGULHADOR DE ACAPULCO (1992 – Imago – Rio)

A cada livro que publica, Elizabeth Roudinesco se firma como uma atenta observadora da cena psicanalítica. Conjuga bem seus recursos de historiadora com o saber inaugurado por Freud, produzindo obras de grande interesse, que sua habilidade literária coloca ao alcance de um público mais vasto.

Esse seu “A família em desordem”, lançado ano passado na França e agora aqui traduzido, é uma boa mostra disso.

Os avanços da tecno-ciência e dos costumses tornaram possíveis mudanças antes impensáveis no processo da reprodução humana. Lembremos os métodos anticoncepcionais - desde os seculares contraceptivos e o coitus interruptus, a prática do aborto, o controle de natalidade pela tabela Ogino-Knaus, as pílulas anticoncepcionais, o DIU, a inseminação artificial, a inseminação ín vitro com subsequente implantação intra-uterina, a doação de esperma ou de óvulos, as barrigas de aluguel até, finalmente, a clonagem.

Essas técnicas provocaram uma revolução no próprio conceito de família, se pensarmos que por esse nome designamos a união, reconhecida e apoiada pela sociedade, entre um homem e uma mulher com fins de criar e manter os filhos.

Além dessas inovações tecno-científicas, os próprios costumes também mudaram quanto a família. Pouco resta da antiga família patriarcal, imutável, regida por um pai autoritário, quanto olhamos para as famílias de hoje - rompidas e recompostas muitas vezes. Mais ainda, cortando todos os laços com os costumes anteriores, pares homossexuais passaram a pleitear a adoção ou mesmo a paternidade ou maternidade, usando os novos recursos que prescindem da prática natural do coito entre homem e mulher.

Como ficam, dentro dessa nova realidade os papeis tradicionais de pai e mãe, de homem e mulher, a necessária gestão da autoridade na educação das novas gerações?

São essas importantes e instigantes questões que Roudinesco tenta responder em seu livro. O disparador de suas reflexões é a questão colocada pelo “desejo de família” expresso pelos homossexuais, coisa que considera surpreendente, quando lembra que até bem recentemente - pelo menos na França - a postura dos homossexuais era a de pleitear um “direito à diferença”, quando contestavam e rejeitavam a família, considerada como o funesto lugar da opressão patriarcal, impedidora da liberdade sexual. A nova moral por eles apresentada é a da busca da normatização, uma forte vontade de integração, abandonada que fica a antiga postura que proclamava uma ruptura com a ordem vigente.

Para responder a essas questões, Roudinesco vai mesclar uma grande massa de informações derivadas da história, da antropologia e da psicanálise, de onde pinçarei alguns pontos referenciais.

Diz que Levy-Strauss estabeleceu que a família é encontrada em todas as sociedades humanas, organizando-se dentro das duas grandes ordens do biológico (diferença sexual) e do simbólico (proibição do incesto e outros interditos). Se até o finado da Idade Média ela era entendida em seu sentido mais extensivo, a família nuclear, tal como hoje a concebemos (pai, mãe, filhos) se impõe entre os Séculos XVI e XVIII. A família passou por três fases evolutivas: a primeira, dita “tradicional”, assegurava a transmissão do patrimonio e era regida pelo poder do pai, transposição direta, para o seio do privado, do direito divino dos reis reconhecido publicamente no regime da monarquia, estabelecida num mundo imutável; a segunda, fase “moderna” , é regida por uma lógica afetiva, romântica, onde o casal se escolhe sem a interferência dos pais, procurando uma satisfação amorosa e sentimental, sendo que o poder e o direito sobre os filhos é dividido entre os pais e o Estado e/ ou entre pais e mães. Finalmente, a terceira, dita “contemporânea ou pós-moderna”, onde a transmissão da autoridade vai ficando cada vez mais complexa em função das rupturas e reacomposições que a família vai sofrendo.

No mundo ocidental, a família “tradicional”, submetida ao poder paterno, manteve-se por séculos (lembre-se as leis romanas sobre o pátrio poder, por exemplo), até o grande abalo da Revolução Francesa, que, ao propor um mundo laico, atinge a até então inatacável figura de Deus Pai e seus sucedâneos no poder estatal, os reis, que são dessacralizados e mesmo destituídos, enfraquecendo consequentemente seu equivalente no seio dos lares, os pais. Esse modelo familiar desmorona definitivamente no final do Século XIX.

A decadência do patriarcado causou na Europa um grande temor do feminino, antevia-se uma emasculação e uma feminização da sociedade. Produziu-se uma ideologia que satanizava a mulher, vista como fonte do caos e da destruição social, como a obra de Johann Jakob Bachofen bem ilustra.

É nesse clima que Freud pode produzir a psicanálise. Se na sociedade em geral, vivia-se a falência do poder paterno, Freud vem propor uma teoria do psiquismo humano na qual o assassinato do pai - realizado ou fantasiado, desejado - terá decisiva importância.

Em “Totem e Tabu” o assassinato do pai é um ato necessário, fundador da civilização, ato que instaura a lei que nos separa do mundo da natureza e nos introduz na cultura, o que possibilita a internalização dos interditos paternos. Vê-se como é complexa a proposta de Freud, pois ao mesmo tempo que diz ser necessário o assassinato do pai, afirma que também é necessária sua permanência, embora que noutra condição - como a lei internalizada pelos filhos.

Como diz Roudinesco, Freud vai “inventar a família edipiana”. De que forma? Vai ilustrar a complexa relação entre filho e pai com a figura trágica de Édipo.

Sabemos que as três tragédias de Sófocles em torno de Édipo - “Édipo Rei”, “Édipo em Colona” e “Antígona” - são os momentos finais de uma historia mítica maior, a da tragíca e amaldiçoada família dos Labdácidas.

Esta família foi fundada por Cadmo, que gerou Polidoro e este a Labdaco (o “manco”), que morreu quando Laio, seu filho, tinha um ano. Criado pelo Rei Pélops, Laio se comporta de forma indigna, ingrata, `claudicante' , com seu hospedeiro, ao violar homossexualmente Crisipo, seu filho, o que o leva ao suicídio. Como vingança, Pélops amaldiçoa a raça dos Labdácidas, condenando-a à extinção. Laio foge e casa com Jocasta, também de sua própria família. Deles nasce Édipo, cuja história todos conhecemos, e que gerará Etéocles, Polinice, Antígona e Ismene.

Conhecendo a linhagem familiar, vemos que Édipo nasce amaldiçoado, no seio de uma família condenada à destruição. Para Sófocles, Édipo de nada é culpado, é a vítima do destino.

Freud vai ignorar toda a história pregressa da família de Édipo e centrar-se no assassinato do pai e no incesto com a mãe - representantes dos desejos fundantes e reprimidos do inconsciente. “Pouco importa a mensagem de Sófocles: o que conta agora para Freud é a a história do filho culpado de desejar sua mãe e de querer assassinar seu pai...Édipo será portanto culpado não de ter cometido um assassinato, mas de ser um sujeito culpado de desejar sua mãe” - diz Roudinesco.

Esse recorte permite a Freud a criação de sua teorização do inconsciente, centrado no desejo incestuoso do filho frente a mãe. Assim, institui a abordagem clássica da terapia psicanalítica, que é a individual. Não se detém suficientemente, em minha opinião, sobre a realidade do inconsciente dos pais e, de maneira mais larga, de toda a família, como definitivos na constituição do sujeito.

Ou seja, Freud não elaborou um dispositivo terapeutico e teórico que incluissem toda a família como objeto de observação psicanalítica. É diferente recortar o desejo de Édipo, vê-lo como o produto autônomo de um indivíduo - e aí o postulado da “pulsão” abre caminho para tanto - de entendê-lo dentro de um continuum familiar amaldiçoado, destinado à destruição.

Uma coisa é ver Ëdipo sozinho, outra é vê-lo como um membro dos Labdácidas. Se o víssemos desse segundo ponto de vista, entenderíamos todo o peso simbólico de seus antepassados e a forma como influenciaram decisivamente em sua vida. Afinal, Édipo, que significa “o de pés inchados” é um dos Labdácidas, a família dos “mancos”. Nesse sentido, discordo quando Roudinesco diz que Freud “inventa” uma “família edipiana”, pois o que está em jogo não é propriamente o dinamismo inconsciente de uma família e sim de um indivíduo, um único membro da família.

Esse deficit teórico freudiano é suplementado por desenvolvimentos atuais que se preocupam com os desejos inconscientes da mãe e do pai frente ao filho, tentam entender o lugar que o filho vem ocupar em seus mundos internos e a forma como tais desejos vão ser assimilados e internalizados pelos filhos, como sugere Laplanche com seu conceito de “metábole”. Além do mais, saindo do enquadre terápico individual, abrem-se novas possibilidades de pensar analíticamente a família, com seus segredos, seus não-ditos, suas vergonhas, suas feridas narcísicas e suas maldições (Kaës).

A derrocada da figura do pai e o temor do feminino decorrente da crescente presença da mulher no espaço público tem um subproduto no corpo teórico da psicanálise: a teorização kleiniana, que, distanciando-se de maneira radical de Freud, centra-se inteiramente na figura materna, objeto único da pulsão e da fantasia do bebê, que a infla de tal forma que a faz perder toda realidade concreta. “Foi preciso esperar as contribuições de Donald Woods Winnicott sobre a `mãe suficientemente boa (good-enough mother) e `extremosa comum' (ordinary devoted mother) para corrigir os excessos dessas clivagens maniqueístas que resultavam numa visão perversa ou psicótica das relações de parentesco”- diz Roudinesco.

Efetivamente, com as novos direitos decorrentes da luta feminista, as mulheres passaram a exercer um poder e uma presença muito mais forte na sociedade e na família, havendo mesmo nesta uma maternalização significativa.

Nesse contexto, estudos tornaram possível separar o “feminino” do “materno”; foi possível discriminar “sexo” (biológico) e “gênero” (costumes sociais). E se evidenciou algo antes totalmente reprimido, que era a questão da sexualidade feminina. Frente a essa questão, Freud tem sido sempre mal compreendido, pois ao postular o conceito de “complexo de castração” aponta para a incompletude de ambos os sexos e a fantasia narcísica de uma totalidade impossível.

Coincide com a diluição da figura paterna e fortalecimento da presença do feminino e do materno o aparecimento das novas conquistas da tecno-ciência médica. Elas tornaram possível o abandono da ordem procriadora, antiga base da família, fazendo surgir novas formas de parentalidade (o próprio termo já é uma novidade) antes impensáveis.

A total desconstrução do conceito de família decorrente da tecno-ciência levanta inúmeros problemas éticos, políticos, jurídicos, além daqueles da ordem da subjetividade.

Teria havido uma desumanização de processos tão fundamentais para a humanidade quanto a geração e criação de novos seres humanos? Teria o “zeitgeist'” deixado o avatar edipiano para assumir a feição narcísica? Como serão as famílias do futuro?

As possibilidades abertas pela tecno-ciência no que diz respeito à concepção de novas vidas são inusitadas e ainda é cedo para avaliarmos seus resultados. Mas devemos refletir sobre a necessidade de parâmetros éticos para a ciência. Ela não deveria ser deixada a seu próprio desenvolvimento interno, na medida em que ela pode criar situações intrínsecamente más e perversas, como a execução em massa de seres humanos seguindo modelos da linha de produção industrial, como nos campos de exterminio nazistas.

Retomando aquilo que foi o disparador para esse livro, a questão da paternidade de casais homossexuais, Roudinesco toma uma posição cuidadosa. Não endossa a maciça reprovação expressa por vários importantes psicanalistas franceses mas também não nega a difícil situação desses casais homossexuais e de seus filhos. Ao citar os impressionantes relatos feitos por Leonard Shengold de abusos praticados em seus filhos por pais e mães de famílias “normais'”, ela lembra uma obviedade que às vezes precisa ser repetida: ter pais heterossexuais não é garantia de ausência de sofrimento e traumas. Afinal de contas, até o presente, toda a a louca humanidade assim foi procriada...

Roudinesco encerra com um certo otimismo, ao afirmar que que a família humana se reiventa permanentemente, mantendo-se desde os inícios dos tempos, como uma instituição insubstituível para nossa própria constutuição de sujeitos humanos.


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