![]() ![]() Volume 8 - 2003 Editor: Giovanni Torello |
Novembro de 2003 - Vol.8 - Nº 11 Artigo do mês Déficits variados após lesões neurológicas bacterianas ou virais: implicações clínicas, periciais e psicossocias. Carlos
Alberto Crespo de Souza ** “O cérebro é um órgão delicado, complexo e facilmente desequilibrado. Desafortuna- damente, a freqüência das lesões cerebrais e os efeitos impactantes de até mesmo lesões menores são geralmente desconhecidas pelo público, pela mídia e, de forma surpreendente, por muitos profissionais de saúde.” Parker, (1990) 1
Quanto mais se aprofunda nos estudos das lesões neurológicas e de suas conseqüências - tendo iniciado a partir dos traumatismos craniencefálicos (TCE) - mais ficamos impressionados como suas repercussões não são devidamente valorizadas pelos médicos de um modo geral. Isto fica bem demarcado nas avaliações periciais quando os seus padecentes passam por dissabores quase que indescritíveis, muitas vezes tendo de “provar”, através de exames, uma causa orgânica bem documentada como fonte de suas desditas psicomotoras, sensoperceptivas, cognitivas ou comportamentais. Naturalmente, como grande parte dos exames de laboratório, eletroencefalográficos e de neuroimagem são incapazes de detectar as alterações menores existentes, os pacientes sentem-se duplamente desvalidos. De um lado, já carregam suas deficiências, às vezes difíceis de conviver e, por outro lado, não conseguem “provar” ou “documentar” as causas de seus sofrimentos. À mercê dos médicos peritos e de seus comentários - muitas vezes irônicos ou desairosos - chegam a se sentir até como impostores ou simuladores, tentando evadir-se do trabalho, fugindo de suas responsabilidades. E o que é pior, “rodam” nos exames periciais e são “condenados” a trabalhar, embora carregando déficits inconciliáveis com suas atividades anteriores. Por sua vez, os peritos, se não os consideram como impostores ou simuladores, muitas vezes atribuem suas queixas a causas psíquicas, como padecentes de distúrbios depressivos ou conversivos. Este é um quadro que, infelizmente, já havia se constatado em relação aos padecentes de TCE, especialmente os leves. Agora, como afirmado anteriormente, percebe-se que outras lesões cerebrais com seqüelas são igualmente desconsideradas, os pacientes passando pelas mesmas iniqüidades nas avaliações periciais e passíveis de graves repercussões em termos psicossociais. Reportamo-nos, neste artigo, aos pacientes que sofreram infecções bacterianas ou virais nas meninges e/ou encéfalo, a saber, as meningites e as meningoencefalites. De posse de outros conhecimentos, ampliamos o estudo ao discutir a questão das recuperações após essas ocorrências que traumatizam o cérebro de maneiras variadas, externas ou internas. 2. Metodologia. 2.1. Pesquisa na MEDLINE: A MEDLINE foi acionada segundo os seguintes termos: “cognitive deficits and meningitis”, “cognitive deficits and meningoencephalitis”, “behaviour and meningitis” e “behaviour deficits and meningites”. O período temporal para o levantamento dos dados escolhido foi o compreendido entre os anos de 1995 até os dias atuais (setembro/03), demarcado aleatoriamente. O livro de Roland Parker, “Traumatic Brain Injury and Neuropsychological Impairment”, hoje já um clássico, serviu de base para o tópico sobre “os conceitos de recuperação” constante do artigo. 2.2. Caso clínico: De maneira a materializar o entendimento sobre o artigo aqui desenvolvido é descrito o caso clínico de uma paciente adulta que sofreu uma meningoencefalite (o qual desencadeou o presente estudo) e que passa hoje por significativas dificuldades conseqüentes. Além disso, tem sofrido pressões não menos significativas por parte dos peritos do INSS responsáveis por suas avaliações periciais, fato que transformou esses momentos num verdadeiro pesadelo para ela. 3. Resultados. 3.1. Da pesquisa na MEDLINE:
3.2. - Do caso clínico: Trata-se de Olga (nome fictício), 40 anos, auxiliar de contabilidade, solteira, residente numa cidade do interior do Rio Grande do Sul (cidade de porte médio, industrializada e em expansão). Seu quadro clínico iniciou por pequenos sintomas de anormalidade, como fadiga, suores e cefaléia suportável. Com a progressão da cefaléia, que se tornou muito intensa, foi consultar na emergência de um hospital. No mesmo dia, em 07/09/2.000 internou com o seguinte quadro de acordo com a AIH: rigidez de nuca, vômitos e hipertensão; hipótese diagnóstica: meningoencefalite. A paciente foi avaliada em 08/09/2.000 por neurologista: “paciente internada na sala de cuidados intensivos apresentando agitação psicomotora, baixo nível de consciência, Glasgow 10. Tomografia do encéfalo sem alteração temporal, sem hidrocefalia. Líquor: aspecto límpido; glicose: 48; proteínas totais: 85; cloretos: 667; eosinófilos: 0; neutrófilos: 26; monócitos: 12; linfócitos: 62; hemácias: 0. Hemograma: leucócitos: 12.100; eosinófilos: 1%, bastonetes: 2%; segmentados: 79%; monócitos: 7%, linfócitos: 11% .” No mesmo dia, pela tarde, foi reavaliada: “Piora neurológica; abertura ocular à dor, emite sons, localiza estímulo, hemianopsia E, Babinski bilateral, pupilas fotorreagentes, tosse. Quadro compatível com meningoencefalite herpética.” Exames laboratoriais posteriores: Os exames laboratoriais realizados apresentaram os seguintes resultados:
Evolução: Após a alta hospitalar, já em casa, mantinha as seguintes manifestações: fala arrastada, infantilizada, repetindo perguntas de forma contínua; não conseguia manter-se em postura ereta, sem forças nas pernas e braços. Teve de ser auxiliada a tomar banho (sentada), alimentar-se e deambular. Aos poucos, dia a dia, foi recuperando os movimentos e a fala normal. Pela persistência de sintomas, foi encaminhada a um psiquiatra com a suposição de que estaria apresentando manifestações de cunho psíquico. Foi tratada com antidepressivos e benzodiazepínicos, com pouca melhora. Entretanto, hoje, passados 3 anos de sua meningoencefalite, permanece com alterações físicas psicofisiológicas (urina eventualmente durante a noite, constipação intestinal por mais de vinte dias) e psicomotoras (não consegue realizar tarefas que exigem a motricidade fina, como costurar, escrever, carregar algum objeto, etc.), alterações cognitivas (lentificação no processamento das informações, dificuldade para realizar cálculos matemáticos, não consegue se concentrar, não lembra dos nomes de pessoas já conhecidas, de objetos, esquece rapidamente, tem de anotar tudo e repete as anotações várias vezes), sensoperceptivas (sensibilidade excessiva para os ruídos, hipersensibilidade ao toque corporal, perda do paladar e olfato), emocionais (crises de choro, ideação de morte, ansiedade usual e antecipatória) e seu comportamento modificou-se (anteriormente era uma pessoa calma, cordata, reflexiva e organizada dentro de limites adequados; gostava de ir a festas, dançar, viajar; era expansiva, alegre, bem-disposta, gostava de vestir-se e embelezar-se. Passou a ter rompantes agressivos, tornou-se irascível, exigente e com comportamento obsessivo, sendo difícil conviver com ela. Caso tenha um compromisso para às 17 horas, desde a manhã, ao levantar-se, já se apronta e fica preocupada, falando constantemente sobre ele, sua mente ocupada apenas com isso. Tornou-se quieta, não sai de casa, não quer a companhia das pessoas, o barulho a irrita, permanecendo mais em seu quarto, não se importando em se arrumar ou em se embelezar. Além de tudo, seu sono modificou-se, passando a ter dificuldades para dormir, despertando várias vezes pelas noites e com menos horas de sono, como se estivesse sempre alerta, tensa, esperando o dia seguinte acontecer). Antes da meningoencefalite seu intestino funcionava regularmente assim como não possuía perda de urina pela noite. Na medida em que sua postura física se normalizou e seus exames laboratoriais se mostraram normais, passou a ter dificuldades por ocasião das avaliações periciais junto aos peritos do INSS. Suas queixas, relacionadas às deficiências existentes, foram mal interpretadas pelos peritos, até como alguma agressividade, como se estivesse inventando sintomas para permanecer em benefício. Numa ocasião, foi acusada de ser portadora do vírus de HIV e, por isso, ter sofrido a meningoencefalite ( o perito solicitou a ela que explicasse as razões de ter adquirido a doença). 4. Os conceitos de recuperação. Para Parker não há um critério universalmente aceito no que diz respeito ao grau de uma recuperação após lesões cerebrais de qualquer ordem. Com freqüência, cada profissional possui seu próprio critério. Por exemplo, para um neurocirurgião que salvou a vida de um paciente que sofreu uma hemorragia intracraniana, poder voltar a caminhar é um excelente resultado. Para uma família na qual o seu mantenedor sofreu uma lesão cerebral, os fatores interpessoais e a habilidade para retornar às suas atividades plenas são fundamentais. (1 Parker, 1990) Esse autor distingue duas palavras de língua inglesa: “recovery” e “outcome” para tentar estabelecer parâmetros inexistentes e que impedem uma leitura adequada do que verdadeiramente ocorreu com o paciente após sofrer uma lesão cerebral. Ele utiliza a palavra “recovery” com o significado de processo de cura, e “outcome” com o significado de um estágio, um patamar que a vítima alcançou após uma lesão cerebral. Diz ele: “O patamar é uma interação entre os déficits, disposições de ânimo, de suporte social e das demandas que se apresentam para a pessoa.” (Ibid) A recuperação pode ser mensurada em termos relativamente estreitos se considerados isoladamente, como memória, sensoriomotora, reabilitação física ou os clássicos sinais neurológicos. Entretanto, a recuperação adaptativa prática requer habilidades cognitivas ou outras elevadas funções cerebrais. De acordo com esse autor e outros estudiosos, as seqüelas intelectuais podem impedir a subseqüente adaptação ocupacional e social mais do que as habilidades físicas, e o retorno ao trabalho é, sem dúvida, um significativo critério do patamar alcançado, o qual integra o efetivo funcionamento em muitas áreas. Parker reforça, ainda, que o critério mais rigoroso para o entendimento verdadeiro de uma recuperação seja feito através da verificação de que a pessoa que sofreu a lesão cerebral retornou integralmente ao exercício das habilidades prévias. (Ibid) Para tanto, mencionou ele, em muitos casos é necessário consultar descrições de familiares, de amigos, de professores, empregadores e colegas de trabalho sobre o desempenho atual - pós-lesão - comparado com a performance anterior - pré-lesão. 5. Comentários. 5.1 - Sobre os artigos levantados: Os vários artigos expostos, segundo seus conteúdos, permitem que as seguintes observações sejam feitas:
5.2. - O caso clínico comparado com os dados encontrados na bibliografia: Comparando o caso clínico aqui apresentado, podemos identificar nele inúmeras situações que são descritas pelos artigos compulsados. Abaixo, arrolamos essas situações:
5.3 - A importância dos conceitos de Parker para a compreensão destes casos: Sem dúvida, os conceitos de Parker servem para colocar limites na idéia de “recuperação” após lesões cerebrais de quaisquer origem. Até há poucos anos cada um falava em recuperação de forma indiscriminada, sem considerar outras implicações ainda existentes como seqüelas importantes e significativas na vida das pessoas. A existência de seqüelas cognitivas e comportamentais tem sido completamente desconsiderada na medicina ocidental, a qual valoriza apenas as seqüelas físicas. Quando os exames de laboratório se mostram normais, após qualquer tipo de lesão cerebral, os pacientes passam a ser entendidos como simuladores ou como que possuindo transtornos psíquicos, como os conversivos ou depressivos. Ao introduzir o conceito de “patamar” ou “estágio”, na língua inglesa “outcome”, na evolução de um paciente que sofreu uma lesão neurológica, Parker quis dizer com isso exatamente o fato de que esse paciente ainda não se tinha recuperado integralmente. Outras importantes seqüelas poderiam ainda estar presentes e serem significativas na qualidade de vida das pessoas comprometidas. Para isso, entretanto, faz-se necessário expandir esses conceitos entre a classe médica, de maneira que as seqüelas cognitivas sejam integradas ao seu conhecimento e, por conseguinte, valorizadas. Na ausência desta valorização, é necessário lembrar que graves prejuízos psicossociais podem ocorrer, liberando-se pacientes ao trabalho sem que tenham adquirido plenamente suas habilidades. Além do mais, os prejuízos individuais decorrentes dessa desarmonia conduzem essas pessoas padecentes a importantes sentimentos de baixa estima. 6. Conclusão. O caso clínico dessa paciente trouxe aprendizados importantes sobre essas situações existentes e que nunca até então foram devidamente exploradas ou conhecidas em nosso país. Justifica-se pelo fato de que a interface entre a neurologia e a psiquiatria apenas há poucos anos passou a ser explorada pela medicina ocidental. Por isto, certamente, as manifestações cognitivas ou comportamentais ainda são entendidas como fazendo parte da psiquiatria exclusivamente e não como resultado das próprias lesões cerebrais, numa compreensão limitada ou dicotômica. A compreensão mais abrangente, neuropsiquiátrica, integradora, ao que parece, ainda não faz parte da ciência médica. De igual forma, percebe-se o quanto os sintomas da área psiquiátrica são desvalorizados pelos médicos, como se fossem de menor valor que os físicos quando, na verdade, podem ser bem mais importantes na qualidade de vida das pessoas do que as deficiências físicas. Por outro lado, chama a atenção que até manifestações físicas menores, como as alterações psicomotoras e sensoperceptivas, são descartadas pelos médicos peritos, ignorando que fazem parte das conseqüências das lesões cerebrais de qualquer etiologia. Os autores esperam que, com este caso e seu estudo, estejam contribuindo à divulgação desse conhecimento. Com sua assimilação pela classe médica, têm certeza de que os grandes beneficiários serão os pacientes e a saúde pública em nosso país. 7. Bibliografia. 1. PARKER, RS. (1990) - Traumatic Brain Injury and Neuropsychological Impairment: sensorimotor, cognitibe, emotional, and adaptive problems of children and adults. Springer_Verlag: New York Berlin Heidelberg London Paris Tokyo Hong Kong. 452 p. 2. TAYLOR, HG.; SCHATSCHNEIDER, C.; MINICH, NM. (2.000) - Longitudinal outcomes of Haemophilus influenzae meningitis school-age children. Neuropsychology. 14 (4): 509-18. 3. McJUNKIN, JE.; de los REYES, EC.; IRAZUTA, JE et alii. 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