Volume 7 - 2002
Editor: Giovanni Torello

 

Outubro de 2002 - Vol.7 - Nº 10

História da Psiquiatria

A Fundação da Associação Brasileira de Psiquiatria; Ata de Fundação.

Dr. Walmor J. Piccinini

Desde as primeiras inscrições nas cavernas pré-históricas constatamos que o que está registrado é o que permanece. Muitas versões existem sobre a fundação da Associação Brasileira de Psiquiatria (AB), ela é recente, 1966. Muitos personagens ainda estão ativos em nosso meio e poderão complementar estas informações com depoimentos pessoais.

O JAMB da associação Médica Brasileira, ano VII de 4 de outubro de 1965 traz o texto de um protocolo que fixava as diretrizes gerais e as providências iniciais no sentido de constituição definitiva da ABP. O documento era assinado pelo Dr. José Luiz Flores Soares, presidente da AMB e gaúcho; José Leme Lopes, presidente do Centro de estudos do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil; Jurandyr Manfredini, diretor do Serviço Nacional de Doenças Mentais; Manoel Antonio Albuquerque presidente do Setor de Psiquiatria da Sociedade de Neurologia e Psiquiatria do Rio Grande do Sul e Fernando Megre Velloso, presidente do Departamento de Psiquiatria da AMB.

Protocolo

"Preocupados com os problemas atuais dos psiquiatras brasileiros, pensando nos encaminhamentos de suas urgentes soluções e dispostos a tomar, desde logo, as atitudes a que se sentem obrigados pelas posições que ocupam, os signatários resolveram iniciar os entendimentos, em suas respectivas áreas de influência, para transformar em realidade as seguintes proposições":

I Fundar a Associação Brasileira de Psiquiatria, para congregar, incentivar, representar e defender os psiquiatras brasileiros com as seguintes finalidades:

  1. Promover o desenvolvimento da psiquiatria no Brasil, pelo incentivo ao estudo e à pesquisa;
  2. colaborar para o aperfeiçoamento do ensino da especialidade, tanto nos cursos de graduação como nos de pós-graduação;
  3. coordenar esforços para a melhoria da assistência psiquiátrica prestada ao povo brasileiro, pelo Poder público, Institutos de Previdência e entidades particulares;
  4. Organizar e patrocinar congressos e publicações de âmbito regional, nacional e internacional;
  5. Lutar pela melhoria das atuais condições de exercício profissional, pela união de classe, sua integração nos movimentos de outras especialidades médicas ou não, defesas dos direitos específicos;
  6. propugnar, em colaboração com os Conselhos de Medicina, pelo acatamento cada vez maior dos princípios da Ética Profissional, dentro da especialidade;
  7. Proporcionar, na medida do possível, uma assistência social supletiva aos colegas que dela necessitarem.

II A ASSOCIAÇÃO deverá nascer prestigiada por um abaixo-assinado suficientemente representativo, em qualidade e número dos psiquiatras de todo Brasil.

III O IV Congresso da AMB, em 24 de outubro de 1985, oferecerá ótima oportunidade para a primeira reunião administrativa da nova Associação.

IV A Assembléia dos Delegados que se reunirá no final deste Congresso poderá sancionar um Convênio entre a Associação Médica Brasileira e a nova entidade, onde constem, entre outras as seguintes cláusulas; seguem-se várias clausula administrativas.

V e VI Tratam da filiação da ABP a entidades internacionais.

VII Nos dias 21 e 24 de abril de 1966 reunir-se-á a Primeira Jornada Brasileira de Psiquiatria no Estado da Guanabara, para discutir assuntos administrativos da ABP e os temas científicos que forem escolhidos para o congresso Mundial de Psiquiatria daquele ano.

A publicação desse Protocolo, que parecia aplainar o caminho de fundação, desencadeou intensa luta política. No Rio de Janeiro o Prof. J.Alves Garcia era presidente da Aperj e adversário do Prof. Leme Lopes. São Paulo era liderado pelo Prof. Clóvis Martins que tinha ambições de liderança nacional.

O Prof. Othon Bastos em recente e afetuosa entrevista ao Jornal Psiquiatria Hoje (Ano XXIV; 5;2002) observa que a ABP foi fundada em agosto de 1966, na cidade do Rio de Janeiro. "Ela nasceu à sombra das cátedras de Psiquiatria e da ditadura militar". Observando em retrospecto, interpreto um pouco diferentemente. A ditadura militar ainda não tinha uma presença marcante na vida associativa brasileira, ela botou o pé, mesmo, a partir do Ato Institucional número 5 de 1968. As cátedras, leia-se a Universidade, começava a se tornar mais importante que os Centros de Estudos dos grandes hospitais públicos e particulares. Na França houve um concurso para Professor em que os adversários foram Henri Baruk do Hospital de Charenton ( Asilo) contra Jean Delay do Hospital Saint Anne. A vitória de Jean Delay significava o fim do poder dos alienistas e o começo da moderna psiquiatria. Guardadas as devidas proporções e mais do ponto de vista simbólico, em nosso meio ocorria o declínio do CE da Casa de Saúde Dr. Eiras e o fortalecimento do IPUB. Em São Paulo renovava-se a Paulista e a USP.

O Professor Leme Lopes e sua equipe no Rio de Janeiro, J.Romildo Bueno, Adolpho Heurisch, Eustachio Portella Nunes articulavam apoios em nível nacional. Examinei parte da correspondência enviada pelo Prof. Leme Lopes ao Prof. Manoel Albuquerque e nelas podemos constatar a ansiedade do mesmo diante das articulações do Prof. J.Alves Garcia. Como conseqüência, foi abandonada a idéia de fundar a ABP em abril e, depois de muitas articulações, o grupo de catedráticos se sentiu forte o suficiente para realizar a Assembléia de Fundação.

Transcrevo a Ata de Fundação da Associação Brasileira de Psiquiatria

Aos treze dias do mês de agosto de 1966, na sala de reuniões do Hospital Pinel, sito ã AV. Wenceslau Braz, 71 fundos, na Guanabara, atendendo a convocação da Secretaria Geral provisória, constituída por resolução aprovada em dois de abril do corrente, realizada sob os auspícios da Associação Psiquiátrica do Rio de Janeiro, no mesmo local, operaram-se os trabalhos, desenvolvidos em três reuniões, destinados à;

    • Discussão e votação dos Estatutos
    • Fundação da Associação brasileira de psiquiatria.
    • Eleição de sua primeira Diretoria

Por delegação dos demais membros constitutivos da Secretaria Geral Provisória, Drs. J. Caruso Madalena, Carlos Alberto Bastos, Jorge Paprocki, Oswald Moraes de Andrade, o Prof. Clóvis Martins assume a Presidência. O Dr. Ulisses Vianna Filho pede, então, a palavra para apresentar à mesa um anteprojeto substitutivo elaborado por alguns dos membros da Comissão Organizadora Nacional, o qual apresenta profundas e substanciais diferenças em confronto com o primeiro. O Senhor presidente, levando em conta apenas os artigos lidos na ocasião pelo relator do novo projeto, as quais davam caráter federativo à nova associação, aceitou-os como emendas ao anteprojeto original e fez prosseguir a discussão deste. Foram, então, apresentadas diversas emendas e alguns aditivos ao primeiro. Encerrada a discussão e antes de encaminhar a votação o Senhor Presidente ponderou não ter direito a voto por não ser membro da Comissão Organizadora Nacional, levantou, não obstante, preliminar consubstanciada no fato dos dois anteprojetos apresentarem diferença essencial, isto é, o primeiro caracterizando a Sociedade como um agrupamento de indivíduos e o segundo dando-lhe feições federativas. A opção prévia pela Assembléia para um dos dois tipos iria prejudicar desde logo, a discussão da matéria dos outros. Nesta altura o Dr. Clóvis Martins pede a palavra para opinar no sentido de que o Senhor Presidente mais que ninguém tinha o direito a voto desde o momento que presidia a

Assembléia de Delegados e propõe então que o plenário ratifique esse direito e também, o voto de Minerva, lembrado na ocasião, no entender do autor da indicação deveria ser por ele exercido quando necessário. O plenário, com aplausos ratificou ambas as proposições.

Foi procedida então, à votação da preliminar levantada, tocante o cunho federativo ou "individualista" da Associação. Venceu por expressiva maioria a estruturação de cunho federativo (21 votos a 3). A apuração da estrutura federativa tornou inaplicável em substância o anteprojeto primitivo, de cunho individual, razão por que o Sr. Presidente informava que o anteprojeto substitutivo apresentado pelo Dr. Ulisses Vianna Filho teria prioridade na discussão a ser seguida. Em virtude da hora avançada delibera também interromper a sessão para o almoço marcando seu reinício para as quinze horas.

Reaberta a sessão a essa hora, são recebidas novas credenciais, dos Drs. Tito Moreira Sales, Prof. Alves Correa e Manoel Antonio Albuquerque, este com direito a dois votos. O Sr. Presidente reinicia o estudo e discussão dos estatutos apresentando ao plenário o substitutivo do Dr. Ulisses Vianna Filho, esclarecendo que para facilitar o trabalho irá fazendo a leitura gradual do projeto desejando ser interrompido sempre que emendas correções ou aditivos devam ser apresentados. Os trabalhos são conduzidos, então, entre vivos debates, dos quais resultaram diversas correções, supressões de artigos, aditivos e emendas. Os tópicos principais da discussão foram os seguintes: Na votação do artigo 6 parágrafo 1, a sede da Secretaria Geral fixada no anteprojeto pelo substitutivo na cidade de São Paulo, passa para a cidade do Rio de Janeiro, pelo voto de Minerva do Sr. Presidente, uma vez que houve empate (15 votos). No encaminhamento da votação que ocorreu em clima de certa exaltação, manifestaram-se contrários à mudança os autores do substitutivo, o Dr. Clóvis Martins, o Dr. Eugenio Mariz de Oliveira Neto, O Dr. J, Caruso madalena, Favoráveis foram o Prof, Jurandyr Manfredini, o Prof Raul Bitencourt, o Prof. Portella Nunes e outros. Também a votação do parágrafo seguinte do mesmo artigo, sobre a sede da Tesouraria Geral determinou debates acalorados desta vez encendo sem dificuldade a fixação do referido órgão na Guanabara, como queria o anteprojeto. Ao fim da discussão e votação do artigo 7, o Dr. Clóvis Martins propõe preferência para discussão dos art. 16 e seguintes, justificando sua proposta pela necessidade de acelerar os trabalhos e abordar pontos essenciais. A proposta foi aprovada e da votação resultou que: no artigo 16 foi substituído o item 2, "Assembléia Geral" por "Conselho Deliberativo"; no artigo 17 apresentou-se no item a "em número proporcional dos sócios efetivos" e foi suprimido o parágrafo único do artigo 19; no artigo 19 foi suprimido o item c, a última parte do item b e transformados para atribuições do Conselho Deliberativo os itens "d"e "e"; no artigo 24 foi suprimido o parágrafo único; os artigos 25,26,27 e 28 foram suprimidos; no artigo 29 foi suprimido o item "c"; no artigo 30 foram suprimidos "secretarias e tesoureiros regionais"; no artigo 31 foi substituído o parágrafo 1 por emenda de autoria do Dr. Clóvis Martins, passando o parágrafo 1 do anteprojeto para suas disposições transitórias; o parágrafo 2 desse mesmo artigo é suprimido.

Nessa altura o Dr. Clóvis Martins pede novamente a palavra e pondera que a matéria já aprovada permite condições perfeitas de funcionamento à nova entidade, tendo no seu entender, a Comissão Organizadora Nacional cumprido com a tarefa que lhe cabia, plena e satisfatoriamente. Propõe ele, então, a suspensão da discussão dos demais pontos do anteprojeto, de importância menor, e passando a Assembléia à Fundação da Associação e eleição da primeira diretoria, outorgando a esta, plenos poderes para providenciar a complementação dos estatutos. A emenda proposta é aprovada e incluída nas disposições transitórias dos estatutos que, ao se concluírem os trabalhos de sua discussão e votações, foram aprovados pelos senhores delegados.

Nesse ponto devo encerrar a transcrição da ata e acrescentar que a seguir foi eleito o primeiro presidente da ABP, o Prof. José Leme Lopes; o secretário Geral, o Dr. Ulisses Vianna Filho e como tesoureiro o Dr. Humberto de Andrade.

Foi criado um Conselho Executivo Nacional integrado por:

Antonio Carlos Pacheco e Silva (SP); Álvaro Rubim de Pinho (BA);

José Leme Lopes (RJ); José Lucena (PE): Darcy de Mendonça Uchoa (SP);

Jurandyr Manfredini (RJ); Fernando Megre Velloso (MG); Manuel Antonio Albuquerque (RS).

Estes nomes estão ligados a História da Psiquiatria Brasileira. Dentre eles destaco o Prof. Manoel Antonio Albuquerque que até hoje, é figura destacada da ABP e ativo Delegado a Assembléia Geral pela Sociedade de Psiquiatria do RS. Recentemente saiu no Jornal da AMRIGS e no da SPRS nota biográfica do Prof. Manoel pelo fato dele ter sido escolhido presidente de honra do 19 Congresso AMRIGS. Transcrevo os dados publicados: Primogênito entre os quatro filhos homens de um juiz de direito, Manoel Albuquerque nasceu em Porto Alegre em 7 de dezembro de 1927. Após concluir o segundo grau no colégio rosário, ingressou no curso de medicina da Faculdade de medicina da UFRGS, graduando-se em 1951. Presidiu o conselho da UEE e liderou a bancada gaúcha em Congresso da UNE em 1949. Na política geral atuou na ala moça do Partido Libertador e chegou a candidatar-se a deputado estadual. Concluído o Curso Médico, foi trabalhar no interior, em Catuípe e tomou conta de um hospital geral por 4 meses. Ele faz questão de salientar que estava sozinho na empreitada. Depois partiu para especialização em Neurologia Infantil, em Buenos Aires, com o Prof. Florêncio Escardó. Na volta a Porto Alegre, continuou com o Prof. Celso Machado de Aquino. Estagiou no Hospital São Pedro em 1953 e em 1954 foi aprovado em concurso para médico forense do Estado e depois diretor do Instituto Psiquiátrico Forense, de 1963 a 1967. Em 1965-66 presidiu a sociedade de Neurologia e Psiquiatria do RS; foi vice-presidente da Associação Médica Brasileira em 1968-69; e, em 1970-71 presidiu a Associação Médica do RS. No âmbito internacional, representou a Associação Brasileira de Psiquiatria, de 1978-81, no conselho da Associação Psiquiátrica da América Latina (APAL), da qual foi tesoureiro em 1972, vice-presidente em 1981 e Presidente em 1985. Em 1983 foi Presidente do XIII Congresso latino-americano de Psiquiatria. O Prof. Manoel Albuquerque foi professor adjunto da Fac. De medicina da UFRGS. Foi titular de Psiquiatria da PUC por muitos anos e deixou lá um Serviço muito bem organizado que segue frutificando. Filiou a SPRS na WPA. Foi ativo articulador da criação da ABP e são inúmeras as cartas do Prof. Leme Lopes com ele articulando os trabalhos de bastidores. Em 1965 organizou o famoso vôo da integração em que levou 35 psiquiatras gaúchos ao Ceará onde foram estreitados os laços com a entidade fundada por Ulysses Pernambucano e como conseqüência o congresso da Associação Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Higiene Mental veio para Porto Alegre em 1967. A vida associativa riquíssima de Manoel Albuquerque precisa de mais espaço para ser contada. Deixaremos para seu biógrafo ou para ele, se quiser, nos brindar com uma autobiografia.


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