Volume 7 - 2002
Editor: Giovanni Torello

 

Fevereiro de 2002 - Vol.7 - Nº 2

História da Psiquiatria

Psiquiatria e Poder: aspectos psicológicos

Dr. Walmor J. Piccinini

Este trabalho foi publicado nos Arquivos da Clínica Pinel, volume VI n 3 180:184 em setembro de 1980. Sua origem foi uma participação minha numa mesa-redonda do VI Congresso Brasileiro de Psiquiatria realizado em Salvador, Bahia no período de 22-27 de agosto de 1980. A polarização em torno do tema foi intensa, alguns aplaudiam, outros criticavam veementemente atribuindo-me uma posição cientificista desligada do momento político que vivia a nação brasileira. Relendo minha apresentação, ela me parece simples e objetiva. Algumas correções podem ser feitas, mas sigo acreditando no que escrevi.

O tema da mesa-redonda era muito amplo e por isso optei pelo exame de afirmações provenientes de alguns psiquiatras e alguns cientistas sociais que tem uma compreensão toda particular da psiquiatria e se esforçam na tentativa de destruir a prática psiquiátrica. As origens dos principais ativistas no assunto podem ser encontradas na Sociologia, na Economia de Estado e na Política. Antes de qualquer discussão julgamos necessário estabelecer uma conceituação do que entendemos por Psiquiatria e quais são seus objetivos.

Partimos da idéia que Psiquiatria é um ramo da Medicina, dedicado ao estudo e tratamento das doenças mentais. Seus objetivos podem ser tomados da Declaração do Hawai (1977) e que foram estabelecidos por um comitê de Ética da Associação Mundial de Psiquiatria:

O objetivo da Psiquiatria é promover a saúde, a autonomia pessoal e o desenvolvimento do indivíduo. Dentro do alcance dos seus conhecimentos e habilidades e de acordo com princípios científicos e éticos reconhecidos. O psiquiatra deve servir ao melhor interesse do paciente e ocupar-se assim mesmo pelo bem comum e alocação justa dos recursos da saúde. O homem deve ser compreendido em relação ao seu potencial inato, a influência que recebe da família, do meio ambiente e dos fatores físicos, psíquicos, econômicos e sociais.

A psiquiatria deve proporcionar ao homem, mediante alívio de situações conflitivas paralisantes, meios para que possa utilizar suas capacidades da maneira que achar conveniente. Não cremos na força da psiquiatria como reformadora social ou instrumento político-ideológico; assumir este papel é invadir terreno desconhecido e sem registro no seu instrumental operativo. O psiquiatra, como cidadão, deve assumir uma posição, definir-se perante a sociedade e tentar modifica-la, não pode, no entanto, confundir este seu dever social com seu dever para com o paciente.

A melhoria das condições sócio-econômicas é indispensável para modificar o "fato psíquico", mas não estão na gênese e nem explicam todo o fenômeno. A patologia mental é multideterminada. Não devemos esquecer que a loucura existe independentemente de qualquer sistema de poder. Será utópico, irreal, imaginar que um determinado tipo de relações de poder na sociedade possa eliminar a loucura, a necessidade de psiquiatras e/ou do tratamento. A Psiquiatria deve delimitar seu campo de ação, não deve confundir-se com a sociologia, antropologia, economia e política, que atuam dentro de suas áreas. Isso não impede que a psiquiatria utilize os conhecimentos daquelas áreas.

Cremos ter deixado claro que, se tivermos que falar em ideologia, como psiquiatras somos humanistas. Guy Baillon escreve: "o psiquiatra aceitou ocupar um lugar preciso entre o louco e a sociedade; o psiquiatra sabe que nada virá suprir a sua contínua impotência em seu trato cotidiano com o louco, mas também sabe que nada virá eliminar a ambigüidade do seu papel em face da sociedade".

Vamos agora relembra alguns aspectos da história da psiquiatria. Tomando o tratado Médico-Filosófico da Mania de Pinel, em 1801 como o início da sua existência como especialidade dentro da medicina, vemos que está chegando aos 200 anos. Podemos destacar algumas etapas. O tratamento moral e a concepção asilar. O surgimento de Freud e a compreensão psicanalítica dos fenômenos mentais. As terapêuticas biológicas, e a psicofarmacologia.

No Brasil, a história da Psiquiatria é ainda mais curta. Em 18 de julho de 1841 D.Pedro II decreta a criação do primeiro hospital psiquiátrico do país. Sua inauguração ocorreu dez anos depois. Em 1890 saiu da esfera de influ6encia da Santa Casa e tornou-se o Hospital Nacional de Alienados. Seguiu-se a criação de asilos nos principais estados brasileiros. Em 1934 foi decretada a lei que criou a assistência aos doentes mentais e a profilaxia mental. Em 1941 foi criado o Serviço Nacional dos Doentes Mentais. Os Cursos de formação de psiquiatras só apareceram no final dos anos 50. O primeiro foi o da Faculdade de Medicina da UFRGS e sua duração era de três anos. A primeira Residência em Psiquiatria, com diploma de especialista, reconhecido por Universidade Federal surgiu em 1960 na Clínica Pinel de Porto Alegre. Com este pequeno resumo, desejamos salientar que a história da Psiquiatria brasileira se deveu a uns poucos abnegados, muitos deles autodidatas. A formação de psiquiatras, sistemática e oficial, não tem 25 anos (isso em 1980), de modo que, ao falarmos de psiquiatras brasileiros, devemos considerar que tem diferentes níveis de formação e não constituem um grupo uniforme. Dentro do país podemos encontrar a Psiquiatria representada em seus diferentes momentos históricos. Ainda mantemos estruturas asilares arcaicas, ainda são utilizados métodos biológicos sem critérios técnicos, temos centros psicanalíticos de expressão, temos hospitais e enfermarias de orientação dinâmica e começamos a ensaiar psiquiatria de comunidade e há um uso generalizado de drogas psicofarmacológicas. Há um predomínio do atendimento hospitalar em detrimento do ambulatorial.

Ao relatar os diferentes estágios dos psiquiatras brasileiros no atual momento, lembramos Diatkine que afirmava em relação a França , mas que podemos aplicar para nós: "fazemos a psiquiatria que podemos e muitas vezes a fazemos mal".

Reconhecer as nossas deficiências não significa abdicar da convicção que temos do valor da atuação do psiquiatra em benefício do doente mental. Expressões como: "o louco pode ser feliz na sua loucura"."A loucura é bonita e existe sabedoria na mesma. A loucura é uma viagem, uma" metanóia", são afirmações que tentam negar a doença. Os desafios que ela apresenta, às nossas limitações. A adoção de um posicionamento psicológico identificado com a loucura foge da nossa aceitação. Não é possível negar toda nossa vivência com os doentes, seu sofrimento, suas perdas e limitações.

Vivemos numa sociedade de estruturas hierarquizadas e de característica autoritária, isso nos parece pacífico. Estas estruturas tendem a se reproduzir no âmago das instituições e talvez aí resida o conflito dos diferentes grupos. Levam seus conflitos institucionais para a compreensão do mau funcionamento da mente. Tivemos dificuldades em ordenar o que se tem escrito em relação a psiquiatria e poder. Do materialismo dialético temos a idéia do macro-poder (Estado) e micro-poder (instituições) em eu neste último teríamos o agente final da ação do Estado. Foucault nos fala em poder e sub-poder e sua disseminação na fina malha social. A linha Weberiana discute a estruturação do poder e sua funcionalidade. Independentemente daquelas abordagens ou do enfoque científico das mesmas há uma unanimidade em condenar o asilo como modelo de exercício de poder autocrático. A estrutura arcaica e esclerosada do asilo para alguns seria conseqüência da Psiquiatria, da repressão psiquiátrica e, daí surgem proposições para se acabar com a psiquiatria.

Disto tudo nos ocorre uma pergunta: por que esta frustração tão grande com a psiquiatria? A resposta que nos ocorre é que esta frustração está diretamente ligada a idealização da Psiquiatria, a idealização da Ciência.

Segundo Sigmund Freud, o homem criou três grandes concepções em sua evolução: a primeira foi a animista, em que o homem atribuía a si mesmo a onipotência; a segunda foi à religiosa que a conferia aos deuses; a terceira, a científica, em que o homem dispensaria a onipotência pois teria perdido a crença na sua imortalidade e se submetido as leis da natureza. Ocorre que nesta fase ainda se pode vislumbrar a antiga fé na onipotência, expressa agora na confiança do homem no poder da sua inteligência, por meio da qual, talvez um dia possa triunfar sobre as limitações impostas pela realidade.

Se examinarmos as sucessivas euforias e depressões ocorridas durante o desenvolvimento da psiquiatria, podemos encontrar essa mesma onipotência. O tratamento moral era a salvação do doente mental. Von Jauregg ganhou o Nobel em 1917 por seus trabalhos com malarioterapia. Egas Moniz, também recebeu o Nobel em 1949 por seus trabalhos em psicocirurgia que foram saudados como a cura da doença mental. O próprio Freud advertia que a psicanálise não era uma weltanchaung (concepção de mundo), muitos a adotaram e adotam como uma nova religião, como remédio para tudo, instituições, criminalidade, etc. Os tratamentos de Von Sackel e depois o de Cerletti alimentaram esperanças que agora vemos renascidas com as drogas antipsicóticas e antidepressivas.

A Psiquiatria comunitária, os centros de atendimento, o esvaziamento dos asilos, o fechamento dos hospitais públicos que tiveram seu auge no final dos anos 60 e na década de 1970, nos EUA. Hoje, é criticado por não solucionarem o problema do doente mental e criarem outros como o dos homeless e da criminalidade. (A desinstitucionalização dos doentes, sem criar uma alternativa viável para sua sobrevivência, os condenou a viverem em guetos nas grandes cidades, sofrendo todo o tipo de agressões e padecimentos que eram características da época pré-asilar).

Os psiquiatras não podem ser responsabilizados por essa ideologia da onipotência; o psiquiatra não é o responsável por essa pressão da sociedade em colocá-lo numa posição onipotente. Se a sociedade conseguir encerrar o psiquiatra na sua onipotência, encerrará com ele o louco a fim de faze-lo passar por um torniquete de readaptação segundo suas normas específicas. Com efeito, o psiquiatra cai nas mãos do estado e dos grupos de pressão que querem escravizar sua onipot6encia; basta observar a utilização que lhes foi dada nos países totalitários.

O maniqueísmo da observação dos fenômenos sociais, o reducionismo mecanicista do homem é manifestações onipotentes que os psiquiatras devem evitar, pois os afastam dos seus limites operativos. Quando vejo afirmações do tipo: "encolhedores de mentes", "controladores sociais", "agentes repressores do sistema", "rotuladores", "exame psiquiátrico igual à cerimônia de degradação", fico a lembrar uma citação de Frazer que Freud registrou em Totem e Tabu: "Os selvagens timmes da Serra Leoa, que elegem seu rei, reservam-se o direito de espancá-lo na véspera da coroação e valem-se desse privilégio constitucional com tão boa disposição que, às vezes, o infeliz monarca não sobrevive muito à sua elevação ao trono. Daí, quando acontece dos principais chefes terem rancor de um homem e desejarem livrar-se dele, elegem-no rei".

Atribuir ao psiquiatra poderes que ele não tem, soluções que não pode dar, nos parecem formas de eleição muito similar. Achamos que a psiquiatria pode agradecer a honraria e reafirmar que não é responsável pela felicidade do homem na terra, não vai resolver o problema das guerras ou da violência. Uma última lembrança: enquanto a Psiquiatria estava isolada no asilo com seu louco e não incomodava ninguém, era tolerada como uma "piada sinistra" e dela ninguém se ocupava. Na medida que foi obtendo reconhecimento médico, na medida que saiu dos muros do asilo para dentro da sociedade, passou a receber ataques ferozes de pretensos inovadores. Finalizando, mais importante que o "poder da psiquiatria", são suas imperfeições. Sua dificuldade em recuperar muitos dos indivíduos que buscam seus préstimos. Os fenômenos se interligam, pois ao assumir papéis de poder o psiquiatra está deixando de ser psiquiatra.


TOP