Volume 7 - 2002
Editor: Giovanni Torello

 

Setembro de 2002 - Vol.7 - Nº 9

Psicanálise em debate

Babel e a criação da necessidade estrutural da tradução

Resenha de "Torres de Babel" –Jacques Derrida – Editora da Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte – 2002 – 76p.

Dr. Sérgio Telles
Psicanalista do Departamento de Psicanálise de Instituto Sedes Sapientiae
e escritor, autor de MERGULHADOR DE ACAPULCO (1992 – Imago – Rio)

O pequeno ensaio "Torres de Babel" de Derrida faz parte de seu livro "Psyché", de 1987.

O tema central é a tradução.

Ao invés de se contentar com o convencional "Traduttore, traditore", ditado que classicamente condensa as dificuldades e impasse inerentes à tradução, Derrida aborda o tema bem a seu estilo. Mais uma vez, seguimos os tortuosos caminhos de seu pensamento, que, a cada volta surpreende e encanta o leitor com sua sutileza e finura, mas só se ele (o leitor) estiver atento. Caso contrário, logo ficará perdido no labirinto de suas complexas frases, cheias de parágrafos digressivos, parênteses pretensamente esclarecedores, comentários, adiantamentos, flash-backs e ilustrações.

Na verdade, "Torres de Babel" está centrado em um comentário de Derrida sobre o famoso ensaio de Benjamin sobre a tradução, o "A Tarefa do Tradutor" ("Die Aufgabe des Übersetzers"), texto que, por sua vez, ele o lê já numa tradução, realizada por seu mestre Maurice de Gandillac. É interessante lembrar que o próprio texto de Benjamin é, por sua vez, o prefácio de uma tradução por ele feita de "Tableaux Parisiens" de Beaudelaire. Está montado então um jogo de espelhos lingüísticos, a refletirem infinitamente o enigma das línguas.

O livro abre com o texto bíblico sobre a Torre de Babel. Ali está escrito que, naquela ocasião, os homens orgulhosamente planejavam a construção de uma torre com a qual chegariam aos céus, marcando uma cidade que os uniria e protegeria para sempre, evitando sua dispersão pela face da terra. Ao mesmo tempo, com isso, se fariam um nome. Esse projeto ousado e audacioso não agradou a Deus, que o interpretou como fruto da arrogância e soberba dos homens, desafiando-o em sua posição de criador supremo. Deus então raivosamente "clama seu nome: Babel, Confusão", o que estabelece a confusão de línguas, impede a consecução do projeto, provoca a dispersão dos homens e a incompreensão entre eles.

Segundo Derrida, Deus destrói o nome que os homens queriam se dar, construindo sua própria língua e sua identidade humanas. Deus reafirma seu próprio nome, que se confunde, nesse momento, com o de Babel e de Confusão. Está imposta a confusão de línguas, assim como a necessidade da tarefa impossível do tradutor, que deve trabalhar com a língua de Deus, que é Babel e confusão. Desta forma, fica estabelecida uma ligação entre a linguagem e Deus, a língua falada é a sua, e está imposto o nome-do-pai. Pergunta-se Derrida qual língua era falada durante a construção da torre, antes de ter sido proclamada "Babel". Pode-se traduzir um nome próprio (Deus, Babel)? Pode-se confundi-lo com um nome comum (confusão)?

Ao projeto humano, que visava a racionalidade de uma comunicação clara e direta entre os homens, Deus impõe a sua própria língua, que – fragmentada numa miríade de línguas humanas - será para sempre estranha e estrangeira para os homens, que estarão irremediavelmente condenados à falibidade e incompletude, além de necessitarem de uma sempre falha tradução.

Antes de abordar o texto de Benjamim, Derrida lembra os três tipos de tradução segundo Jakobson: a intralingual (que se dá dentro da própria língua), a interlingual ou tradução propriamente dita, (feita entre diferentes línguas) e a tradução intersemiótica (interpretação de signos lingüísticos através de signos não lingüísticos).

Do texto de Benjamim, Derrida sublinha o título, "A Tarefa do Tradutor", insistindo no aspecto de missão, compromisso, obrigação, dívida, responsabilidade, restituição, todos eles elementos implícitos no ato de traduzir.

Dos trechos pinçados por Derrida do ensaio de Benjamin, o mais importante é onde se estabelece o vínculo entre a linguagem dita "pura" e a "verdade" a partir de um texto de Mallarmé que Benjamin, significativamente, cita em francês, sem traduzi-lo para o alemão, língua em que escreve.

Eis a tradução em português desse trecho: "Às línguas imperfeitas porque várias, falta a suprema: pensar sendo escrever sem acessórios, sem cochicho mas tácita ainda a imortal palavra, a diversidade, sobre a terra, dos idiomas, impede pessoas de proferir as palavras que, de outro modo, se encontrariam, por um golpe único, ela mesma materialmente a verdade".

Para Benjamin, a tarefa do tradutor não é a recepção, a comunicação ou representação do original. Ele deve centrar seu interessa basicamente sobre a forma, como evidencia qualquer tentativa de traduzir textos sagrados ou poéticos. Fica aí caracterizado como o conteúdo não deve ser o interesse maior do tradutor. Dizendo de outra forma, a tarefa do tradutor é "fazer amadurecer a semente de uma linguagem pura".

Essa "linguagem pura" parece remeter à mítica linguagem primeira, originária, da qual todas derivaram e que garante o parentesco essencial entre todas elas, sendo ela a portadora da mais depurada verdade. É a língua de Deus, que ao se impor em Babel, o fez para "deixar entender que é difícil traduzi-lo e assim entendê-lo".

Toda grande obra literária, todo original importante impõe-se como algo a ser traduzido (ele "suporta" e "exige" uma tradução) por ser portador de um fragmento dessa "linguagem pura". Cabe ao tradutor captar esse fragmento, essa "semente de linguagem pura" e produzi-la em sua própria língua. É aquela "verdade" anunciada por Mallarmé.

Reside nisso também o que Benjamin chama de "sobrevida" de uma obra: o fato de ela ter uma vida própria, distinta da do autor, cuja existência natural se extingue, enquanto ela – por estar inscrita num universo simbólico – persiste e cresce toda vez que é traduzida.

A importância da tradução se dá pela promessa que estabelece de que é possível um acordo entre as línguas, a transmissão de algo, a base de todo entendimento.

A relação entre as línguas e a "linguagem pura" portadora da "verdade" fica bem sintetizado na bela "metáfora da ânfora" criada por Benjamin: "Pois, da mesma forma que os restos de uma ânfora, para que se possa reconstituir o todo, devem ser contíguos nos menores detalhes, mas não idênticos uns aos outros, assim, no lugar de tornar-se semelhante ao sentido do original, a tradução deve de preferência, em um movimento de amor e quase no detalhe, fazer passar na sua própria língua o modo de intenção do original: assim, da mesma forma que os restos tornam-se reconhecíveis como fragmentos de uma mesma ânfora, original e traduções tornam-se reconhecíveis como fragmentos de uma linguagem maior".

Se as línguas se aproximam e tendem para uma linguagem maior, também é verdade que elas se afastam e que há algo intocável e intransferível na passagem de uma para outra, visível na absoluta singularidade com que cada língua expressa cada conteúdo. É isso que marca a diferença entre o original e a tradução, expressa por Benjamin na metáfora do caroço, do fruto e do invólucro, do caroço e da casca.

No original,iz ele, está o caroço, o núcleo duro que permite a tradução, a reprodução. Ali, teor e linguagem formam uma unidade determinada como a do fruto e do invólucro. Já a tradução, "envelopa seu teor como um manto real de largas dobras". Enquanto no original há uma natural harmonia e integração entre teor e língua, na tradução há uma solene e severa sobreposição de um "manto real" sobre o teor, que representa a autoridade do simbólico.

Chegamos finalmente à questão já mencionada da verdade. Diz agora Derrida: "A verdade seria de preferência a linguagem pura na qual o sentido e a letra não se dissociam mais. Se um tal lugar, o ter-lugar de tal acontecimento, permanecesse não encontrável, não se poderia mais, fosse esse de direito, distinguir entre um original e uma tradução".

A relação entre original e tradução tem, evidentemente, conseqüências jurídicas sobre direitos autorais que estabelecem a legitimidade das traduções, reconhecendo-lhe inclusive uma parcela de originalidade e trabalho autoral.

Embora o texto faça muitas referências ao sagrado e a palavra de Deus como aquela primeira, instauradora da estranheza e da impossibilidade de entendimento direto, impondo-se a tradução, mas também evocando uma inefável e fugidia verdade, penso que isso não deve ser confundido com qualquer posição religiosa ou mística. O nome de Deus aqui parece evocar a nostalgia frente ao próprio mistério indecifrável da existência das línguas. Afinal, o que querem elas dizer? O único que podemos constatar é que elas querem dizer. Elas – todas - querem simbolizar, representar. Elas falam.

Mais ainda, o nome de Deus é uma metáfora na própria língua para simbolizar o enigma da origem de tudo - nosso anseio de paternidade, nós, pobres homens órfãos, condenados à vida sem sabermos o porquê.

A meu ver, as grandes obras são portadoras dessa "linguagem pura" e da "verdade" não tanto por expressarem revelações sagradas ou divinas, mas por apontarem profundas verdades humanas produzidas e buriladas pelos autores e prontamente reconhecidas pelos leitores.

O problema da tradução, abordado aqui em profundidade, necessariamente interessa a todos nós analistas. Ao interpretar e construir, estamos sempre fazendo traduções do inconsciente para o consciente, tarefa ainda mais complicada e comprometida do que a do tradutor, tal como vista por Benjamin e comentado por Derrida.

Penso que essa afinidade de teores se concretiza no artigo "A Casca e o Núcleo" (1), de Abraham, que, como se vê, não acidentalmente aproveita no título a metáfora de Benjamim sobre o caroço, o fruto e o invólucro, sublinhada em "Torres de Babel" por Derrida. É também significativo que Derrida tenha feito um pequeno artigo para apresentar este texto de Abraham nos Estados Unidos, o "EU, a Psicanálise" (2).

O artigo de Abraham tendo como ponto de partida o aparecimento do "Vocabulário de Psicanálise" de Laplanche e Pontalis, faz uma interessante análise sobre o complexo trabalho de tradução entre a língua da psicanálise e a língua na qual se expressa, tendo antes enfatizado o ainda mais peculiar e inaccessível – que a língua da psicanálise não deve ser confundida com a língua do inconsciente, desde que esse é um discurso que prima pela ausência, pelo negativo, a ser apreendido nas entrelinhas, nos lapsos, nos erros.

Referências

  1. Abraham, Nicolas, "A Casca e o Núcleo", in "A Casca e o Núcleo", de Nicolas Abraham e Maria Torok – Editora Escuta – São Paulo – 1995 – p. 191
  2. Derrida, Jacques – EU, a psicanálise – Pulsional – Revista de Psicanálise – no 158 – junho 2002 – p. 11

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