Volume 7 - 2002
Editor: Giovanni Torello

 

Março de 2002 - Vol.7 - Nº 3

Psicanálise em debate

 

O papel do analista

Dr. Sérgio Telles
Psicanalista do Departamento de Psicanálise de Instituto Sedes Sapientiae
e escritor, autor de MERGULHADOR DE ACAPULCO (1992 – Imago – Rio)

Qual seria o papel do analista? Essa é uma sugestiva questão que implica significados que nos são muito pertinentes. Recorrendo ao dicionário, vemos que "papel" é a "parte que o ator desempenha no teatro, no cinema, na televisão"; é "o personagem representado pelo ator" e, mais ainda, "atribuição de natureza moral, jurídica técnica, etc".

"Interpretação", "representação", "atribuição de valores" - de fato, tudo isso está diretamente ligado ao ofício do analista. O analista interpreta e representa um drama do qual, de início, só em largas pinceladas tem idéia, pois é o paciente quem vai distribuir os papéis, ao reencenar com ele toda a sua vida.

Ao interpretar e representar este papel, o analista o "encarna" mas também o torna compreensível, explicável, dá-lhe um sentido e uma significação que até então escapavam ao paciente. Em assim fazendo, está exercendo sua principal função, seu principal papel no processo terapeutico e o faz a partir do mundo das representações e do simbólico, em pleno campo da linguagem.

Assim, o papel mais importante do analista é o de interpretar e construir. A interpretação é tida por todos como o fundamento da terapia psicanalítica. Interpretar é, a partir do que o analisando nos comunicou, dar-lhe uma explicação de algo que ele desconhece a respeito de si mesmo, proporcionando-lhe, assim, um alargamento da compreensão de seu próprio psiquismo, um aumento de seu auto-conhecimento. Interpretar é dar uma nova conexão de significados, é estabelecer novas e insuspeitas correlações, é evidenciar o sentido latente existente nas palavras e no comportamento manifestos de uma pessoa. A partir das interpretações, o analista vai reconstruindo, em seus aspectos reais e fantasmáticos partes da história infantil do indivíduo, como dizem Laplanche e Pontalis(1).

O pressuposto da interpretação e da construção é, evidentemente, a existência do inconsciente, esta dimensão do psiquismo que Freud descobriu e do qual fez o inventário em trabalhos como Estudos sobre a Histeria (2), A Interpretação dos Sonhos (3), Psicopatologia da Vida Cotidiana (4), Chistes e sua relação com o Inconsciente(5). Neles, Freud propõe seus primeiros modelos do aparelho psíquico, revelando o inconsciente enquanto instância psíquica estruturada, regida pelo processo primário. É aí onde Freud prova que nada que ali ocorre - no Inconsciente - é arbitrário. Tudo é determinado, sobredeterminado e estruturado a partir de um núcleo de experiências infantis arcaicas, organizadas em torno dos complexos de castração e de Édipo, regidas pelo desejo inconsciente que incessantemente põe em movimento o aparelho, em busca de uma impossível satisfação.

Nestes trabalhos inaugurais, Freud mostra como detecta as formações do inconsciente primordialmente através discurso do paciente, disposto em associação livre, à qual o analista oferece sua escuta baseada na atenção flutuante.

Para compreender qual é o papel do analista para Freud, parece-me interessante comparar dois de seus trabalhos: Estudos sobre a Histeria , especialmente seu último capítulo, intitulado Psicoterapia da Histeria (1), trabalho de 1895, e um dos últimos escritos de Freud, Construções em Psicanálise, de 1937 (6).

É claro que entre estes dois extremos de sua obra, há um longo elaborar teórico mas há duas coisas que Freud não muda.

A primeira é que Freud não cessa de enfatizar que, longe de ser o caos, o primitivo, o inarticulado, o desorganizado, o mero funcionamento degradado do cérebro fora da consciência - como se pensava até sua descoberta - o Inconsciente é algo inteiramente estruturado dentro de leis próprias que seguem uma lógica especial baseada na condensação e no deslocamento. É uma lógica que preside a sobredeterminação, com seu interjogo de causas e significações superpostas, que levam ao encadeamento das representações-meta conscientes e inconscientes, organizadas em cadeias associativas que vão constituir as fantasias. É essa lógica que o analista deve captar e desenvolver, descobrindo conexões, estabelecendo ligações, as quais dará para o analisando como interpretações e construções.

A segunda é a forma como entende o tratamento, o trabalho do psicanalista como aquele que dá sentido, cria significados ao tornar consciente o inconsciente, ao preencher as lacunas da memória, ao recuperar lembranças e vivências reprimidas, dando assim acesso ao analisando a seu próprio desejo, reinstalando-o dentro de sua história simbólica.

É na fala do analisando, em seu discurso, que o analista tem acesso às formações do inconsciente. Neste sentido, tudo aquilo que atrapalha e impede este discurso é tido como resistência, pois Freud logo se deu conta de que poderosas forças inconscientes se organizam no analisando, impedindo ou dificultando o desdobrar de seu discurso. A maior delas foi descrita como a transferência. Em "A dinâmica da transferência"(7), a descreve como um obstáculo ao trabalho de rememoração, pois o paciente faz uma falsa conexão e na sequência associativa, justamente aquela associação mais reprimida aparece como transferida para o analista, como que desconectada com a cadeia a que pertence. Aparece como algo atualizado, atuado com a pessoa do analista.

Tal visão da transferência não mais vai ser abandonada e sim amplificada. Freud oscila entre ver a transferência como obstáculo e resistência à rememoração - e o é de fato, na medida em que interrompe a rememoração verbal, quando se constitui então em resistência de transferência - e, ao mesmo tempo, entendê-la como a via regia para a recuperação do passado do paciente.

Dizendo de outra forma, Freud vai entender que o paciente repete na transferência para não lembrar, por ser impossível lembrar. A transferência é uma forma especial de recordar, vai dizer Freud em Recordar, repetir e elaborar(8).

O paciente está repetindo protótipos infantis, atualizando seus desejos inconscientes infantis nas relações atuais, especialmente com o analista, desenvolvendo então uma neurose de transferência.

Vê-se então que as falhas do discurso, as impossibilidades de mantê-lo, desde que parte dele deixa de ser comunicação verbal e se transforma em um viver e atuar na transferência, são repetições e urge interpretá-las, pois é justamente atentando para tais repetições e tendo-as como centrais no processo terapeutico que é possível transformá-las em rememorações, simbolizá-las, integrá-las.

Ao aparecimento da transferência por parte do paciente, o analista responde com sua contra-transferência, uma série de fantasias, desejos, pensamentos desencadeados pelo paciente em seu psiquismo, que também serão importantes na elaboração da interpretação.

O processo analítico terá então três referenciais ineludíveis: o discurso do analisando, suas vivências em relação ao analista em posição de transferência e a captação e manejo da contra-transferência por parte do analista. Freud apesar de logo ter compreendido que é na transferência onde vão ser travadas as batalhas decisivas da análise, nunca deixou de enfatizar que o analista deve limitar a neurose de transferência, através da rememoração. Ou seja, Freud insistia que o objetivo da análise era a rememoração do passado e, quando este nÃo era rememorado e sim "transferido", interpretava e construia para preencher suas lacunas.

A importância da transferência e da contra-transferência pode levar a algumas distorções como a excessiva preocupação com a interpretação do aqui e agora. Desconsidera-se então a interpretação do passado e a elaboração de construções como racionalizações e intelectualizações que visariam a negar o que efetivamente estaria ocorrendo no "aqui e agora", na "transferência" e a "contra-transferência". Contra estas distorções é importante lembrar que uma exaltação da relação transferencial em si, como bem lembram Laplanche-Pontalis(9), é um equívoco no qual Freud nunca incorreu.

A este respeito diz Etchegoyen: "No momento atual, há uma grande discussão, que vem de longe, entre os que reivindicam a construção como o verdadeiro instrumento de análise e os que, ao contrário, a desqualificam ou não a levem em conta... Indo agora ao fundo da questão, direi que há, sem dúvida, divergências técnicas entre os analistas que põem ênfase no atual e os que prestam atenção ao passado. Aqueles interpretam (e interpretam fundamentalmente a transferÊncia), estes constroem. Existe, por certo, dois tipos polares de analistas, que Racker (1958) caracterizou como os que usam a transferência para compreender o passado e os que usam o passado para compreender a transferência. Na mesa redonda que se realizou na Associação Psicanalítica Argentina em 1970, um decidido partidário da construções, como Avenburg, diz que estamos intoxicados de transferência"(10).(grifos do autor).

O que está em jogo, na verdade, é a existência de divergentes linhas teóricas pós-freudianas, que levam inevitavelmente a alterações na técnica, na prática clínica, estabelecendo diferentes visões do processo analítico, a diferentes enfoques no manejo da transferência.

Willy Baranger sintetiza bem este problema, ao estabelecer um divisor de águas entre as escolas kleiniana e a freudiana de corte francês, as duas mais influentes e atuantes em nosso meio. Pela clareza e poder de síntese com que expõe o problema, vou citá-lo um tanto extensamente.

Diz ele: "O conjunto de fantasias descoberto por Melanie Klein com Édipo primitivo enriquece sem dúvida nosso conhecimento do mundo imaginário humano; a elaboração teórica deste descobrimento leva a uma desvirtuamento implícito da teoria freudiana do Édipo e a uma modificação profunda e muito discutível da técnica."

Continua: "A correta colocação recíproca da relação dual e do triângulo, do Édipo tardio e do precoce, não é um problema acadêmico, mas que, ao contrário, orienta basicamente nossa atitude analítica e nosso posicionamento na situação analítica. A preeminência absoluta acordada na órdem cronológica e lógica (pela aplicação extrema do enfoque genético) à relação com o peito, nos pode fazer supor que, no fundo, toda relação transferencial se reduz à relação dual com o peito ou com a mãe. Basicamente, a transferência se colocaria dentro de um marco materno de nursing ou de holding, o que corretamente nos pode incitar a dualizar em forma sistemática constelações que, na verdade, são triádicas, quer dizer, a forçar abusivamente a transferência materna. Esta maternalização da relação pode levar a privilegiar a linguagem oral nas interpretações, em detrimento da problemática especificamente edípica. Maternalização, oralização, dessexualização (no sentido da sexualidade genital), tais podem ser as consequencias de uma exagerada enfase sobre o enfoque genético.

"Ao contrário, a função específica do analista nos parece se colocar no registro essencialmente paterno (independente de seu sexo efetivo, naturalmente), já que se situa no limite mesmo que separa e define a órdem imaginária e a ordem simbólica. .... Por isso a função do analista aparece como vinculada de forma intrínseca à função do pai como instituidor da castração. O analista se pode prestar, por sua presença atenta, à criação de todo tipo de fantasias e sentimentos de índole diádico, mas cada vez que interpreta, rompe com a díada e reduz ao nível de ilusão sua anterior participação no vínculo diádico. Repete, ao interpretar, o que fez o pai ao proibir o incesto"(11).

A crítica que Lacan (12) faz da compreensão e manejo da transferência presas excessivamente ao aqui e agora da sessão analítica e no uso abusivo da contra-transferência, baseia-se no pressuposto de que, em fazendo assim, o analista fica preso a uma situação dual, imaginária, especular, narcísica. Esta situação corresponde exatamente ao desejo do paciente. Ao analista compete interpretar e não atuar esta situação fruto daquele desejo. Para tanto não pode ocupar aquele lugar, deve dele sair, ocupando o lugar do Outro, simbolizando, construindo.

Ainda quanto a este ponto referente a modificações profundas e discutíveis da técnica, Etchegoyen faz uma interessante observação: "Os analistas que em Buenos Aires abandonaram a teoria kleiniana para retornar a Freud ou dirigir-se a Lacan, registram eles próprios que uma de suas primeiras mudanças foi começar a colocar menos ênfase na transferência. Essa mudança na praxis é sustentada com vários argumentos teóricos, por exemplo, que se deve atentar mais à história que ao presente, isto é, que se deve reconstruir mais que interpretar, que se deve interpretar as transferências com as figuras importantes da realidade não menos que com o analista, etc"(13).

A meu ver, é um exagero separar tão radicalmente interpretação e construção, coisa que o próprio Freud não faz, a ponto de descrevê-las como momentos diversos de uma mesma operação, ou estabelecendo uma relação entre parte (interpretação) e o todo (construção).

Diz Freud: O analista completa um fragmento de construção e o comunica ao sujeito da análise, de maneira a que possa agir sobre ele; constroi então um outro fragmento a partir do novo material que sobre ele derrama, lida com este da mesma forma e prossegue, desse modo alternado, até o fim. Se nas descrições da técnica analítica se fala tão pouco sobre construções isso se deve ao fato de que, em troca, se fala nas interpretações e seus efeitos. Mas acho que construções é de longe a descrição mais apropriada. Interpretação aplica-se a algo que se faz a algum elemento isolado do material, tal como uma associação ou uma parapraxia. Trata-se de uma construção porém quando se põe perante o sujeito da análise um fragmento de sua história primitiva, que ele esqueceu....(14).

Para mim fica claro que quando Freud fala de construções, não se refere apenas às grandes construções sobre o passado histórico do paciente, mas maneiras de construir o próprio material da sessão, pois as construções são uma decorrência inelutável da logica paradoxal própria do Inconsciente, a lógica da fantasia, do desejo.

Darei em seguida uma visão de como entendo a transferência, a interpretação, a construção, a revelação do inconsciente do analisando.

A maneira que escolhi para fazê-lo é mostrando fragmentos de material clinico. O objetivo aqui não é apresentar uma sessão inteira ou mesmo mostrar respostas do paciente às interpretações e construções, sabidamente a única forma que temos para validá-las ou não. Tento captar o analista em seu papel, em seu ato e ação, ao dar sentido e significação àquilo que aparentemente não o tem.

Como já vimos, a interpretação e a construção são hipóteses organizadas a partir dos referenciais teóricos do analista. Desta forma, não é por acaso que os materiais escolhidos evidenciam muitas vezes a problemática da castração, conceito teórico de suprema importância no aparato teórico freudiano e neo-freudiano francês, com o qual muito me identifico.

 

(*) – Este texto, ligeiramente modificado, faz parte de um trabalho apresentado no simpósio FREUD E JUNG – 90 ANOS DE ENCONTROS E DESENCONTROS, realizado sob os auspícios da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica no Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP), em 17 e 18 de maio de 1996 e publicado na revista JUNGUIANA (no. 14).

BIBLIOGRAFIA

  1. Laplanche, J. - Pontalis, J.-B. - Vocabulário da Psicanálise - Moraes Editores - 3a. edição - 1976
  2. Freud, S. - Estudos sobre a Histeria - vol. II - Edição Standard - Imago
  3. Freud, S. - A Interpretação dos Sonhos - vols. IV e V - Edição Standard - Imago
  4. Freud, S. - A Psicopatologia da Vida Cotidiana - vol. VI - Edição Standard - Imago
  5. Freud, S. - Chistes e sua relaçaão com o Inconsciente - vol. VIII - Edição Standard - Imago
  6. Freud, S. - A Dinâmica da Transferência - vol. XII - Edição Standard - Imago
  7. Freud, S. - Construções em Psicanálise - vol.XXIII - Edição Standard - Imago
  8. Freud, S. - Recordar, repetir, elaborar - vol. XII - Edição Standard - Imago
  9. Laplanche, J. - Pontalis, J.-B. - Vocabulário da Psicanálise - Moraes Editores - 1976- pg. 674
  10. Etchegoyen, R. Horácio - Fundamentos da Técnica Psicanalítica - Artes Médicas - 1987 - pg. 199
  11. Baranger, Willy - El "Edipo temprano" y el "Complejo de Edipo"- Revista de Psicoanalisis - vol. 33 - 303-314
  12. Lacan, J. - La dirección de la cura y los princípios de su poder - Escritos I - Siglo Veintiuno Editores - 1971
  13. Etchegoyen, R. Horácio - Fundamentos da Técnica paicanalítica - Artes Médicas - 1987 - pg. 109
  14. Freud, S. - Construções em Psicanálise - vol. XXIII - Edição Standard - Imago
  15. Smirnoff, Viktor - O Modo Interpretativo in "Como a interpretação vem ao analista" organizado por René Major - Escuta - 1995
  16. Lacan, J. - La significación del Falo - Escritos I - Siglo Veintiuno - 1971

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