Volume 7 - 2002
Editor: Giovanni Torello

 

Março de 2002 - Vol.7 - Nº 3

Desafios éticos atuais na psiquiatria

 

Carlos Batista Lopes
Médico (UFRJ, 1977)
Especialista em psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria (1988)

RESUMO: A ética, por definição referente aos valores que permitem a existência da comunidade humana, é, por isso mesmo, estabelecida sobre a identificação entre os indivíduos que fazem parte desta comunidade. Sua história é a da ampliação dessa identificação, vale dizer, a da ampliação do conceito de humano. Neste sentido, a história da medicina, e particularmente da psiquiatria, é uma parte da história da ética. A época atual, de acentuada crise de valores, coloca, no entanto, novos desafios a esse fundamento da medicina e, especificamente, da sua especialidade que trata dos distúrbios da psique humana, marca distintiva da espécie.

SUMMARY: Ethics, by definition, as referred to values which allow for the existence of the human community, is, for this very reason, established on the identification among individual who belong to this community. It has its history founded on the extensiveness of that identification, it is worthy saying here, of the amplification of the concept of human. In this sense, the history of medicine, and particularly of psychiatry, is one dimension of ethics. The accentuate crisis of values that we witness today, however, bring new challenges to this foundation of the medical profession, more so, in the speciality field of treatment of disturbances of the human psyche, the definite mark of the specie.

DESAFIOS ÉTICOS ATUAIS NA PSIQUIATRIA

CARLOS LOPES

"... não parece que um médico estude sequer a `saúde em si,
e sim a saúde do homem, ou talvez a saúde de um determinado homem"
(
ARISTÓTELES, Ética A Nicômano, I:6)1

"Deus, torna minha alma plena de amor pela arte e por todas as criaturas.
Afasta de mim a tentação de que a sede de lucro e a busca da glória
me influenciem no exercício de minha profissão. (....) Faça com que eu não veja mais
que ao homem naquele que sofre. Faça com que meu espírito
permaneça lúcido em toda circunstância: pois grande e sublime é a ciência
que tem por objetivo conservar a saúde e a vida de todas as criaturas.
Faça com que meus enfermos tenham confiança em mim e em minha arte
e que sigam meus conselhos e prescrições. Afasta de seus leitos aos charlatães,
ao exército de parentes com seus mil conselhos e aos vigilantes que sempre sabem tudo;
é uma casta perigosa, que pela vaidade leva ao fracasso as melhores intenções.
onceda-me, meu Deus, indulgência e paciência para com os enfermos obstinados e grosseiros.
Faça com que eu seja moderado em tudo, mas insaciável em meu amor pela ciência.
Afasta de mim a idéia de que eu posso tudo. Dá-me a força, a vontade
e a oportunidade de ampliar cada vez mais os meus conhecimentos,
a fim de que possa procurar maiores benefícios para aqueles que sofrem."
(MAIMÔNIDES, médico árabe judeu, 1135 – 1204) 2

No início do mês de setembro de 1893 apareceu num jornal médico de Viena um obituário do grande neurologista francês Jean-Marie Charcot, falecido no dia 16 do mês anterior. Nele, era observado que "mais ou menos na época (....) em que ele abandonou a cátedra de Anatomia Patológica, houve uma mudança no sentido das investigações científicas de Charcot, fato ao qual devemos o melhor de seu trabalho. (....) começou a voltar sua atenção quase exclusivamente para a histeria, que assim se tornou de imediato o foco do interesse geral. Esta, a mais enigmática de todas as doenças nervosas, para cuja avaliação a medicina ainda não achara nenhum ângulo de enfoque aproveitável, acabara então de cair no mais completo descrédito, e esse descrédito se estendia não só aos pacientes, mas também aos médicos que se interessassem pela neurose. Sustentava-se que na histeria qualquer coisa era possível e não se dava crédito aos histéricos em relação a nada. A primeira coisa feita pelo trabalho de Charcot foi a restauração da dignidade desse tópico. Pouco a pouco, as pessoas abandonaram o sorriso desdenhoso com que uma paciente podia ter certeza de ser recebida naquele tempo. Ela não era mais necessariamente uma simuladora de doença, pois Charcot jogara todo o peso de sua autoridade em favor da autenticidade e objetividade dos fenômenos histéricos. Charcot repetira, em menor escala, o ato de libertação em cuja memória o retrato de Pinel pendia da parede da sala de conferências do Salpêtrière 3 ".

Charcot havia sido o mestre e líder da escola francesa de neuropatologia. No entanto, como observava o autor de seu obituário, seu discípulo e também neurologista Sigmund Freud, por um totalmente inesperado capricho do destino sua principal contribuição, aquela que ficou e ficará para sempre na memória dos que viriam e virão depois, não foi no campo da matéria que lecionara e enriquecera durante décadas. O trabalho de Charcot, ao considerar a histeria um problema médico, é um dos atos fundadores da psiquiatria, perfeitamente comparável – como nota Freud – ao ato de Philippe Pinel durante a Revolução Francesa, ao libertar das correntes os internos de Bicêtre e Salpêtrière. Pinel, exatamente 100 anos antes de Freud escrever seu texto sobre Charcot, ao determinar a providência que o tornou célebre, enfrentara um burocrata que lhe perguntou: "Não estará também o senhor louco por querer libertar essas feras"? A breve resposta é, na verdade, o manifesto inicial da nova especialidade médica: "Estou convencido de que essas pessoas não poderão curar-se se não tiverem ar e liberdade".

Porém, os atos de Pinel e Charcot não são apenas – e talvez nem principalmente – atos especificamente médicos. Aliás, só podem ser considerados atos médicos na medida em que transcendem a própria medicina para mostrarem-se como atos éticos.

Pouquíssima gente sabe quais eram as concepções de Pinel sobre as doenças mentais ou, menos ainda, quais eram os tratamentos prescritos por ele. Trata-se de um conhecimento restrito aos historiadores e aos médicos dotados de especial curiosidade. Quanto a Charcot, um clínico infatigável, sua abordagem neuropatológica da histeria já estava superada por ocasião de sua morte. Nada disso tem a menor importância. Todos sabem que eles foram os primeiros – ou pelo menos os mais importantes - a considerar que os psicóticos e os neuróticos eram pessoas acometidas por doenças. Em suma, sua grande contribuição está em ter dado dignidade humana aos doentes e à doença mental, em reconhecer seres humanos no que antes eram supostas "feras" ou "simuladores" indecentes. Ao retirarem a doença mental do campo da condenação pela moral oficial para inseri-la no campo da medicina, eles conferiram um novo patamar moral aos pacientes e à ciência.

Toda a história da psiquiatria está contida nesses – e em inúmeros outros – atos de humanização da doença e dos doentes mentais. Atualmente, em que tornou-se moda 4, ao abordar-se o passado, a ênfase na resistência a esse processo de humanização, como se fossem essas resistências e não a superação delas que constituíssem a trajetória da psiquiatria – isto é, como se esta fosse em si um processo de desumanização do paciente -, não é supérfluo recordar que é evidente que houve resistências, até porque sem luta e sem superação da resistência ao novo não há vida, mas foi o último aspecto, no cômputo geral, que caracterizou o desenvolvimento da especialidade.

Tomemos, por exemplo, a psicopatologia do século XX, de base fenomenológica, cuja obra inaugural é a "Psicopatologia Geral", de Karl Jaspers (1911). Um autor brasileiro resumiu brilhantemente essa abordagem: "O enfoque fenomenológico privilegia a compreensão empática do fenômeno psíquico, sem deixar de lado as possíveis explicações intelectuais que este venha a aceitar. Procura – como disse o psiquiatra e filósofo Karl Jaspers – estar aberto a todas as possibilidades de investigação empírica, resistindo a toda tentativa de reduzir o homem a um denominador comum (....). Neste enfoque, compreender o doente mental significa aproximar-se de sua Weltanschauung (visão ou concepção do mundo, em alemão). A essência de toda a observação clínica é a postura compreensiva 5 (....)".

Portanto, se é possível resumir mais ainda essa formulação, é o ponto de vista do paciente e o que há de comum entre a vida psíquica deste e a vida psíquica do médico (caso contrário seria impossível a compreensão empática) que adquire relevância para a psicopatologia fenomenológica, isto é, o status comum a ambos, paciente e psiquiatra – o de seres humanos.

É neste sentido que pode-se falar de um problema ético fundamental da psiquiatria.

Diga-se de passagem, não há uma ética específica, isto é, isolada, que diga respeito à psiquiatria, assim como não há coisa semelhante em relação à medicina em geral. A ética (ethiké) é palavra derivada de ethos, isto é, "hábitos", valores morais – o bem e o mal, o certo e o errado - do conjunto da comunidade 6. O que não quer dizer que ela não se apresente em cada campo da sociedade – e, portanto, do conhecimento e da prática dos homens – com sua especificidade, tendo que responder a problemas particulares a esses campos.

É exatamente porque diz respeito aos valores da comunidade que a ética implica, necessariamente, a consideração do outro. Ela é, de certa forma, uma medida de nossa identificação com os outros seres humanos. Houve época em que era perfeitamente lícito – e, portanto, ético – esfolar e/ou empalar os inimigos, ou, como na "Ilíada", saquear cidades, estuprar as mulheres do inimigo e escravizar seus filhos. Mesmo considerando as barbaridades que ainda hoje se cometem – e não são poucas – elas não são mais um motivo de orgulho compreensível e justificável, ou seja, não são lícitas diante do conjunto dos seres humanos. Ninguém, exceto talvez alguns psicopatas, considera lícitos e eticamente justificáveis os crimes dos nazistas. Na verdade, nem os próprios nazistas, uma vez que fizeram o possível para esconder o que se passava nos campos de concentração e nos territórios ocupados por eles. Sabiam perfeitamente que não poderiam sustentar seus atos nem mesmo diante do povo alemão, por mais intoxicado que este estivesse pela propaganda de Goebbels et caterva.

A ética, portanto, tem uma história. Não é a cristalização fixa, imutável e eterna de determinados valores abstratos. Ao contrário, ela remete sempre a algo bem concreto – que o digam as vítimas das "experiências" supostamente "médicas" dos nazistas 7 .

Mas em que constitui o conteúdo da história da ética? Por que aquilo que antigamente era eticamente lícito, não o é mais? Não temos dúvida em afirmar que o conteúdo dessa história é a ampliação e aprofundamento da capacidade humana de identificar-se com seu semelhante. Houve época em que essa capacidade era limitada pela horda, pela tribo ou pelo clã de que o indivíduo fazia parte. Por isso era lícito cometer determinados atos contra quem não pertencia ao grupo ou contra quem, ainda que membro do grupo, infringia suas normas coletivas. Em suma, usando termos atuais - pois a questão não era formulada dessa forma, aliás, a questão não era sequer formulada exceto como especulação filosófica - a humanidade, a identidade humana não era reconhecida como geral. O problema da humanidade dos escravos - ou dos doentes mentais – é um exemplo, a esse propósito, esclarecedor.

Mas sob esse ângulo, o surgimento da própria medicina é parte decisiva desse processo de humanização crescente, pois não é possível tratar de alguém sem identificar-se com ele, em especial com o seu sofrimento. Aliás, essa identificação precede, necessariamente, a decisão de tornar-se médico e é parte inseparável desta condição. Por isso, o primeiro tratado médico, o "Corpo Hipocrático" – o conjunto de escritos de Hipócrates e seus discípulos que sobreviveu até os dias de hoje – é, antes de tudo, um tratado sobre ética 8 em seu sentido genérico, não sobre uma ética que seria própria apenas aos médicos.

A psiquiatria, enquanto especialidade médica, tem portanto essa mesma origem e fundamento ético da medicina. No entanto, desse mesmo ponto de vista, ela apresenta uma particularidade que diz respeito ao seu objeto de conhecimento e de ação. Sempre se considerou – embora nos tempos que correm freqüentemente seja esquecido – que a distinção qualitativa entre os seres humanos e os outros animais da natureza é estabelecida por duas características, inseparáveis uma da outra: o pensamento e a vida social, coletiva, comunitária. Robinson Crusoe é uma fantasia de Defoe – mas mesmo em fantasia, Defoe sentiu necessidade de criar também o índio Sexta-feira para acompanhar Robinson, cuja vida em sua longínqua ilha, aliás, é uma reprodução, em tudo, da vida em sociedade 9 . Quanto às tentativas de demonstrar que outros animais também teriam a capacidade de pensar, sendo a diferença em relação aos humanos apenas uma questão quantitativa 10, elas, apesar do que dizem os seus partidários, acabaram por confirmar exatamente o contrário - que essa diferença não pode ser explicada senão em termos qualitativos. Da mesma forma as comparações entre a vida social dos homens e, por exemplo, das abelhas e das formigas, vida "social" essa puramente instintiva, que se conserva idêntica ao longo de milhões de anos, ao contrário da vida social humana, que se transforma pela ação dos próprios homens em um período relativamente curto.

São exatamente essas características, sempre consideradas como distintivas do homem, que são afetadas na doença mental. O que não quer dizer, em absoluto, que outras especialidades médicas sejam menos "humanas" do que a psiquiatria, pois ao médico, qualquer que seja sua especialidade, não é dado relacionar-se ou ter como objeto apenas a doença ou determinada parte do organismo humano – ele relaciona-se com a pessoa do paciente, com o ser humano por inteiro, ainda que não tenha consciência disso ou ainda que determinadas tendências mais econômicas e ideológicas do que médicas insistam em fragmentar o ser humano.

Porém, a doença mental – exatamente por ser "mental" – leva esse relacionamento a um outro nível de radicalidade.

Mas aqui temos um desdobramento aparentemente inesperado: ao mesmo tempo em que são as funções distintivas do que é humano que são atingidas nas doenças mentais, estas são próprias da espécie humana. Ou seja, ao mesmo tempo que a doença mental representa uma desumanização do indivíduo, ela é, ao mesmo tempo a marca de sua humanidade, pois não existe fora da nossa espécie. A doença mental "desumaniza" o paciente exatamente porque ele é humano. Ou, dito de outra forma, a desumanização acarretada pela doença mental é um sinal candente da humanidade do paciente. Certamente podem-se fabricar neuroses em animais num laboratório. Também, a grosso modo, podem-se encontrar animais domésticos cujo comportamento sugere alguma doença mental. Porém, animais de laboratório ou animais domésticos são seres submetidos à influência humana – e é essa influência que entra em crise em tais comportamentos "patológicos" desses animais. Contraposto a isso, não se pode falar em uma perturbação psiquiátrica em animais selvagens, pois a norma em relação a qual estabelecemos o diagnóstico de uma perturbação psiquiátrica é necessariamente uma norma humana.

Portanto, poucas coisas foram mais ridículas do que a negação da doença mental sob o pretexto de "humanizar" o paciente psiquiátrico. O caminho da psiquiatria foi precisamente – como observou Freud no obituário de Charcot – o de tirá-lo da órbita da delinqüência, da transgressão moral, religiosa ou jurídica, para considerá-lo um doente, isto é, um ser humano que sofre.

É a isso que chamamos de problema ético fundamental da psiquiatria: a consideração do paciente psiquiátrico como ser humano. Somente visto em sua humanidade, compreendido neste termo a cultura e a sociedade, ele é, também, paciente. Uma doença cardíaca ou renal pode existir praticamente sem alterações em seres humanos de diversas épocas e culturas. Uma doença psiquiátrica, não. Toda a especialidade psiquiátrica foi construída em resposta a esse problema que, como dissemos, só é médico na medida em que é ético, isto é, na medida em que diz respeito aos valores humanos, que são também os valores morais – positivos ou negativos - da sociedade. Em suma, não existe psiquiatria sem a consideração do conflito entre o bem e o mal, pois é este que torna a ética necessária à comunidade humana. Por mais que as formigas ou as abelhas tenham vida "social", não é possível, em relação a esses insetos, falar em "bem" ou "mal", muito menos na contradição entre um e outro. Falta a esses animais, ao contrário dos seres humanos, a consciência do bem e do mal.

Dessa forma, a própria doença mental tem em si mesma, diferente de outras categorias patológicas, um aspecto ético que lhe é inerente: ela é, ainda que esse aspecto não seja exclusivo, a manifestação de uma crise de valores, expressa nas perturbações do pensamento, da percepção e da conduta – isto é, ela é social e culturalmente discrepante, ao mesmo tempo em que adquire sua forma em função da sociedade e da cultura em que está localizada. Naturalmente, "doença mental" é um conceito, uma abstração, uma generalidade: o que existe na realidade, o que é concreto, são os doentes mentais, com suas manifestações particulares.

Mas o que caminhamos para compreender é que nem sempre os valores dominantes numa sociedade são o lado "bom" da ética. Não estamos pregando aqui, como se fez na década de 60, que essa manifestação de uma crise de valores tem potencial revolucionário. Muito pelo contrário, o doente mental é mais vítima dessa crise do que agente dela.

Não existe manifestação de doença mental que não seja mediada pela cultura, isto é, pela vida social do homem. Há muito os psiquiatras falam em "patoplastia": a forma sob a qual se apresenta a doença mental está muito longe de ser a mesma em todos os pacientes e, muito menos, em todas as épocas e sociedades.

Mas aqui chegamos ao que torna o problema ético tão atual para a psiquiatria. Ainda que ele seja inseparável dela, isto é, ainda que ele seja fundamental para a psiquiatria, isso é insuficiente para a abordagem do momento atual, pois esse problema fundamental não se apresenta de forma igual em todos os momentos. O fato é que vivemos hoje uma crise de valores que ultrapassa, de muito, o plano individual. Seria completamente absurdo que essa crise se refletisse somente nos pacientes e em sua doença, e não na própria psiquiatria.

Descobriu-se, de uns tempos para cá, uma "nova" maneira de desumanizar os pacientes psiquiátricos: reduzi-los a uma lista de sintomas. A tentativa mais desabrida – e influente – nessa direção foi efetuada pelos manuais da American Psychiatric Association, em especial a última revisão do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, a quarta (DSM-IV). No cortejo da DSM-IV está a tendência a eliminar a anamnese na entrevista psiquiátrica e substituí-la pela resposta a questionários padronizados. Se o diagnóstico é não mais obtido pela compreensão humana mas pela presença ou não de uma série de sintomas catalogados numa lista construída estatisticamente, porque se perderia tempo com a compreensão do fenômeno? Naturalmente, a compreensão implica em elementos subjetivos e, segundo um certo neopositivismo muito em moda, o que é subjetivo não pode ser "científico". O único problema é que não existe relação humana que não seja "subjetiva", uma vez que implica no contato entre, pelo menos, dois sujeitos.

Em suma, trata-se de uma tentativa aberta de eliminar a subjetividade do campo da psiquiatria. No entanto, é a abordagem da subjetividade que fornece à psiquiatria a sua originalidade. Nunca se contestou seriamente a existência de base orgânica nas doenças mentais. Ela foi admitida por todos os autores dignos de algum respeito – inclusive, reiteradamente, por Freud. Sem isso a psiquiatria deixaria qualquer pretensão científica e seria relegada ao misticismo. Mas é evidente que as manifestações psíquicas e psicopatológicas não podem ser reduzidas simplesmente à sua base orgânica, sob pena de tornar desnecessária a própria existência da psiquiatria – a rigor, a própria existência do humano, pois se trata de desprezar o que é mais próprio do ser humano: a sua subjetividade, a sua psicologia, a sua consciência.

No passado, zombou-se de Kleist e seu localizacionismo cerebral, apelidando a sua doutrina de "mitologia cerebral". Pois vivemos um período onde há uma tentativa de impor uma mitologia cerebral muito mais estreita, pobre e ridícula do que a de Kleist, psiquiatra, aliás, de grandes contribuições. O resultado é que no intento de banir a subjetividade pela porta da frente, contrabandearam-na pela janela: há algo mais subjetivo do que os mais de 300 "transtornos" psiquiátricos arrolados pela DSM-IV? Brevemente, como observou um autor, o mundo será transformado numa imensa Itaguaí, a cidade em que Machado situou o seu "O Alienista", e cada cidadão terá o seu exclusivo e personalizado diagnóstico...

Muito sintomática é a abolição, nos DSMs, logo imitados pela CID-10, da palavra doença, substituída por transtorno (em inglês, disorder). Uma disorder ou transtorno somente existe com referência a uma determinada ordem preexistente. Ainda que o sentido em inglês não seja exatamente o mesmo do português, nunca ficou tão claro o conteúdo puramente ideológico de um conceito em psiquiatria quanto nesse, de disorder.

Naturalmente, essa tendência a superficializar, fragmentar e desconsiderar o ser humano está em perfeita consonância com o obscurantismo econômico – o predomínio da especulação financeira desarvorada sobre as necessidades humanas – que, dependendo do autor, é chamado de "neoliberalismo’, "globalização" ou outro apelido qualquer, assim como em completa sintonia com os interesses da indústria farmacêutica e das empresas de "seguro-saúde".

Não por acaso, Aristóteles inicia sua "Ética a Nicômano" com considerações sobre a política. Pois é impossível separar a sociedade e sua ética do poder político que predomina sobre ela. Assim, a doença psiquiátrica não existe num vácuo, não é algo abstrato e etéreo. Surge e existe num determinado quadro – no caso atual, num quadro de confusão ética e de inversão de valores, para usar uma expressão do nosso Rui Barbosa referindo-se à decadente República Velha.

São em momentos assim que é mais difícil conservar a lucidez. Nas palavras de um colega: "... os sectários tendem sempre a tentar criar uma realidade à parte, delirante, sem pacientes de verdade, mas apenas com as fantasias construídas e trocadas entre eles mesmos. Feliz ou infelizmente para todos nós, os seus pacientes imaginários habitam apenas os papers e livros que não se cansam de escrever em seus respectivos jargões11". Com efeito.

É possível que algum colega de boa fé, diante do que escrevemos, tenha uma sensação de espanto: o que têm essas questões a ver com a ética? Infelizmente ou felizmente, têm tudo. Trata-se de que relacionamento devemos manter com os nossos pacientes e mais – com os seres humanos em geral. Em psiquiatria, assim como em medicina, não existe clínica, diagnóstico ou tratamento fora desse relacionamento. No entanto, o que é válido para a medicina em geral é absolutamente premente para a psiquiatria. Não por acaso, os problemas que mencionamos têm a tendência a acabar com a clínica psiquiátrica e substituí-la por uma mitológica "neurociência", onde achados que são válidos e importantes num determinado campo – o da exploração cerebral – são extrapolados, sem mediação, como se fosse possível reduzir, por exemplo, um paciente deprimido aos distúrbios neuronais que são a base orgânica da depressão. Citamos esse exemplo específico porque ele é mais do que esclarecedor: aboliu-se, na prática, a distinção entre depressões "reativas" e depressões "endógenas". Assim, as taxas de incidência de depressão patológica passaram de 5 ou 6% para 18 ou 20% - ou mais. Qual o benefício que isso trouxe aos nossos pacientes? Sem dúvida, o benefício de comprar os "novos" antidepressivos a preços extorsivos, mesmo sem necessidade. Aliás, há não muito tempo, descobriu-se que o laboratório que lançou o primeiro desses antidepressivos milagrosos havia falsificado os resultados de seus testes iniciais, escondendo prudentemente os índices de suicídio ocorridos durante o uso do seu lucrativo fármaco. O outro benefício proporcionado aos pacientes correu por conta de afirmações muito doutas, como a que ouvimos numa conferência em uma das universidades mais prestigiosas do país: "se um paciente fica deprimido depois de ser demitido, não foi a demissão que causou a depressão; ao contrário, foi por ser deprimido que ele não conseguiu manter o emprego". E isso numa época em que o desemprego no país é galopante. Naturalmente, afirmações desse tipo estão exatamente na mesma categoria ideológica daquelas outras segundo a qual é a incapacidade genética do cidadão que causa o seu desemprego, pois não existem desempregados e sim "ininpregáveis". Do ponto de vista psiquiátrico, faltaria apenas demonstrar que há quem fique muito satisfeito com uma demissão...

Uma das características de todos os atentados à ética é a negação da história. Certamente, não se pode introduzir uma inversão de valores sem negar o passado, sem tentar reduzi-lo a tabula rasa. Há muitos anos existia no Rio de Janeiro um cinema cuja especialidade era passar filmes para as pessoas que esperavam a hora de algum compromisso "matarem o tempo". Seu slogan era: "a sessão começa quando você chega". Afastado há anos do Rio, não sei se o cinema – o "Cine-Hora" - ainda existe. Mas sem dúvida existem os adeptos da teoria "cine-hora" da história. Assim, um jovem colega contou-nos sobre um professor que afirmou gloriosamente aos seus alunos que "a psiquiatria se divide em antes e depois do Prozac". Ou seja, antes e depois da função do psiquiatra ser a de prescrever revolucionários antidepressivos para qualquer paciente que se queixe de tristeza.

No entanto, a função do psiquiatra jamais será essa. Ele tem diante de si um ser humano que sofre e terá que ajudá-lo – e não ajudar a si mesmo a mitigar suas próprias angústias prescrevendo um padronizado repertório de medicamentos. Até porque, no Brasil, a maioria de seus pacientes não poderá comprá-los, exceto por breve tempo.

Evidentemente, esse ataque à história da psiquiatria não é gratuito – aliás, de gratuito ele nada tem. Os conceitos – as entidades nosológicas – que se firmaram desde, pelo menos, o século XVIII, e mais solidamente desde Kraeplin, Bleuler, Kretshmer, Freud, Schneider e outros grandes antecessores nossos não foram estabelecidas arbitrariamente. São produto de todo um acúmulo de observações, reflexões e relacionamentos com pacientes. Hoje é raro um psiquiatra que tenha lido Kraeplin, até porque as traduções – desse autor - do alemão para outras línguas são mais raras ainda. No entanto, a obra de Kraeplin não é uma taxionomia abstrata e fantasista, mas uma série de estudo de casos, isto é, de pacientes específicos, de seres humanos concretos e particulares.

Problemas como o da distinção entre depressões "reativas" e "psicóticas" foram formulados com base nessa compreensão humana do paciente a que nos referimos – e por isso conservam plena validade ainda no momento atual. De que nos serve jogar pela janela toda essa história, isto é, todo o conhecimento acumulado de séculos? É interessante e muito ilustrativo observar como certos interesses – vale dizer, os do chamado "mercado", isto é, das seguradoras de saúde e da indústria farmacêutica – não conseguem conviver com a história da psiquiatria. O que é muito elogioso para a especialidade psiquiátrica, mas demanda explicação.

O fato é que nem tudo pode ser reduzido a um valor de mercado. Mesmo numa sociedade dominada pelo chamado mercado, há mais coisas entre o céu e a terra do que as mercadorias e os valores de mercado. A vida não é uma mercadoria e quando se torna, deixa de ser vida – por isso há tantas mortes toda vez que se tenta reduzi-la a uma mercadoria. A consciência também não pode ser uma mercadoria, assim como a saúde dos seres humanos não é uma mercadoria. Da mesma forma que a vida, elas deixam de ser consciência e saúde quando tentam torná-las mercadoria. Também a medicina e a psiquiatria deixam de ser medicina e psiquiatria assim que tentam subjugá-la aos valores de mercado.

No entanto, nada mais infenso à sua redução a um valor mercantil do que a moral, isto é, a ética. Alguém12 já observou que numa sociedade mercantil até coisas – isto é – valores imateriais tornam-se mercadorias, como por exemplo a honra de certos políticos e jornalistas. Somente que, observamos nós, também a honra deixa de ser honra, a moral e a ética deixam de ser moral e ética para ser o seu oposto.

É esse o problema ético atual da psiquiatria. Sem dúvida não é só a psiquiatria que está diante desse dilema, ou melhor, dessa ameaça. De certa forma, não há campo da atividade humana em todo o mundo que não esteja diante desse dilema e dessa ameaça. O que só demonstra como a psiquiatria está integrada às demais atividades humanas, o que não é pouca coisa – pois nem sempre foi assim.

Deixemos claro que não estamos fazendo – e nem nos cabe aqui fazer - uma condenação geral do mercado. Desde que circunscrito à esfera que lhe é própria, nada teríamos a objetar, pelo menos no estágio atual da Humanidade. O resto, o futuro dirá. Não é disso – dessa condenação – que falamos, mas da tentativa de submeter os valores humanos ao seu império, o que é uma questão totalmente diferente. O homem não é um valor de troca – e a psiquiatria lida, sobretudo, com aquilo que é mais distintivo da espécie humana.

Não por acaso, essa tentativa de desumanização da psiquiatria é acompanhada, em uma parte dos psiquiatras, por um exercício a que não nos ocorre chamar por outro nome que não seja autoflagelação. Em suma, responsabilidades e culpas – passadas e presentes - que não são nossas freqüentemente são exorcizadas como se o fossem. Na verdade, tal exercício é induzido por uma constante e intensa orquestração de mídia. O leitmotiv dessa campanha tem sido o tema da "desospitalização" dos pacientes psiquiátricos.

É evidente que a socialização dos pacientes é chave em seu tratamento e, por outro lado, corresponde a um avanço na superação dos preconceitos sociais que sempre cercaram os doentes mentais e a doença mental. Mas os grandes hospitais psiquiátricos do passado não existiram devido a uma maquinação maquiavélica dos psiquiatras ou a um conluio destes com um poder igualmente malévolo. Existiram porque, em certa época, não havia tratamento que permitisse outra alternativa. Foi a partir da introdução da clorpromazina, primeiro antipsicótico, em 1952, por Delay e Deniker, que se tornou possível a desospitalização crescente dos pacientes psiquiátricos – desospitalização que efetivamente ocorreu, e em massa, com o fim das "colônias" de "alienados". Portanto, foi um avanço na e da psiquiatria que criou condições para a desospitalização – e não um avanço contra ela ou apesar dela.

Outra vez poderia se colocar a questão: o que tem isso a ver com ética? A questão é que a campanha midiática pela desospitalização esconde, sob uma capa aparentemente "humanista", a cruzada pelo corte de verbas públicas na área de saúde mental. Uma verdadeira desospitalização implica em mais verbas para o setor, e não menos verbas – pois é necessário substituir o atendimento puramente hospitalar por atendimento em instituições de outro tipo: ambulatórios, hospitais-dia, etc. Mas não há notícias de grandes – na verdade, nem de pequenos – investimentos que são necessários para basear o sistema de saúde, na área de saúde mental, em, se assim se pode dizer, novas instituições, ainda que existam várias e meritórias delas espalhadas pelo território nacional. Mas estamos falando de investimentos correspondentes ao conjunto do sistema e não apenas das iniciativas localizadas, que são verdadeiramente heróicas. A "desospitalização" que ocupa espaço na mídia, ao contrário, esconde o lançamento de contingentes de pacientes psiquiátricos literalmente nas ruas e sem tratamento. As conseqüências, aliás, já começaram a se fazer sentir.

A esse propósito, é evidente que uma parcela de pacientes não pode prescindir, ainda que – a maioria - por menos tempo do que antes, de internamento psiquiátrico.

Assim, o fechamento puro e simples de todos os hospitais psiquiátricos seria um retrocesso gigantesco. O "argumento" que agita diante da opinião pública as más condições em que eles se encontram para supostamente justificar esse fechamento, simplesmente não é um argumento: o que impede que eles sejam limpos e ofereçam tratamento decente, senão, exatamente, a falta de recursos e de fiscalização por parte do poder público? Não entramos, aqui, na questão da propriedade e gestão – pública ou privada – desses hospitais, pois isso nos levaria muito longe do tema que nos ocupa.

O que importa é que temos aqui um daqueles casos – não muito raros na história e sobretudo nos dias atuais – em que o atentado à ética é disfarçado com roupagens éticas: colocar os pacientes na rua sob um pretexto supostamente humanista nada tem a ver com a ética, nem com humanismo, nem com a psiquiatria. E nada tem de "moderno", até porque se trata de uma regressão a alguns séculos atrás.

Compactuar com isso seria invertermos todos os princípios em que sempre nos baseamos em nossa prática e, inclusive, no corpo teórico que foi constituído desde o século XVIII. Para nosso orgulho, muito poucos psiquiatras têm se enganado a esse respeito.

Resta dizer que esses desafios éticos que se colocam diante de nós são uma prova da vitalidade de nossa atividade. Caso contrário, nem ao menos se colocariam. Nem ao menos poderiam ser formulados.

A verdade é que essa maré que descrevemos de forma muito sucinta está perto do esgotamento, até porque é de uma pobreza de pensamento e de ação que chega a ser deprimente. Simplesmente, ela não corresponde às necessidades humanas – ao contrário, opõe-se a elas - e por isso está destinada à débâcle.

Evidentemente, não estamos postulando que a superação desses problemas seja apenas função da psiquiatria e dos psiquiatras, nem mesmo apenas de todos os que trabalham na área de saúde mental. Assim como não existe uma ética especificamente psiquiátrica, que diga respeito somente ao nosso campo, a superação dos problemas éticos e o enfrentamento dos desafios éticos na psiquiatria não é uma questão que diga respeito apenas aos psiquiatras.

Há quase um século, diante do morticínio que se chamou I Guerra Mundial, Lloyd George pronunciou sua famosa frase, segundo a qual "a guerra é algo muito importante para ser assunto somente dos generais". O mesmo pode-se dizer da psiquiatria e principalmente dos problemas éticos que são inseparáveis dela: são muito importantes para que sejam problemas somente dos psiquiatras. São problemas de toda a sociedade. Mas é evidente que cabe aos profissionais uma maior consciência sobre eles, não só enquanto profissionais, mas enquanto cidadãos.

Nesse sentido, assim como a atitude ética é inseparável da atitude psiquiátrica, o cidadão é inseparável do psiquiatra. Pinel não foi apenas o médico notável, mas também o revolucionário francês. Sem esta última condição, ele não poderia encarnar a primeira, nem estabelecer a psiquiatria como filha legítima da Revolução Francesa. Até porque, como quebrar as correntes de Bicêtre e Salpêtrière, se Pinel ainda vivesse no antigo regime feudal?

Da mesma forma, no Terceiro Congresso Internacional de Psiquiatria, realizado na Bélgica em 1913, um dos fundadores da psiquiatria brasileira, Juliano Moreira, se contrapôs às concepções racistas que propugnavam a existência de doenças mentais especificamente tropicais – ou, para ser preciso, "africanas" – expressas por Régis. Em sua comunicação, Juliano Moreira ressaltou: "se nas colônias tropicais existe alguma doença mental autônoma, que mereça as denominações referidas [por Régis], vem isso demonstrar que o fato é mais inerente à condição de colônia dessas regiões que à sua situação nos trópicos, visto que no Brasil nada temos de parecido. Faremos pois muito bem em nos vangloriarmos de termos conquistado nossa independência13".

Não há conflito entre ciência e ética, exceto quando a ciência deixa de ser ciência – ou quando a ética deixa de ser ética.

 

1 Aristóteles Ética A Nicômano. In: Aristóteles. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996: 124.

2 Apud Andrade, Antonio Ruiz Taviel e Muñoz, J. de Jesús Almanza De psico y farmacoterapia. Colóquio "LA ENFERMEDAD Y EL ENFERMO", Simpósio da Seção de Psicoterapia da APAL, XIX Congresso da APAL. Mar del Plata, Argentina, Abril de 1997.

3 Freud, Sigmund. Charcot. Ed. St. Bras., vol. III. Rio: Imago, 1980.

4 O mais famoso representante dessa tendência revisionista é, naturalmente, Michel Foucault, mas está longe de ser o único. Thomas S. Szasz é, aliás, muito mais sincero ao dispensar os ornamentos puramente retóricos com que Foucault escamoteia sua posição regressiva. Ver em especial O Mito da Doença Mental, onde Szasz propõe riscar Charcot e Freud da história e voltar a considerar os histéricos como meros simuladores.

5 Bastos, Claudio Lyra, Manual do Exame Psíquico, 2ª edição. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.

6 Aristóteles, op. cit., II:1.

7 O melhor relato dessa monstruosidade ainda é o de William L. Shirer, The Rise and Fall of the Third Reich. NY: 1960, publicado em português pela Civilização Brasileira em 1962/1963.

8 Cf. Mondolfo, Rodolfo, O Homem na Cultura Antiga – A compreensão do sujeito humano na cultura antiga, trad. de Luiz Aparecido Caruso, 1ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1968. Mondolfo não faz explicitamente essa afirmação, mas ela é evidente e está implícita na sua análise.

9 O primeiro a notá-lo foi Marx, no primeiro volume de O Capital.

10 Ver, por exemplo, o quinto artigo de Gould, Stephen Jay, Darwin e os Grandes Enigmas da Vida, trad. de Maria Elizabeth Martinez, 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Apesar desse e de alguns outros problemas, trata-se de um livro excelente.

11 Bastos, Claudio Lyra, op. cit., pág. 14.

12 Marx, op. cit.

13 Dalgalarrondo, Paulo, Civilização e Loucura s/e, s/d.


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