Volume 6 - 2001
Editor: Giovanni Torello

 

Agosto de 2001 - Vol.6 - Nº 8

História da Psiquiatria

Voando sobre a Psiquiatria Brasileira:
Influência da Inquisição Espanhola 

Dr. Walmor J. Piccinini

Introdução

Nosso conhecimento da prática da medicina no Brasil colonial é muito reduzido e isso fica bastante evidente na reduzida bibliografia existente. Os historiadores ficam limitados, pela ausência de registros oficiais a fazer referências vagas à uma medicina indígena, baseada em ervas e benzeduras em contraponto a uma medicina dita científica baseada em sangrias, poções e religiosidade.

Portugal, por decreto do Rei D.Afonso V , em 25 de outubro de 1448 regulamentou o exercício da medicina e, ao mesmo tempo, criou a autoridade fiscalizadora. Essa lei, chamada "Regimento do Cirurgião-Mor dos Exércitos, continuava em vigor na época do descobrimento do Brasil e início da nossa colonização.

Na esquadra de Cabral veio o Mestre João Farras como o Físico Mor e astrônomo. (1) O Mestre João ou Johanes foi desta forma o primeiro Cultor da Ciência hipocrática a pisar solo brasileiro. Provavelmente o Mestre João era um converso, isto é um judeu forçado a conversão ao catolicismo como o eram a maioria dos médicos da península ibérica.

No recente Congresso Paulista de Psiquiatria o Dr. Gabriel R. Figueiredo apresentou interessante trabalho sobre a atuação da Inquisição no Brasil a propósito do caso de Ana Roiz, uma judia convertida que padeceu nas mãos dos inquisidores . Instigado pelas suas colocações resolvi investigar alguns pontos da Inquisição na península ibérica.

A História

No final do século XV a península ibérica estava dividida entre três monarquias: Portugal, Castela e Aragão ( que compreendia Valência, Aragão e a Catalunha).

Portugal dominava a costa atlântica da península e daí sob influência do príncipe Henrique (1394-1460), o Navegador, os portugueses começaram as viagens pioneiras que redundaram em colônias na Ásia e na América. Castela era a menor, mas a mais populosa e mais armada. Aragão dominava o que hoje é o norte da Espanha. Em primeiro de outubro de 1469 o príncipe Fernando de Aragão casou com a princesa Isabel de Castela e dessa união criaram-se condições para uma época de glórias e poderio para a Espanha. Segundo alguns historiadores, conviviam na península três comunidades rivais, com diferenças religiosas e com uma convivência razoavelmente pacífica o que acabou no final do século XV "não era mais possível aos cristãos, mouros e judeus viverem sob o mesmo teto, porque os cristãos julgavam-se suficientemente fortes para romperem o costume tradicional da Espanha, segundo o qual a população cristã fazia a guerra e cultivava o solo, os mouros construíam as casas e os judeus presidiam os empreendimentos como agentes fiscais e técnicos hábeis". A maioria dos médicos, senão a totalidade era judia.

Em dois de janeiro de 1492 os reis católicos entram na cidade de Granada, último bastião mouro na península ibérica e com isso o precário equilíbrio de fôrças entre as três comunidades é rompido. Em 31 de março de 1492, os reis católicos, decretaram a expulsão de todos judeus da Espanha. Nesse mesmo dia Cristóvão Colombo ultimava seus preparativos para a viagem a América.

Como os judeus estavam bem integrados, inclusive por laços de sangue e gozavam de boa posição nas comunidades, a aristocracia dominante passou a utilizar um decreto papal de 1478 que criou os tribunais da Inquisição. Os primeiros inquisidores foram nomeados em 1480. ""A Inquisição, geralmente apresentada sob forma de intolerância religiosa, nada mais era que uma arma de classes, usada para impor a todas as comunidades da península a ideologia de uma única classe: a aristocracia dos leigos e dos eclesiásticos. Suas crenças e seus ideais seriam, dali por diante, a norma de vida em Castela; na melhor feição, essa atitude floresceu e assumiu heróica espiritualidade; na pior, degenerou no mais intransigente de todos os racismos; o racismo de uma única classe. Henry Kamen, A Inquisição na Espanha. Ed. Civilização Brasileira,1966).

A Inquisição foi o nome dado a jurisdição eclesiástica que lida com a detecção e punição dos hereges ou qualquer pessoa culpada por qualquer ofensa contra a ortodoxia católica. Já no ano de 385 DC ocorreram casos de condenação a morte de hereges. Nos séculos VI a IX há raros registros de condenações. Nos séculos X a XII ocorreram numerosas execuções de hereges, seja pelo fogo e o estrangulamento, tanto na França, como na Itália e Inglaterra. Na Espanha, onde ela reapareceu no final do século XV, seus objetivos claros eram a "limpieza" racial e o roubo das propriedades dos judeus. Por trás da Inquisição existia o antisemitismo, a ganância, o desejo de se apossar de bens do que a devoção. Os lucros eram divididos entre o clero e aristocracia. Nos vários textos psiquiátrico é citado o "Malleus Maleficarum" o Martelo das Bruxas livro de dois monges beneditinos que permitiriam identificar o possuído pelo demônio e levá-lo a fogueira. Deduz-se daí que muitos doentes mentais teriam sido condenados à fogueira por seus sintomas. Podem ter ocorrido alguns casos, mas a maioria era de pessoas sadias, obrigadas a confessar sob violenta tortura e privações. É fácil compreender que muitos acabavam confessando para se livrar da tortura.

A História se repete. Da mesma forma que na Alemanha pré-nazista os judeus estavam integrados na vida econômica, científica e cultural da Alemanha. Na Espanha, a partir do século XIII os judeus tinham um ambiente favorável. Quase todos os médicos eram judeus ou conversos "não havia um nobre ou prelado, no país, que não mantivesse um médico judeu. (O médico da família real foi acusado de envenenar o infante Dom Juan, filho de Fernando e Isabel e este fato foi utilizado com0o justificativa para a expulsão dos judeus em 1492)

Os números são díspares, fala-se de 165 a 400 mil os expulsos e uns 50 mil conversos teriam permanecido. Contra os que ficaram foi dirigida a Inquisição.

A Inquisição Portuguesa segundo Antônio José Saraiva ( Lisboa 1956) "O rei abandona o seu papel tradicional de árbitro entre as diversas forças nacionais. O Estado torna-se absorvente, destrói as minorias, sejam elas os lavradores, os vilãos e livres, os hebreus ou os mouriscos, impões uma vigorosa disciplina ideológica, esmagando todas as dissidências e oposições e regressando à ideologia tradicional da grande época do feudalismo".

A Inquisição foi exportada para a América espanhola. O Arcebispo de Cuba Juan Quevedo foi nomeado Inquisidor Geral em 1546. Segue-se Lima 1570, depois na cidade do México em 1571 e em Cartagena das Índias em 1610. É surpreendente que ao mesmo tempo tenham criado universidades. Em 1571 foi fundada a Universidade de San Marcos de Lima e em 1580 a Universidade do México.

No Brasil a Inquisição chegou ao país em 1591 sob a forma de visitação e nunca se instalou formalmente, o primeiro visitador da Santa Sé foi o desembargador Heitor Furtado Mendonça. Na Bahia, em dois anos houve 133 culpas confessadas ou denunciadas; 29 blasfêmias, 19 sodomias e 4 pactos com o diabo. O objetivo era a caça aos conversos ou cristãos novos. Em 1592 o maior crime que se podia cometer no brasil seria praticado por aquele que aos sábados ousasse trajar "o melhor vestido que tinha".

Os jesuítas que chegaram ao Brasil com Tomé de Souza em 1549 e daqui sairiam por expulsão em 1759 ( M.de Pombal), segundo a opinião expressa pelo Padre Nóbrega, os nativos eram pecadores inveterados. "Cometiam todos os pecados, não obedeciam um só mandamento de Deus e muito menos da Igreja. A crença era de que "não existia pecado no sul do Equador.

Cuidados com os doentes mentais

A Espanha, por ocasião dos descobrimentos, tinha certa tradição no cuidado com os doentes mentais. O primeiro hospital que se tem registro foi construído em Valência no ano de 1409.

O primeiro hospital psiquiátrico da América foi o Hospício de San Hipólito inaugurado na cidade do México em 1580.

Em 1687 foi fundado o Hospital Real del Divino Salvador pelo carpinteiro José Sayego e sua mulher. Também no México, em 1747, surgiu a primeira sociedade de ajuda ao doente mental sob o nome de Real Congregación de Nuestra Señora de las Dolores y Socorro.

O Hospital da Santíssima trindade ( 1689-1905) foi criado por sacerdotes e dedicava-se ao cuidado de idosos e doentes mentais. Toda esta estrutura deu aos mexicanos base para assistência ao doente mental muito superior aos demais países da América Latina.

Nos demais países os doentes mentais eram recolhidos em celas especiais dos hospitais gerais ( as loquerias), ou em cárceres públicos ou privados aonde eram submetidos ao chicote, alguns acorrentados e sob banhos gelados. Os doentes mentais pacíficos andavam soltos pelas ruas, constituindo-se em objeto de medo e de escárnio para a população.

Alguns hospitais coloniais que tinham "loquerias"

Lima, Peru : Santa Ana e San Andrés

Buenos Aires: Hospital San Martin

Rio de Janeiro: Santa Casa de Misericórdia

Bogotá: Hospital San Juan de Diós

Montevidéo: Hospital Geral de Montevidéo

Uma das explicações para o pouco desenvolvimento dos cuidados ao doente mental no novo mundo era o fato de que na maior parte, a saúde mental e moral da população estava nas mãos da inquisição. O panorama muda a partir de 1800 com o processo de libertação do continente sul americano.

Os médicos judeus ou marranos

O termo marrano se refere aquela pessoa que professa secretamente o judaísmo e estes eram os visados pela Inquisição. Em 1549 o governador Geral Tomé de Souza trouxe na sua comitiva seis jesuítas chefiados por Manuel da Nóbrega. Eram homens cultos, abnegados e que viriam a se tornar um professor, um médico, um cirurgião-barbeiro, um parteiro, um farmacêutico. O Padre Manuel da Nóbrega foi mais tarde substituído pelo Padre Inácio de Tolosa que era um cristão novo. Os jesuítas eram acusados de estarem infiltrados por marranos e sofreram perseguições por este motivo.

Foram duas as levas de judeus conversos que vieram para o Brasil no período colonial. Os primeiros chegaram acompanhando os colonizadores, a começar com Tomé de Souza. A outra leva de cristãos novos veio incorporada aos invasores holandeses, com Maurício de Nassau. Recife seria sede da primeira sinagoga da América. Com o afastamento de Nassau, 24 judeus marranos do Recife foram para Nova York e lá iniciaram uma nova vida. Na Revista Morashá, abril de 2001 há referência há um trabalho de doutorado de Francisco Moreno de Carvalho sobre o primeiro estudo médico sobre doenças e remédios das terras brasileiras - O Tratado Médico dirigido ao Brasil escrito por Zacuto Lusitano (1575 -1642), redigido em Amsterdã e endereçado ao seu filho Yaqov Lusitano que vivia no Recife como negociante.

O primeiro médico diplomado que pisou o chão da Bahia de Todos os Santos foi Jorge Valadares, judeu converso ou cristão novo ou judeu marrano. Ele acompanhava o Primeiro Governador Geral (1549-1553) e ocupou o cargo de Físico Mor. Seu sucessor foi outro Jorge, O Jorge Fernandes que também era judeu e ocupou o cargo de Físico-Mor por três anos. ( Vi citações da tese da Professora Bella Herson: Cristãos-novos e seus descendentes na medicina brasileira (1500-1800), infelizmente não tive acesso a mesma).

Um mito que se criou em torno da invasão holandesa seria de que o Brasil poderia ter sido brindado com um futuro melhor caso ela frutificasse ao sul do Equador. Não há nenhum indício que favoreça esta idéia. A Cia das Índias Ocidentais que financiava esta expedição era um empresa que visava apenas o lucro e não o processo civilizatório. Maurício de Nassau foi uma estrela isolada na companhia e demitiu-se por não ter suas idéias aceitas. Os judeus marranos sofriam os mesmos percalços que os nativos e levavam uma vida modesta. Só com a vinda da família real as coisas melhoraram.


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