Volume 6 - 2001
Editor: Giovanni Torello

 

Janeiro de 2001 - Vol.6 - Nº 1

Psicanálise em Debate

"A PROVA"

Monografia sobre o filme "Proof ", de 1991, dirigido por Jocelyn Moorhouse

Claudiney Tadeu Ruza
João Paulo Consentino Solano
Rosely Silva

Trabalho de aproveitamento do curso de Formação em Psicopatologia e Psicoterapia Psicanalítica da
Clínica de Psicanálise Roberto Azevedo - São Paulo, 2000

 

Introdução

Partindo-se da premissa que essencialmente todas as manifestações humanas passam pelo Inconsciente, e sendo a Psicanálise a ciência do Inconsciente, a buscar leituras das manifestações do mesmo, optamos por levantar alguns aspectos psicanalíticos do filme "A Prova" (Proof – 1991), até onde nossos conhecimentos desta ciência nos permitam. Há que se levar em consideração, no entanto, que sendo o Inconsciente inesgotável, análises complementares e mesmo em outras direções, poder-se-ão um dia tornar cabíveis, a respeito do mesmo material.

Quanto ao fato da inesgotabilidade do Inconsciente e da possibilidade de várias análises, isto nos ficou patente quando da discussão em grupo dos aspectos que cada um de nós – três pessoas –, viam do filme. Alguns se igualavam, alguns se complementavam e outros aparentemente se excluíam apesar de condizerem com facetas do filme, sem nunca ficar evidente que estivessem errôneos; todos eram pertinentes e se justificavam.

Esta análise será, então, uma reunião das principais teses levantadas pelo grupo, sem a pretensão de se esgotar o assunto.

O enredo mostra o drama vivido pelos três personagens e o relacionamento mantido por eles foi tomado como base para que explorássemos principalmente alguns conceitos de Freud, referentes a sua primeira tópica, que concebe três sistemas: Inconsciente, Pré-consciente e Consciente e suas características metapsicológicas (econômicas, dinâmicas e tópicas).

Tomando o personagem Martin como foco principal, observamos o desenvolver do filme mostrando Martin partindo de uma fixação na organização narcísica e se desenvolvendo até chegar a uma relação objetal mais plena.

Sinopse do Filme

 

Ficha Técnica: "Proof", estrelando Hugo Weaving, Genevieve Picot, Russell Crowe, desenhos de produção por Patrick Reardon, edição Ken Sallows, músicas Not Drowing, Waving, diretor de fotografia Martin McGrath, produção Lynda House, escrito e dirigido por Jocelyn Moorhouse. Produção australiana de 1991.

Dá-se na cena inicial o primeiro encontro entre Martin e Andy – um encontro não verbal, apenas visual, e visual apenas para Andy: Martin vem apressadamente por um beco e chama a atenção de Andy ao chutar o abrigo de um gato (Feioso) que, ao que parece, era de Andy conhecido por freqüentar os fundos do restaurante em que este trabalhava.

Em seguida, algumas cenas que mostram o cotidiano da relação entre Martin e sua faxineira Célia são entremeadas a cenas em flash-back em que Martin se recorda de sua relação com sua mãe, antes da morte precoce desta, ainda na infância de Martin. Ao longo de todo o filme, em vários flash-backs, Martin se lembrará de como, com sua mãe, diante de uma janela de sua casa, costumava pedir a esta que lhe descrevesse a paisagem, e de como lhe ficara tão marcada uma ocasião em que desconfiou que sua mãe lhe poderia estar mentindo – desconfiança esta que o levaria a fotografar a paisagem após a morte da mãe, e que guardaria até a vida adulta.

Segue uma seqüência de cenas que mostram a vinculação progressiva entre Martin e Andy: passa-se ao contato verbal, Andy avisando a Martin do incidente com o gato, e cobrando-lhe ter matado o mesmo; Martin se propondo a examinar o gato e a levá-lo ao médico, ao constatar que ainda vivia; a cena em que Martin tira fotos de todas as pessoas e animais que aguardavam na sala de espera do veterinário; cenas em que Martin ensina a Andy uma forma concisa de descrever as fotos, e pede ao amigo tais descrições, para, em seguida, etiquetar em braille o conteúdo do que registrou sua câmera; cenas de conversas, em tom mais intimista, entre Martin e Andy, pelas quais se percebe o aumento de confiança que vai aparecendo no vínculo dos dois – ao ponto de Martin confessar ao amigo que gostava de seu jeito: "simples, direto e honesto", e pedir que nunca lhe mentisse, momento este do filme em que talvez nos deixe transparecer a autora que Martin passava a substituir as descrições de suas fotos feitas por Célia (e que um dia foram feitas por sua mãe), pelas descrições desse seu novo amigo, Andy.

Seguem-se cenas que mostram o quanto Célia tentava seduzir Martin, inclusive sexualmente, e o quanto Martin se esquivava, sistemática, defensiva e estrategicamente; e cenas que mostram os modos pervertidos e controladores que marcavam a relação entre Martin e Célia.

A passagem do auto-cine, em que acontece uma briga e Andy apanha no lugar de Martin, e a consecutiva, em que os dois colidem com um carro de polícia e vão para o hospital, parecem-nos mostrar a que ponto crescera a cumplicidade entre os dois amigos; além disto, apresenta-nos, pela primeira vez, um Martin sendo capaz de mentir (para o policial), e de explodir em gargalhadas.

Logo em seguida a Martin ter surpreendido Andy e Célia em sua própria casa, e constatado a mentira do amigo, temos uma cena em que Martin vai ao cemitério onde sua mãe fôra enterrada, e tateia a lápide para certificar-se de que estivesse mesmo ali o nome de sua mãe (esta é a única vez no filme em que é mostrado o nome desta mãe); pergunta ainda a um funcionário local sobre a possibilidade de um caixão ter sido cerrado sem a existência de um corpo.

Seguem-se a aproximação sexual entre Célia e Andy, em defesa da qual Andy acaba mentindo para Martin; e cenas que mostram o quanto Célia se utilizara de sua aproximação sexual com Andy, bem como da mentira deste a Martin, para tentar pôr fim à relação entre os dois.

Ao final, temos a cena em que Andy fala abertamente a Martin sobre a mentira que lhe havia contado, cena esta que nos exibe um Martin sendo capaz de aceitar a verdade: a de que Andy, como qualquer pessoa, poderia mentir. Em seguida, Martin pede a Andy que entre em sua casa e lhe descreva a foto, primeira que tirara, aos dez anos, logo após a morte de sua mãe, e que até então guardara em seu cofre – foto que encerrava a dúvida de Martin, sobre se poderia ou não confiar em sua mãe.

Obs.: os autores do presente texto recomendam que, para um melhor aproveitamento da leitura, o filme seja assistido antes de se passar ao próximo item ("Discussão").

Discussão

O enredo do filme gira em torno do tema da "mentira" vivida por Martin – o deficiente visual -, justificando inclusive o nome do filme – A Prova. No decorrer do filme, vemos fragmentos de momentos relembrados por Martin de sua relação com a mãe, evidenciando que Martin não se percebia aceito por ela, o que o fazia insistir em estar sendo enganado; o tempo todo acusa sua mãe de estar mentindo, até mesmo quando ela morre. Lembremo-nos, aqui, de que há uma cena em que Martin confessa que sempre sentira, durante a infância, que sua mãe tinha reservas em aceitá-lo; e de que, quando sua mãe o avisa de que iria morrer, Martin-criança (numa cena de rememorações do Martin-adulto) se revolta e acusa a mãe de estar-lhe mentindo – diz a ela: "você vai é embora, por isto mente que vai morrer; na verdade, você quer é livrar-se de mim". Temos um outro exemplo na cena em que Martin se recorda do dia em que sua mãe havia morrido: a cena mostra Martin-criança batendo sua mão contra o caixão de sua mãe e dizendo: "está oco, está vazio".

Na verdade, pareceu-nos haver nesta obra da sétima arte, uma referência genial – mesmo que não-consciente, por parte da autora – aos estragos que uma relação objetal em duplo-vínculo pode causar a uma personalidade em incipiente formação. Identificamos no filme duas situações que poderíamos aqui chamar de mentiras primordiais, além de outras, que chamaremos de mentiras decorrentes (como as citadas no parágrafo anterior), que exemplificam possíveis conseqüências dinâmico-funcionais advindas de uma circunstância em que um sujeito vai-se inicialmente organizando e, ao mesmo tempo, vê-se forçado a se utilizar de um trânsito persistente em posição esquizo-paranóide.

Pareceu-nos claro que uma das "mentiras primordiais" é encetada pela mãe que não reconhece a deficiência do filho. "Você não poderá usar seus dedos como se fossem olhos", diz a mãe ao Martin-criança, depois de se deixar tocar pelo filho por alguns instantes, nos quais fingia estar dormindo. Afinal, um cego não poderia ver se já estava acordada... No entanto, a conflitiva inconsciente de ter seu corpo explorado pelo filho cego atinge seu ápice (ou quase; quem saberá?) quando a mão do mesmo tange seu seio e esta mãe, desorganizadamente, como pode, defende-se. Ora, se para a mãe era difícil aceitar seu filho, e aceitá-lo como ele era, é natural que Martin passasse a enganar-se também. Já que minha mãe se enganará a si mesma lá, eu me enganarei aqui...

Então, Martin passa também a ter dificuldades de aceitar sua cegueira. Até a vida adulta, entendia poder-se suprir sozinho. Isto fica claro na cena em que diz ao Andy sua razão de fotografar: "Esta fotografia é a prova de que eu estava lá... e senti, ouvi, vivi tudo o

que por você foi visto". É como se Martin, assim, estivesse dizendo: "não fico atrás de ninguém"; ou, "não sou deficiente"; ou, "posso tanto quanto os outros"; ou, "sou aceito por minha mãe". No entanto, Martin sempre dependeu do outro para nomear o mundo a sua volta. Utilizava a fotografia como meio de registrar a realidade que não conseguia ver; a câmera concretizava, através das fotos, as imagens que ele não via e o outro lhes dava nomes, pelas descrições que fazia das cenas fotografadas. Ele sentia cheiros e percebia os mínimos sons dos ambientes, daí os associava às denominações (conceitos e preconceitos) que já possuía para dizer que percebia; por exemplo: a presença de uma mulher elegante, perfumada e de saltos altos; ou de uma sala mal cuidada, com chão tosco e iluminação deficiente (cf. a cena na sala de espera do veterinário).

Mas há outra "mentira primordial", que inclusive ajusta-se ao entendimento dos conflitos e sofrimento vividos pela mãe. Uma mentira que não chegou a ser pronunciada; uma mentira que não se disse. Um dia Martin, na janela, resolveu argüir a mãe sobre este assunto intocado. Disse ele: "Mãe, o homem não está lá hoje, juntando folhas com o ancinho"; ao que lhe respondeu a mãe: "Está sim, meu filho, como nos outros dias"; e Martin retrucou: "Não, mãe, ele não está; eu não o estou escutando hoje". Poderíamos aventar que Martin aqui pergunta a sua mãe sobre a ausência do pai. E podemos entender que Martin aqui reclama de uma outra mentira, que foi a de se omitir a discutir a falta da figura paterna na relação daquela dupla mãe-Martin. Interessante é notar que aqui o Martin, embora criança, convida sua mãe a entrar neste assunto, e a parar de mentir. "Mentira sua, mãe; ele não está lá". Poderíamos trocar: "ele não está aqui". Podemos e devemos supor (enquanto psico-analistas) que Martin, mesmo criança (ou porque criança) estava convidando sua mãe a enxergar que ele (Martin) já estava preparado para ouvir da mãe que "o pai não estava, nem nunca estaria, lá ou aqui". E preparado para escutar, da mãe, suas confissões de mentira. E preparado, ou pelo menos disposto, a oferecer ajuda a esta mãe; não só ajuda, mas também talvez a sua simples presença enquanto sujeito por ela reconhecido. Porém, não foi isto o que aconteceu, e Martin e sua mãe engoliram, de novo, e a seco, uma mentira primordial. No entanto, Martin volta e fotografa aquele cenário visto da janela, após a morte da mãe. E guarda, para toda a vida, a foto que um dia pediria a alguém que lhe descrevesse. Esta foi a primeira foto de Martin.

Quanto às mentiras decorrentes ou derivadas, citar se faz necessário que Martin cresceu fazendo uso hipertrófico de uma defesa do tipo idealização, achando que havia "pessoas que não mentem". E numa cena, chega a pedir a seu novo amigo Andy para que este jamais lhe mentisse.

Por último, mas ainda falando da mentira, não podemos deixar de analisar a cena em que Martin mente ao policial. Precisamente na época em que se firmava a relação de confiança entre Andy e Martin, este se percebe mentindo – ativamente, por iniciativa própria; e, em seguida, ri às gargalhadas do que fez, e de como soube (imaginativa e falicamente) defender seu amigo das penalidades da lei. Martin, pela primeira vez na fita, ri de sua cegueira. Podemos supor aí que, apoiado a seu amigo Andy – que o aceitava – Martin aceita (melhor seria dizermos aceita que aceita) a sua deficiência. E aceita exibir sua capacidade de subverter o desprazer da deficiência em um momento lúdico... e em gozo.

Em vários momentos do filme podemos perceber a dificuldade de Martin se relacionar com objetos. Seu comportamento narcísico se justifica pela percepção que tem de que sua mãe não o aceita como cego, portanto, não o aceita totalmente, não o confirma e, negando-o impede que ele se constitua enquanto sujeito (ego). Como dizem Laplanche e Pontalis: "...Podemos conceber a constituição do ego como unidade psíquica, correlativamente à constituição do esquema corporal. Podemos ainda pensar que tal unidade é precipitada por uma determinada imagem que o sujeito adquire de si mesmo segundo o modelo do outro, e que é precisamente o ego..."

Na medida que o ser humano se faz por identificações com outros seres humanos , a tendência é de os indivíduos, se tudo ocorrer bem, estruturarem-se dentro de determinadas linhagens, como coloca Bergeret. Segundo este autor estas linhagens se caracterizam por um sistema de defesas, uma angústia latente, um modo de relação de objeto e um modo de expressão habitual do sintoma e determinam um tipo de caráter; outras pessoas, por deficiências, particularmente na elaboração de seu narcisismo, apenas se "organizam", o que ele denomina de "anestruturações". Na adolescência ou durante a vida, ainda segundo esse autor, existe a possibilidade dessa "organização" se estruturar numa linhagem, através de uma relação significativa; ou seja uma pessoa pode passar a vida apenas "organizado" ou se estruturar através, como nosso personagem, de uma relação "verdadeira", suficientemente boa, que funcione terapeuticamente, o que também pode acontecer numa psicoterapia analítica, onde o contato humano, particularmente, seja também no sentido de suprir e de criar possibilidades de vivências significativas e humanas faltantes. Freud já colocava isto no seu artigo O Inconsciente onde estatui que só a possibilidade de experimentar a vivência relacional corretiva, pode ser transformadora.

Desse modo, sem uma confirmação suficiente de si mesmo, falta a Martin a vivência da condição primordial de se sentir o único, razão de tudo, foco de todas as atenções do mundo externo que sem o sujeito não existiria; o que Freud denomina de "Sua Majestade o Bebê". Sem esta vivência, fica impossível a evolução para uma relação objetal madura e saudável e o personagem mostra-se presa de uma ilusão narcísica, impossibilitado de se perceber diferenciado do objeto.

Martin mantém com sua faxineira uma relação pautada pela imaturidade resultante da não resolução de seus conflitos infantis. Nesta relação podemos perceber que Martin repete com Célia (transfere para ela) a relação que teve com sua mãe; e Célia contra-atua numa relação de controle, característica da organização sádico-anal enquanto obtinham prazer através da submissão do outro aos seus desejos. Martin verbaliza esta necessidade de controle no momento em que diz: "Negando o que ela quer nunca sentirá pena de mim; posso ter pena dela".

Podemos supor que Martin ao longo de sua existência, mediante a compulsão à repetição vinha tentando resgatar o encontro com o objeto primevo materno, por exemplo em suas relações com Célia, com outras mulheres e finalmente com Andy, com quem encontra a possibilidade de uma vinculação afetiva mais produtiva e integral. Devemos lembrar que antes dessa vivência positiva, Martin havia sofrido experiências novamente dolorosas nessa perseguição ao objeto, particularmente na cena onde entra em pânico, com sentimentos muito fortes, quando Célia tenta seduzi-lo – o seio de Célia que não podia ser tocado, também era o seio da mãe que não podia ser "olhado" com o dedo. Um reencontro com o objeto.

O personagem Andy, apesar de sua ingenuidade, desempenha um papel importantíssimo na trama, pois é objeto de amor de Martin, inicialmente do tipo narcisista, mas depois como objeto reconhecidamente separado e total. Levando em consideração que durante a organização narcísica ocorre a formação de um Ego Ideal, podemos pensar que Martin – apesar de não ser totalmente reconhecido e até mesmo por isto – idealiza o objeto (a si mesmo) como absolutamente verdadeiro. Diríamos que este seria o seu Ego Ideal: um sujeito que jamais mente. Uma outra e complementar leitura seria a de que Andy entra na vida de Martin como o pai faltante, trazendo-lhe outras percepções da realidade e também como a mãe capaz de aceitar sua condição. O perfil de Andy em relação aos outros dois personagens, denota uma maior maturidade emocional, um contato mais livre com suas necessidades instintivas e uma maior fluência com as mesmas e com a realidade – um protótipo de uma integralidade, mãe boa e mãe má reunidos como objeto total. Parece-nos que o contato com Andy permitiu a Martin uma melhor aceitação da realidade de que a mentira existe e de que mentir faz parte do aspecto humano. Uma visão metafórica deste aspecto pode ser visto na cena onde Célia, ainda não conhecendo esse novo amigo de Martin, reúne as várias fotos tiradas pelo mesmo do rapaz, formando, como que em um quebra-cabeça, a figura completa de Andy – partes de um objeto, formando um objeto total.

Quanto ao aspecto do funcionamento de Andy como uma figura mais integrada, representante de um pai ausente no filme e na vida de Martin, figura que lhe trazia contato maior com a realidade do dia a dia, isto pode ser visto na briga no auto-cine. Vimos que esta briga foi provocada por Martin de uma maneira até ingênua, infantil, mas possibilitou o contato com figuras de autoridade, os policiais, além de permitir ao Martin uma atitude mais humana e menos exigente; como foi dito antes, nesta cena Martin mentiu até sobre sua cegueira. Além disto Andy também trazia nesta seqüência, o aspecto protetor materno, na sua defesa de Martin na briga com os outros personagens. Podemos até dizer que sua relação não era difícil só com a Célia; parece que era com todas as mulheres, enquanto reedição de sua relação primeira com a mãe. Veja-se que o que tinha que fazer para ser atendido pela garçonete contrasta com sua relação com Andy, que era muito mais fluida; enquanto a garçonete relutava em dar-lhe a atenção devida, Andy dava-lhe, de graça e naturalmente, atenção e afeto.

Ao se aproximar de Andy, Martin nele seu Ideal de Ego; descreve-o como: "simples, direto e honesto" e confia cegamente nele. Andy passa a ser o objeto amado, objeto do amor que Martin reprimia por sua mãe, pois nele (Andy) é possível perceber também – o mais importante – uma total aceitação de Martin como ele é; esta é a verdade primordial que ele buscava e da qual dependia para poder amadurecer afetiva e sexualmente.

Com o desenrolar da trama, graças à atuação controladora e sedutora de Célia, Andy opta por mentir para Martin sobre seu (de Andy) envolvimento com Célia. Ironicamente, esta mentira abre caminho para uma outra verdade que possibilita a Martin conhecer, aceitar e continuar amando (agora de forma madura) um sujeito real, que diz verdades e mentiras.

Quanto à Célia, seu amor com conotação de controle, característico da fase anal de desenvolvimento da libido, se revertia freqüentemente em ódio; Célia, frustrada, atuava vingativamente colocando objetos no caminho de Martin. Numa leitura bem livre, pode-se ver que Célia seduziu Andy, figura com melhor trânsito em relação aos seus instintos, como forma de atingir Martin; talvez, isto possa representar, uma reedição da sedução materna, reprimida por Martin. Lembramos que, segundo Freud, a sedução por um adulto é uma das três fantasias originais, com a qual a criança tenta solucionar o enigma da sexualidade. E aqui Andy sucumbe, como um alter ego de Martin e concretiza o incesto. Podemos aqui ver também uma outra fantasia primitiva: a da cena primária, que responde ao enigma da origem das crianças. Quando Martin aceita e elabora o relacionamento consumado entre Célia e Andy, finalmente consegue enxergar-se na posição de excluído. Devemos supor que a vivência de exclusão teve o poder de conferir ao ego de Martin um fortalecimento do sentido de existência. "Ser é ser excluído", como diz Kusnetzoff. Parece que, a partir daí, acontece uma dinamização no desenvolvimento de Martin, que antes provocava e se amparava no controle de Célia para manter uma estagnação, e agora, com pai, mãe e um casal pode-se deixar desenvolver.

Depois disto Martin consegue acabar com a relação viciada que mantém com Célia e pede a Andy que lhe descreva a primeira foto que tirou, guardada por tantos anos como "A Prova" de que sua mãe lhe mentia. A descrição de Andy confirma a de sua mãe; porém, isto já não importa e Martin dá a foto a Andy.

Neste sentido, podemos até aludir à melhor elaboração do complexo de Édipo, onde Martin, colocando Andy no lugar de pai, e agora com uma mãe, um casal, onde cada um se pertence, concretizou-se em existência. Com isto também podemos dizer que foi feita a interdição simbólica de Martin que pôde, agora desfazendo-se de velhos controles, ir em busca de uma vida mais plena, na confiança da relação amorosa com Andy, que passa a ser mais do que amigo, mas reduto de uma mãe integrada, boa e má, e de um pai – ambos acolhedores, continentes, antes faltantes em sua vida.

Referências Bibliográficas

  1. Bergeret, Jean, Personalidade Normal e Patológica, Artes Médicas, Porto Alegre, 1991.
  2. Freud, Sigmund, "Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade", Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. VII, IMAGO Editora, Rio de Janeiro, 1989.
  3. ____, "Sobre o Narcisismo: Uma Introdução", Vol. XIV, 1974.
  4. ____, "Os Instintos e Suas Vicissitudes", Vol. XIV, 1974.
  5. ____, "O Inconsciente", Vol. XIV, 1974.
  6. ____, "Além do Princípio do Prazer", Vol. XVIII, 1976.
  7. Klein, Melanie, "Notas Sobre Alguns Mecanismos Esquizóides (1946)", Inveja e Gratidão e outros trabalhos 1946-1963, Imago Ed., Rio de Janeiro, 1991.
  8. Kusnetzoff, Juan C., Introdução à Psicopatologia Psicanalítica, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982.
  9. Laplanche e Pontalis, Vocabulário de Psicanálise, Editora Martins Fontes, São Paulo, 1992.

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