Volume 6 - 2001
Editor: Giovanni Torello

 

Maio de 2001 - Vol.6 - Nº 5

Psiquiatria, outros olhares...

PERDAS E LUTO

Dr. Antonio Mourão Cavalcante
Doutor em Psiquiatria pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica),
Doutor em Antropologia pela Universidade de Lyon (França), Professor
Titular de Psiquiatria da Fac. Medicina/UFCe, Diretor do Centro de Estudos da Família.

Roberto Carlos, o ídolo da canção brasileira, passou um longo período de luto. Perdeu sua amada - Maria Rita - e, por conta disso guardou-se por quase um ano de apresentações públicas e shows. Esse comportamento levou muita gente a se perguntar: até que ponto é saudável curtir a perda de uma pessoa amada? Quanto tempo deve durar esse luto? Essa saudade pode se transformar em doença?

INTRODUÇÃO

Chama-se de luto o período no qual a pessoa vive o sentimento de perda. Aqui no Brasil, chama-se mais comumente de luto a forma de vestir. Usam-se roupas pretas. Essa é uma tradição que começa a se extinguir entre nós. Mas, uma tradição que vem de longe. Da Península Ibérica. Do tempo medieval. Mesmo hoje, em províncias do interior de Portugal mulheres viúvas se vestem totalmente de roupas pretas. Quando estão assim - luto fechado! - é porque o acontecimento é recente. Com o passar do tempo, vão tendo o direito de diminuir um pouco, usando umas meias mais claras, um lenço de cor diferente etc. O indicativo perdura por toda a vida.

É todo esse processo pós morte. Pode ser normal, esperado ou apresentar uma dimensão doentia, o luto patológico. É quando a pessoa não consegue enterrar o morto. Ele continua na vida da pessoa e cada vez pesando mais.

Ele tem uma intensidade. Na hora em que se perde o ente querido, seria o momento mais forte. Mais intenso. Com o passar do tempo vai decrescendo, até tornar-se uma lembrança dolorosa, porém, não mais um luto. Foi incorporada ao quotidiano a idéia que o outro se foi, morreu. Fazer o luto adequado é quando se consegue retomar o processo normal da vida.

Temos que compreender cada situação. Para alguns é mais fácil do que para outros. Não é a mesma situação perder um conjuge. Vai depender da intensidade afetiva do relacionamento que os mesmos vivenciavam. Pode até significar um alívio!… Levar em conta, igualmente, a personalidade de cada um. A estrutura de cada um varia em suportar situações de perda. Também o significado afetivo da pessoa e a circunstância em que aconteceu essa morte.

Se foi repentina ou consequência de uma doença crônica, progressiva. Uma coisa é perder uma mãe de 95 anos, num avançado estado de demência, com falência geral das funções vitais ou, noutra situação, perder uma mãe ainda jovem, ainda ativa, com a qual tinha um laço de afetividade muito intenso.

Luto patológico é a impossibilidade de vivenciar adequadamente a situação. Seria a negação da realidade. Patológico, igualmente, quando o processo de luto impede a vida. Há um bloqueio, mais que uma ruptura. A pessoa fica atrelada a isso, não consegue continuar o dia a dia. Se está viva, é para viver. Se alguma coisa está atrapalhando, é preciso resolver.

Doutra parte o luto tem a ver não apenas com a morte do outro, mas com a própria fragilidade. Alguém que diz : «Eu não posso viver sem você », demonstra uma fragilidade. Sua vida não pode depender da vida de ninguém. Cada vida tem que se justificar por ela mesma. O outro me ajuda. O outro me completa, mas não é meu ser. O que justifica a minha vida é minha vida. O outro é o outro.

Pode-se ajudar essas pessoas, fazendo apelo à realidade. É importante que na hora da dor a pessoa chore. Chore intensamente. Lágrimas fortes. Ir ao fundo do poço. É morrendo que vem a vida. Morrer com o morto para poder ressurgir.

Ressuscitar. É uma ocasião muito rica para colocar em julgamento a própria vida, o próprio destino. É uma pena que nem sempre se fale disso. Quer-se colocar a morte debaixo do tapete…Mas, e a nossa?

TRABALHANDO O LUTO

Deve-se fazer apelo constante ao presente, às circunstâncias da realidade. O morto não está mais presente do ponto de vista material, orgânico. Quando a pessoa tem crenças espirituais ou espiritualistas, pode imaginar que o ausente está próximo. Ortega y Gasset, afirma que «eu sou eu e minhas circunstâncias». Eu não estou aqui sozinho. Encontro-me com todas as referências da minha vida. Meus avós, pais, tios… toda minha história. Todos habitam a minha vida. Não posso estar preso a eles, mas eles fazem parte da história da minha vida. Não se rompe a história dessas vidas, mas a forma fisica que existia.

Quanto mais o luto é curtido, melhor depois. Lembraria um episódio conhecido de todos: o falecimento de Tancredo Neves. Foi uma morte que rendeu bastante. O processo da doença, das cirurgias. A nação inteira rezando. Os boletins médicos. As correntes de rezas. As fotos. Finalmente, a morte. A urna funerária exposta em diversas capitais do país. Os cortejos. Vai para Minas. O Brasil inteiro acompanha as cenas do funeral. Ficou famoso o coveiro que passou intermináveis minutos, com sua colher de pedreiro, fechando o túmulo. Fez-se o enterro. Fez-se o luto. Ninguém falou mais dessa morte. Aquilo foi intensamente vivenciado. Foi feito o luto.

REMÉDIOS E CRIANÇAS

Quando uma pessoa perde um ente querido é natural que, naquele momento, fique completamente abalada. É um grande choque. Lamentavelmente, parece cada vez mais frequente dar - familiares ou médico amigo da família - algum tipo de tranquilizante a quem sofre a perda. Que acontece? A situação fica totalmente apagada para a pessoa, não conseguindo vivenciar aquele momento que lhe é tão essencial. Precisava curtir aquela dor. Fica totalmente alienada, dopada. Usar apenas se possui algum problema grave de saúde. Mesmo assim, deve-se prescrever uma dosagem que não promova a sedação total. Depois de alguns dias, quando a situação passa, há uma frustração enorme por não guardar qualquer recordação daquele momento. Há mesmo uma revolta. Ela não vai entender o que se passou. Fica um vazio, uma grande lacuna. Irreparável.

O mesmo pode ser dito em relação às crianças. Muitos confessam assim: «quando o papai morreu, eu não vi nada. Me pegaram, levaram para a casa do vovô, ou da titia« Isso é um absurdo. A criança precisa viver a situação, aquele momento. Não é escondendo que se resolve. Não há nada de absurdo em descobrir que existe a morte. É provável que esse comportamento mal administrado, de evitamento que - como adultos - assumimos e ensinamos, tenha sua origem na infância, na forma como fomos educados nesse período. A vida termina com a morte. Isso precisa ser aprendido, desde a infância. Queremos negar, passar uma borracha, apagar. Ao contrário, deve ser aprendido e curtido.

HOMEM E MULHER

O sentimento não tem sexo. O sentir é próprio do ser humano, independente de ser homem ou mulher. O que se modifica é a manifestação do sentimento. Em nossa cultura diz-se que homem não chora. Desde pequeno ele é educado para ser assim. Criança ainda, sai correndo, leva uma queda, fica chorando. A mãe imediatamente corta: «que é isso. Não é homem, não?» Ele engole aquilo e arrolha. Nunca mais ele vai chorar.

O homem, quando chega em um velório, bota logo óculos escuros. Entra rapidamente. Observa o caixão. Mira bem o defunto. E saí, imediatamente de perto. Vai pigarrear muito, como se estivesse gripado ou com algum engasgo. A mulher, não. Ela não tem vergonha de chorar. Libera logo. Seria o sexo frágil. A cultura autoriza que ela possa expressar sentimentos. Nesse sentido ela realiza um luto melhor do que o homem. Ele fica com aquilo preso, mastigando. É importante que se possa chorar na hora do luto. Chorar na hora da dor. Isso é bom para a saúde física e mental.

MORTE DO FILHO

A morte mais dolorosa é a de um filho porque rompe a ordem natural das coisas. O pai é para morrer antes. Se isso não acontece, quebra-se a lei. E, viver essa situação é um momento muito doloroso. Outro dia estava com um senhor de 92 anos. Ele falava sobre a família. De repente, muda de semblante. Fica mais tenso. Começa a chorar. Há 20 anos ele perdeu um filho e, ainda hoje, representa uma grande dor para ele. O filho tinha 52 anos e ele, em torno de 70 anos. Ele disse : «O sr. não sabe o que é vestir a roupa de morto de um filho. Essa dor é terrível.»

SUICÍDIO

Há um outro tipo de morte difícil de se conformar. É o suicídio. Além da questão do luto, destaca-se o sentimento de culpa. No que foi que erramos? O que foi que deixamos de fazer para isso acontecer? Para os que ficam, sobretudo para os da família, é ainda mais complicado. Até porque o suicídio tem essa coisa de ruptura. Quando menos se espera… Esse tema merece um estudo mais amplo.

CONCLUSÃO

Nascemos para uma vida plena, em abundância e não para estar morrendo. Quem partiu foi o outro. É importante aprender a trabalhar as perdas. Muitas pessoas sofrem muito. Chegam a dizer: a vida, para mim, perdeu toda a graça. Tornam-se fechados. Não fomos preparados para esses momentos. Um deles é a preparação para a morte, a dos outros e a nossa.

Pode-se afirmar assim : «Diz-me como pensas a tua morte, que eu te direi como tu vives.» A nossa vida é ditada, em grande parte, pela maneira como concebemos a finitude. Alguns vivem de forma atroz, sem graça porque não sabem como construir a idéia dentro delas. A patologia não é apenas do luto, mas da relação com a morte, que precisa ser trabalhada e melhorada para que não se torne um idéia sufocante.

Afinal, o que pode curar todas estas dores é a possibilidade do amor. Ser solidário. Sobretudo depois que se passa algum tempo. Está todo mundo presente no enterro, na missa de sétimo dia. A família ainda meio atordoada. A coisa faz-se para valer mesmo algum tempo depois. Quando a rotina quer se instalar e existe aquele vazio….«Naquela mesa está faltando ele, e a saudade dele está doendo em mim»….

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

  1. BROMBERG, Ma. Helena P.F. - A Psicoterapia em situações de perdas e luto - Campinas (SP), Ed. Livro Pleno, 2000 ;
  2. HENNEZEL, M. ; LELOUP, J.Y. - L'art de mourir - Paris, Ed. Robert Laffont, 1997 ;
  3. KASTENBAUM, R. ; AISENBERG, R. - Psicologia da morte - Pioneira, Edusp, 1983
  4. KUBLEN-ROSS, E. - Morte, estágio final da evolução - Rio de Janeiro, Ed. Record, 1975 ;
  5. _________ A roda da vida, Rio de Janeiro, Ed. Sextante, 1998, 2a. ed.

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