Volume 6 - 2001
Editor: Giovanni Torello

 

Março de 2001 - Vol.6 - Nº 3

No paíz dos Yankees

Memórias de um residente de psiquiatria – Ano 2, semestre 1
Consultation-liasson psychiatry e saudades do Brasil

Dr. Erick Messias

O segundo ano de residência inclui 6 meses de unidade de internação – três no Sheppard Pratt and três na Universidade de Maryland – e seis meses de Consulation-liason(CL), que no Brasil inclui a interconsulta e a psiquiatria de ligação. Dois meses de CL são passados no serviço de atendimento de emergência que cobre também a emergência clínica. Comecei o segundo ano pelo serviço de Consultation-liasson(CL) na Universidade de Maryland, que inclui quatro equipes : Dr Warres cobrindo o Shock-trauma; Dr Robinson com a clínica médica; Dr Sokal com a ginecologia e Dr Knowles no VA (veterans affairs). Cada residente roda por 3 desses quatro serviços.

A equipe do Dr Warres cobre o serviço de trauma da Universidade de Maryland que é o serviço de referência do estado de Maryland para trauma, e uma das pérolas do sistema. A importância da presença do psiquiatria nesses serviços deriva da quantidade de tentativas de suicídio, que acabam no serviço de trauma, alcóolatras que se envolvem em acidentes de trânsito e usuários de drogas em guerras de gangues e overdose. Como se vê, a comorbidade psiquiátrica no serviço de trauma é considerável. Nesse momento um parecer psiquiátrico é necessário para a decisão de manter um acompanhante no quarto (o sitter) a fim de prevenir nova tentativa de suicídio; continuar a medicação psiquiátrica e sugerir acompanhamento pós-alta, ou transferência para unidade psiquiátrica. Nos casos de usuários de álcool e drogas, o parecer psiquiátrico se revela útil na coordenação de esquemas de desentoxificação e encaminhamento para serviços de drogadição quando da alta.

No serviço de Medicina Interna, um percentual considerável dos pacientes é HIV positivo e a comorbidade com depressão e uso de drogas merece, novamente, atenção psiquiátrica. Outra fonte importante de pedidos de parecer se refere a pacientes em esteróides desenvolvendo quadros maníacos ou psicóticos.

Na ginecologia o serviço de CL lida principalmente com depressão e psicose pós-parto. A intervenção do psiquiatra nesses momentos se torna fundamental para a saúde do bebe e da mãe.

Outro serviço que faz parte do CL é o parecer psiquiátrico para candidatos a transplante de órgãos. Achei essa uma área fascinante da residência e juntamente com a Dra. Christine Skotzko, escrevi um artigo de revisão sobre o tema para a Revista de Saúde Pública www.scielo.br

Em suma, os serviços de CL constituem metade do segundo ano de formação, colaboram para uma noção mais unificada de Psiquiatria como prática médica. Lá o residente aprende muito e nesses serviços os pacientes de beneficiam tremendamente.

Saudades do Brasil

Uma das vantagens do semestre de CL é o fato de não haver plantão noturno. Ou seja, depois de passar um ano de plantão, a cada quatro noites, o alívio é grande. Mas juntamente com o alívio vem a possibilidade de parar e sentir a falta, a diferença, as solidões e aí vem a tona um tópico que muitas vezes é ofuscado pelo ‘glamour’ de estudar no exterior: as saudades do Brasil

Chegando em Baltimore em 1997, tinha somente o telefone de um estudante de doutorado de engenharia da Johns Hopkins e de um psiquiatra brasileiro atuando aqui em Baltimore, o Dr Manoel Wilson Penna. Fora isso tinha algum dinheiro no bolso e o contrato para começar a residência. O doutorando me ofereceu abrigo nas primeiras semanas, enquanto procurava apartamento e carro; e o Manoel Penna me recebeu em sua casa e em sua família dali por diante. Conseqüentemente os primeiros contatos eram todos brasileiros e foram todos fundamentais.

Arranjados o apartamento e o carro, começa a residência, como já descreví nas colunas anteriores. Ali também começam os momentos de falta daquilo que nos era tão trivial e cotidiano: o sol, as pessoas, os conhecidos, os locais onde vivemos e crescemos. Para alguém que cresceu e sempre viveu numa só cidade, Fortaleza, a mudança fica ainda mais brusca. Nesse momento a companhia de outros brasileiros é fundamental e isso deve ser explícito para todos começando a vida noutras searas: buscar outros brasileiros.

Com a residência outras ajudas também aparecem, pessoas de diferentes nacionalidades, romenas, filipinas, indianas, paquistaneses e húngaras, formavam meu grupo de amizade fora do grupo brasileiros, e neles também há a possibilidade de espelho de nossa ‘estranheza’. Além disso, devo dizer que minha experiência com o povo americano tem sido agradável e receptiva, na maioria das vezes. As experiências se multiplicaram, a residência continuou, hoje no final do quarto ano, a ‘estranheza’ permanece e a saudade do Brasil fica como a mais fiel conhecida das gentes.


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