Volume 6 - 2001
Editor: Giovanni Torello

 

Maio de 2001 - Vol.6 - Nº 5

O artigo do mês

MANIFESTO POR UMA PSIQUIATRIA HYBRIDA *

"...o mundo, estando suspenso no vazio, assenta-se sobre a dúvida."
James Joyce

Júlia Katunda e Filipe Doutel

Estado da Arte

O que traduziríamos por uma psiquiatria híbrida? Certamente um desconforto, uma inquietação, uma sensação de mal-estar na ainda recente civilização do Prozac. Vivemos uma época que nos possibilita virtualidades infinitas de experiências e artigos de consumo, ao lado disto, multidões injustificáveis de seres humanos são mantidos na miséria; viver, pensar, agir impõem-nos a tarefa inédita de entender todos os mundos que nos atravessam. O marketing científico fez a década de 90 do século passado ficar conhecida como a década do cérebro. Disciplina já com mais de 200 anos, a psiquiatria obteve súbita e merecida notoriedade ¾ na última vez em que ganhara destaque no século XX, tinha sido malhada impiedosamente pela antipsiquiatria dos anos 60/70.

Se é fato que o psiquiatra de hoje tem de ser mais cientista que o de ontem, também é verdade que ele terá de ser ainda mais resolutamente um humanista, sob o risco de estarmos a gestar uma moral Dr. Jekyll/Mr. Hyde. Com a decodificação do genoma humano teremos cada vez mais razões para discutir as vertentes políticas e filosóficas das práticas científicas. Chegamos a um ponto em que se faz necessário dar conta de avanços e retrocessos, propor direções e, principalmente, elaborar uma ÉTICA condizente com os novos tempos.

A ciência tem se valido de poucas mas eficientes estratégias para produzir seus resultados. Simplificando bastante podemos elencar 5 regras práticas: o ser é, o não-ser não é, exclui-se a contradição (princípio do terceiro excluído), exige-se a reprodutibilidade dos resultados e a falsificabilidade, termo popperiano que indica que uma teoria precisa ser passível de teste experimental, a "falsificação" da mesma (Popper, 1963). A partir deste esquema singelo foi possível chegar às vacinas, à eletricidade e à Lua, com estes princípios também se espera chegar aos arcanos do cérebro humano.

Desde o fim da Antigüidade, momento em que a ciência pôde se libertar das exigências da religião, começaram a ser lançadas as bases do que viria a ser a ciência moderna. Francis Bacon em 1620 com o Novum Organum e René Descartes em 1637 com o seu Discurso do Método são os arautos desta nova maneira de investigar a natureza. No livro de Descartes (1973), não obstante a palavra método vir sempre grafada em maiúscula, o autor nos avisa logo que aquele é o seu método, abstendo-se terminantemente de indicar qual deveria ser o método de bem conduzir a razão.

Dessa modéstia não sofrem os novos adeptos da neuropsiquiatria (eles também fazem hibridismos!), psiquiatras ávidos de transformar a psiquiatria numa subespecialidade da neurologia, um apêndice provisório de uma genética que lhes porá sobre a mesa o diagnóstico e o tratamento antes de o paciente entrar na sala. Urde-se uma psiquiatria sem sujeito, uma corruptela cognitivo-comportamental das idéias de Skinner (1966) que sofre de fobia congênita a tudo que diga respeito à produção de sentido.

Cumpre reconhecer o esforço de uma psiquiatria que, a partir dos anos 50, se aliou às neurociências e à biologia molecular buscando um estatuto de cientificidade: os sistemas de classificação foram simplificados, eliminaram-se as obscuridades da nosografia, foram desenvolvidas formas de operacionalizar a pesquisa, escalas, tabelas, instrumentos estatísticos e... a revolução efetivamente ocorreu. Uma brilhante geração de psiquiatras abriu caminho substituindo estruturas anquilosadas, os departamentos foram tomados de assalto, os psicanalistas, fenomenologistas, vitalistas, existencialistas, etc., foram defenestrados e a nova divisa foi hasteada com pompa e circunstância: publish or perish. Remédios modernos, lançados em agressivas campanhas publicitárias passaram a oferecer uma saúde mental cosmética, o mundo yuppie prometia uma felicidade sem efeitos colaterais.

Expurgada dos jalecos e das esquisitices, embalada em ternos Cerruti e gravatas Hermès, a psiquiatria perdia o seu ranço de especialidade médica dada a confinamentos compulsórios e crueldades tipo eletrochoque. A rentrée não poderia ter sido mais triunfal: alicerçada em um poderoso lobby industrial, assediada por uma mídia ávida por novidades e em total sintonia com uma sociedade obcecada pela aparência saudável, uma certa psiquiatria anglo-americana floresceu e ganhou as revistas da moda e as publicações científicas da área.

Foi esta alegre farra que consagrou um livro-emblema nos anos 90: Listening to Prozac (Kramer, 1993) ¾ escutando... o Prozac?! Bíblia de toda uma geração de alienistas que crescia aprendendo que o efeito de certas drogas é mediado pelo próprio meio. Traduzindo em bom português: a propaganda é a alma da nova medicina da alma. A psiquiatria atual decididamente é fashion ¾ em que pese a metáfora capenga, uma vez que a moda promove releituras, rejeita discursos hegemônicos, dialoga com outras áreas, sustenta anacronismos, enfim, É HÍBRIDA.

Porque não haveríamos de pleitear a mesma liberdade para uma disciplina médica que é depositária de tamanho cabedal de contribuições oriundas de diferentes discursos e práticas como é o caso da psiquiatria? A psiquiatria é uma atividade complexa porque implica multiplicidades que se retomam numa prática clínica, numa relação humana, com tudo o que isso tem de indeterminismo e abertura. Todo e qualquer recorte teórico, usado de forma doutrinária neste lugar, será passível de reduzir, empobrecer, a perturbadora experiência que é estar frente a frente com outro ser humano. Escute o paciente.

Doença é um construto teórico, algo que foi criado de modo a dar conta do fato de que as pessoas passam por sofrimentos e morrem. Quando se constata que 95% dos indivíduos que entram em contato com o vírus da raiva ficam doentes, somos levados a pensar que o conceito "doença" tem valor heurístico, ele interpreta bem o que vemos na realidade. No caso das "doenças" mentais este conceito é bem mais problemático. A psiquiatria não conseguiu até hoje um sinal inequívoco, um exame complementar que detecte, uma alteração em tomografias ou ressonâncias que diga: o senhor ou a senhora tem, teve ou terá isto ou aquilo. Criou-se então o conceito de "transtorno", baseado exclusivamente em grupos de sintomas e aí começam os problemas. Por ter limites mais imprecisos, este conceito, se mal utilizado, dá margem a tremendas empulhações.

Há candidatos a novos diagnósticos psiquiátricos que impressionam: a síndrome que acomete quem fez parte de um júri popular, aqueles que se envolvem constantemente em acidentes automobilísticos ou que têm compulsão por Internet e por aí vai. Não faltam nem os que, ironicamente, proponham a felicidade como distúrbio psíquico (Bentall, 1992). Perder a noção do ridículo talvez seja um novíssimo transtorno mental.

Nos Estados Unidos do Brasil...

Duas gerações de psiquiatras brasileiros foram enviadas aos centros de excelência europeus e norte-americanos a partir dos anos 80 para aí beberem do rio do esquecimento e refazerem a nossa história. Desde tempos imemoriais nossos bacharéis retornam da Europa impregnados de francesias e ingresias (deliciosa expressão de Gilberto Freyre) que passam a impor com um proselitismo furioso aos botocudos e tupinambás. Recorde-se o exemplo de Oswaldo Cruz.

O problema é que os doutos doutores e PhDs não querem importar o modelo todo ¾ da Inglaterra, primeiro país a respeitar uma Magna Carta, ou dos EUA antitruste, dos direitos civis defendidos a ferro e fogo. Interessa-lhes antes pinçar um determinado aspecto que, descontextualizado, melhor satisfaça os interesses que representam. Porque, se a psiquiatria que pregam é nova, os métodos que usam para implantá-la são a férula da exclusão e a chibata da intolerância. Porque a psiquiatria de resultados que segue os ditames do DSM-4 (APA, 1994) da poderosa Associação Psiquiátrica Americana (parece sempre só haver uma América) não é ruim em si e nem melhor ou pior que as outras – só erra ao se pretender a verdade revelada.

Assim é que assistimos ao descredenciamento de departamentos de pós-graduação não alinhados com o tipo de pesquisas quantitativas em voga. Isto num país que precisa de TODO o tipo de pesquisa que pudermos produzir. Os critérios, coincidentemente, beneficiam as instituições em que se fabricam os critérios. A sanha estatística, em muitos casos, é de fancaria, porque afinal psiquiatras não são matemáticos, então tem de se contratar um para fazer os números baterem e a tese sair. Poucos e bons são os que entendem a fundo os malabarismos estatísticos dos próprios trabalhos.

Estabeleceu-se um simulacro do Consenso de Washington na psiquiatria: acabou a história e só há uma forma válida de pensamento e pesquisa; os mais aptos se reproduzem. Ora, a filosofia da ciência insiste em nos apresentar à exaustão exemplos de descobertas científicas vindas das direções de onde menos se esperava.

Não há regras para prever as quebras de paradigma. Como dizia Paul Feyerabend (1975), não há Método, cada cientista é responsável por construir e fundamentar a consistência de suas teses. As matemáticas abrigam teorias que ainda esperam por testes de falsificabilidade como a Teoria das Catástrofes (Thom, 1972), mas não se promovem caçadas aos seus defensores e nem se descredenciam os departamentos que a defendem.

O pós-modernismo nas artes eliminou até mesmo o conceito de vanguarda, ou seja, não há mais nas artes uma elite produzindo o verdadeiramente moderno. Cada artista tem de sustentar o mundo que criou através de suas obras, suas atitudes e intervenções. A pedagogia abandonou as cartilhas. Porque então a psiquiatria haveria de se aferrar a modelos neopositivistas de produção de saber, se entregando voluptuosa às delícias do pensamento único?

Pedir à psiquiatria que seja híbrida não é só o óbvio, é também a antítese de um movimento saudosista porque se está ciente que o estado de coisas anterior ao domínio da psiquiatria anglófona ERA MUITO PIOR. Desejamos a modernização em todos os sentidos, que comece pelas mentalidades, modifique o modus faciendi das políticas de saúde e chegue até aos pilares da formação médica. Não é aceitável que importantes revoluções modernizadoras no Brasil tragam a reboque a intolerância à diversidade, que sempre estejamos com vergonha do que temos de mais admirável. Não somos contra ninguém, não queremos acabar com nada, não nos interessa destruir, nós só queremos mais e melhor.

BIBLIOGRAFIA

  1. Associação Psiquiátrica Americana – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-4). 4ª ed., Porto Alegre, Artes Médicas, 1994. 623 p.
  2. Bentall, R. P. - A proposal to classify happiness as a psychiatric disorder. J. Med. Ethics, v. 18: 94-8, 1992.
  3. Descartes, R. - Discours de la Méthode. Paris, Librairie Larousse, 1973. 136 p.
  4. Feyerabend, P. - Against Method. New York, New Left Books, 1975. 279 p.
  5. Kramer, P. - Listening to Prozac. New York, Viking Press, 1993. 409 p.
  6. Popper, K. - Conjectures and Refutations. The Growth of Scientific Knowledge. London, Routledge, 1963. 431 p.
  7. Skinner, B. F. - Science and Human Behavior. New York, Free Press, 1966. 461 p.
  8. Thom, R. - Stabilité structurelle et morphogenèse. New York, Benjamin, 1972. 362 p.

* I Simpósio realizado em 10/03/2001, São Paulo.


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