Volume 5 - 2000
Editor: Giovanni Torello


Fevereiro de 2000 - Vol.5 - Nş 2

As teorias surgem quando a gente começa a desconfiar dos olhos’
‘A questão não é curar uma doença. A questão é ser o que desejamos se

Sobre peixinhos e tubarões

Rubem Alves

Há livros que a gente lê uma vez e nunca mais. Há livros que a gente lê uma vez e continua lendo pelo resto da vida, por puro prazer. É o caso dos livros do sociólogo Peter Berger, que escreve sobre sua ciência de um jeito que todo mundo entende e sempre com uma deliciosa pitada de humor. Um dos seus livros mais saborosos é Introdução à Sociologia (Vozes. Original inglês Invitation to Sociology, Doubleday, NY, 1963). É impossível ler esse livro sem nos vermos de uma maneira desconhecida e surpreendente. Ele inicia o seu primeiro capítulo com a seguinte observação: "Há poucas piadas sobre sociólogos. Isso é frustrante para os sociólogos, especialmente quando eles se comparam com seus primos mais afortunados, os psicólogos que, nos Estados Unidos tomaram o espaço do humor que antigamente pertencia aos clérigos. Um psicólogo, ao assim se apresentar em uma festa, imediatamente se torna objeto de considerável atenção e tietagem embaraçosa." Isso é verdadeiro, especialmente em referência aos psicanalistas. Todo mundo repete "Freud explica". Mas eu nunca ouvi ninguém dizendo "Max Weber explica". Isso indica que a psicanálise invadiu o imaginário das pessoas comuns, mesmo que elas nada saibam sobre a psicanálise. O que comumente sabem são mitos e fábulas fantásticas que pintam os psicanalistas ou como charlatães ou como semi-deuses.

Dias atrás, lendo uma linda revista que me foi enviada de presente, com ilustrações maravilhosas, encontrei um artigo intitulado "As grandes fraudes do século XX" (p.38, não aparece o nome do autor) que se abre com esta afirmação: "Nenhuma teoria psicológica recebeu tantas críticas quando a psicanálise. De todos os lados e por todos os meios ela tem sido considerada não só ineficiente como também nociva ao ser humano.(...) Freud (...) só chegou à fama graças a uma fértil imaginação estimulada pelo uso da cocaína, que manteve até o final dos seus dias e que teve uma inegável influência na obsessão que ele demonstra sobre o sexo. Comprovadamente um cocainômano e um obsessivo sexual, Freud pode, ele próprio, ser caracterizado como um caso patológico... (A outra fraude que o artigo desmascara é Albert Einstein). Eu fiquei desconfiado. Freudianamente, me perguntei: "Que intenção teria uma pessoa enviando um artigo assim para um psicanalista? É o mesmo que mandar O evangelho segundo Jesus Cristo, de Saramago, para o papa." Mas logo compreendi. De novo interpretei psicanaliticamente os sete musculosos nus masculinos e os esculturais nove nus femininos que a revista publicou e tudo se esclareceu. Compreendi por que não gostam de Freud. ( Nota: a revista contém também um longo artigo apologético da oaska, chá alucinógeno, louvado por suas virtudes religiosas.).

Me relataram que ao final de uma conferência, um desses cientistas para os quais todos os problemas mentais se resolvem com poções bioquímicas (Huxley, no seu livro Admirável Mundo Novo, já previa esta possibilidade: os habitantes do Admirável Mundo Novo carregavam em pochetes, na cintura, pílulas de felicidade chamadas "soma", que eram diariamente tomadas ao café da manhã para que, durante o dia, eles só tivessem idéias felizes. Os felizes são sempre conservadores...) – pois o dito conferencista, empolgado com os avanços da bioquímica, anunciou: "Nas enciclopédias do futuro, Freud será descrito como um escritor de ficção científica..." (Sem saber, ele disse a verdade. Mais tarde eu explico...)

As fantasias sobre a psicanálise que habitam o imaginário popular são as mais variadas. Alguns acham que psicanálise é coisa para loucos, e fogem dela como podem. Outros, ao contrário, a consideram prática milagrosa, explicação e cura para todos os males. Os religiosos a denunciam como inimiga da religião. Pessoas de moral ilibada a acusam como terapia imoral que aconselha as pessoas a soltar as frangas e a fazer tudo o que desejarem. E existe, ainda, aquela suspeita em relação ao incompreensível divã. (Sobre o divã conversaremos em outra ocasião)

Há muitas maneiras de compreender a psicanálise. Aconteceu com ela coisa parecida com o que aconteceu com o cristianismo. Num ponto os cristãos estiveram todos sempre de acordo: seu texto sagrado é a Bíblia. Aí o acordo termina porque há uma infinidade de interpretações divergentes desse texto. Da multiplicidade de interpretações surgiu a multiplicidade de seitas, cada uma afirmando que a sua interpretação é a única verdadeira. Sendo a sua a única verdadeira, as outras têm de ser consideradas falsas: heresias. Sendo heresias, são inimigas da verdade e devem ser combatidas. Católicos e Protestantes, em nome da interpretação correta dos textos sagrados, mandaram para a fogueira milhares de pessoas que tinham interpretações diferentes. Na psicanálise todos concordam que a fonte são os textos de Freud . Mas muitas são as interpretações, várias as seitas. Eu também tenho a minha interpretação. Desejo advertir os meus leitores que eu sou, por vocação e tradição, um herege. Gosto de ler os textos ao revés. O meu jeito não é ortodoxo. Já fui, inclusive, acusado de heresia por uma colega de ofício. Fiquei feliz de que hoje não haja fogueiras. Se você gosta das coisas que escrevo devo dizer-lhe que a psicanálise está presente em quase tudo que escrevo – muito embora eu não use as palavras sagradas. E o que desejo é convidar você a passear comigo por esse mundo que me fascina.

Para começar eu quero pedir que você esqueça as coisas comumente associadas à psicanálise: terapia, consultório, psicanalistas, neuroses, psicoses, sonhos, divã. Porque, antes de mais nada, a psicanálise é uma teoria.

O que é uma teoria? Teorias são óculos feitos com palavras para ajudar os olhos a ver o que normalmente não vêem. Os olhos vêem o mundo de um jeito. Usando os óculos da teoria a gente passa a ver o mundo de uma maneira diferente. Olhando para o céus, sozinhos, os olhos, vêem o sol e os céus estrelados girando em torno da terra plana, parada e imóvel. Usando os óculos da teoria eles vêem o contrário: uma terra redonda girando como um pião. Não são os céus que giram; é a terra. Os olhos nos dizem que a tendência de todo movimento é o repouso. Tudo o que se movimenta pára: o pêndulo pára, a bola que o jogador chuta pára, a flecha que o arqueiro lança pára. Pondo os óculos da teoria que Galileu construiu, chamada "princípio da inércia", a gente vê o contrário: a tendência de todo movimento é continuar em movimento, indefinidamente. Olhando para os animais a gente vê aquela variedade fantástica de formas vivas, todas prontas. Pondo os óculos da teoria da evolução todas essas formas vivas aparecem interligadas, umas saindo de dentro das outras. As teorias surgem quando a gente começa a desconfiar dos olhos. Elas são inventadas para a gente ver aquilo que os olhos não vêem.

Pois a psicanálise é um par de óculos. Usando o par de óculos da psicanálise tudo fica diferente: os homens, a sociedade. Ela nasceu quando alguns começaram a desconfiar que os homens eram diferentes do que pareciam ser. Mas isso não é coisa nova, não foi inventado por Freud. Desde tempos imemoriais os homens sabem que os verdadeiros motivos da ação humana não são aqueles que parecem ser. Rostos são máscaras. Máscaras escondem. A psicanálise são óculos que nos ajudam a ver o que existe nas profundezas da alma da gente. E isso serve não apenas para pessoas que sofrem de perturbações emocionais. Todos nós temos profundezas escondidas. Por vezes o visível é bonito mas as funduras são feias. Por vezes o visível é feio e as funduras são belas. Psicanálise é uma teoria que nos ajuda a mergulhar em nossas profundezas. Como nos mares de Fernando Noronha: no fundo há cardumes de peixinhos coloridos mas há também tubarões ameaçadores.

Ninguém vai lhe dizer: "Seja um peixinho colorido" . Ou: "Seja um tubarão ameaçador." A decisão sobre o que você pode e deseja ser, isso é coisa que somente você poderá fazer. A questão não é curar uma doença. A questão é ser o que desejamos ser.

Vai o meu convite: "Vamos mergulhar juntos para ver peixinhos e tubarões?"


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