Volume 5 - 2000 Editor: Giovanni Torello |
Setembro de 2000 - Vol.5 - Nš 9 Psiquiatria, outros olhares... A DEMANDA EM TERAPIA FAMILIAR SISTÊMICA Dr. Antonio Mourão Cavalcante INTRODUÇÃO É bem conhecida entre nós a anedota do indivíduo que, estando no cais do porto no Rio de Janeiro, é abordado por uma pessoa em pânico. Pede que ele vá urgente a Niterói. "Sua casa está pegando fogo, mulher e filhos em desespero". Depois de fazer um imenso esforço para pegar o barco, e mais calmo, dá-se conta que não é casado, que não tem filhos e, finalmente, não mora em Niterói... Quantas vezes, em nossa prática psicoterapêutica também não tomamos "barcos" cujo rumo não questionamos? Quantas vezes não tomamos o rumo errado em função de uma demanda desesperadamente colocada? Na cabeça a idéia, como terapeutas, que devemos sempre portar lenitivo aos sofrimentos. Foi-nos ensinado, e muitas vezes repetido, que precisamos, a todo custo, diminuir a dor do paciente. Mas, o que é sofrimento em termos psicoterápicos? Qual o papel desse sofrimento na economia geral do doente ou da família? A DEMANDA O problema, com o pedido de uma solução, é o que podemos definir como demanda. A família, desde a primeira sessão, tenta formular uma sólida demanda. Mesmo que a anamnese não esteja suficientemente clara, nem as relações entre os membros totalmente estabelecidas, são quase unânimes em apresentar a situação que desejam consertar. Mostram o problema e desejam uma solução. A demanda pode ser: - explicitada - quando a formulação é clara, organizada de uma maneira convergente e única. Por exemplo: "nosso filho está se drogando e queremos que ele largue isso"; - vaga - quando não é revelada explicitamente. Por exemplo: "nosso filho é muito rebelde, ninguém sabe porque ele faz isso e não nos obedece". Obviamente que esta diferenciação é um tanto quanto subjetiva. Mas, não deixa de ser um referencial para a intervenção. Deve-se trabalhar a partir da demanda revelada pela família. Isto é, o contexto tal como ele está sendo apresentado, mesmo que na percepcão do terapeuta possa existir outra realidade, bem mais importante do que a comentada. Por que trabalhar exatamente a partir da demanda revelada pela família? a. Esta é a história que ela está contando. Dessa forma estamos respondendo a uma expectativa. Fica subentendido que esta é a maneira como ela deseja ver a situação trabalhada. Há toda uma vontade neste sentido. Não se pode frustrar, logo no início, esta expectativa. Ademais, cabe ao terapeuta distinguir o que seria da ordem de seu desejo, daquilo que corresponde ao interesse da família. Não se está aderindo à versão contada por ela. Trata-se de uma estratégia; b. por outro lado, partir para a elaboração de outra demanda, poderia acarretar na família reações inesperadas e o desencadeamento de defesas, o que tornaria a posterior abordagem ainda mais difícil. Há que estrategicamente aceitar a leitura proposta inicialmente pela família. O terapeuta não estaria acreditando naquilo que eles estão apresentando como versão, colocando o terapeuta numa posição de suposto saber. Diante de um terapeuta tão eficaz, posto que conhece até do que não é revelado, poderia inibir definitivamente a família, ou mesmo acarretando uma abrupta interrupção da terapia com o cancelamento das sessões subsequentes; c. trata-se, nessa perspectiva, de qualificar a família. Ela se sentirá reconhecida como competente, capaz de realizar análises consequentes e equilibradas sobre ela mesma. Claro que o terapeuta poderá neste momento revelar de sua ignorância, dizendo, por exemplo, que não compreendeu muito bem que tipo de raciocínio eles teriam elaborado para chegar a estas conclusões; d. é importante que o terapeuta procure desenvolver, desde o início, uma aliança com a família. O terapeuta não poderá avançar em colaboração e equilíbrio, se não tiver, estabelecido uma forte aliança com a família. Entender a demanda da família a partir do seu próprio discurso nos parece a estratégia mais eficaz. A CONSTITUIÇÃO DA DEMANDA Na realidade não podemos separar o inteiro discurso da família. Caberia distinguir, para efeito de compreensão, nas seguintes partes: - sintomas - consta de diversas situações que estão caracterizando o sofrimento familiar, compreendido no seu sentido mais amplo, que equivale dizer: momentos de ruptura, ocasiões de fugas, ameaça de desequilíbrio e perdas. Trata-se de uma situação de mal-estar insustentável. Quando o terapeuta é procurado, o sintoma tem um caráter agudo. A família está em crise. Ela, sozinha, não está sabendo resolver o problema. Nestas circunstâncias, o terapeuta confronta-se com situações onde os sintomas são por demais evidentes. É comum a frase: "não dá mais para aguentar..." - causas - dificilmente a família consegue fugir da idéia de buscar causas. Estas, em nossa cultura, estão associadas aos ascendentes familiares. É um tio, o avô, os pais. Por vezes o relato é marcado por um ponto especial na biografia do indivíduo: uma queda quando criança, uma agressão, uma fuga. Os pais vivenciam estas lembranças com muita culpabilidade. Explicação provável para a frequente recusa em comparecer às primeiras sessões; - hipótese diagnóstica - a busca de uma causa leva a uma hipótese diagnóstica. Significa atribuir ao paciente um rótulo, uma etiqueta. É muito difícil dissociar causa de hipótese diagnóstica e, por consequência, o sentimento enorme de culpabilidade. Insistir na busca de uma causa é um dos mais graves equívocos em terapia familiar, posto que esbarra numa situação sem saída. Além de um relativo sossego - já sabemos o que ele tem! - o diagnóstico reforça uma percepção estática. Paralisa a terapia. Como se numa investigação policial tivéssemos finalmente encontrado o culpado; - demanda propriamente dita - o discurso da família que vai se estruturando a partir das etapas descritas acima, termina com o apelo claro de uma intervenção saneadora do terapeuta. A família pede uma ajuda precisa: quer ser ajudada especificamente no sofrimento, que diz não mais suportar. Dada a gravidade ou circunstância do caso, pode ser de grande conteúdo emocional. A contra-transferência, para usar um jargão psicanalítico, pode empurrar o terapeuta a situações de desespero, de quase pegar o "barco" que figurativamente vai a porto algum.... A LÓGICA DO DISCURSO Fica evidente que a demanda se inscreve na lógica do discurso familiar. Ela é parte inclusa. Não é um apêndice. Algo à parte. O mais importante da demanda é a escuta atenciosa, que permite, num momento tão significativo, de tanta fragilidade, compreender a lógica familiar. Será trágica, por exemplo, se a lógica familiar é catastrófica. Será intensa, não tanto pela natureza do problema, mas pelo que representa este sintoma na história da família. Em ocorrência, lembremos o problema dos mitos, dos segredos, dos tabus familiares que dão a um determinado episódio uma contextura simples ou complexa, feliz ou trágica. Entender claramente uma demanda é saber situá-la, fazendo-o de um modo equilibrado, mesmo que isto não revele tanta eficiência. Saber em que contexto se inscreve este sofrimento familiar. A demanda pode nos dizer muito da família. É uma espécie de fotografia. Um instantâneo. No caso da terapia familiar sistêmica o cuidado deverá ser redobrado. Para a família o sintoma e a demanda se inscrevem em uma lógica linear, daí porque insistem na busca de uma causa. A lógica causa-efeito. Para o terapeuta sistêmico a leitura da realidade é feita a partir de uma leitura circular. O grande desafio consistirá em fornecer à família uma interpretação nova, que eles jamais imaginaram. A surpresa age como fator potencializador. Numa perspectiva dialética o impasse situa-se na existência familiar, como um reconhecimento formal de uma não alternativa. Ela vive a situação como um impasse, concebido como completo, fechado em si mesmo. Não tem saída! A intervenção terapêutica deve ser concebida/imaginada como um elemento novo na dinâmica do sistema familiar, desbloqueando-a em direção à síntese. Não uma síntese/solução, mas um reordenamento/releitura que a família poderá vivenciar. Se estiver preparada, dará esse salto, que implica na redefinição de um novo relacionamento. Neste caso, ela estava madura, pronta. Se a leitura emprestada não funcionar, é porque a família ainda não estava pronta ou a hipótese proposta não era adequada. CONCLUSÃO Pelo exposto, não estamos respondendo diretamente ao que foi pedido: curar o doente! (doente?!) Mas, dando um senso a esta demanda. Mostrando como esse problema se articula com o conjunto, o sistema familiar. Isto dito, pode parecer muito frustrante. O terapeuta intervencionista, diretivo, autoritário, dá lugar a um questionador, extremamente prudente e limitado. É muito importante perceber os limites de uma intervenção. E, a partir desta tomada de posição, estabelecer toda uma possibilidade de abordagem e proposição terapêutica. Limitada, mas consciente e responsável. Felizmente que um psicoterapeuta não é mais que um psicoterapeuta. INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS ANDOLFI et alii. Por trás da máscara familiar. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1984; BOSCOLO, L. et alii. A terapia familiar sistêmica de Milão - conversações sobre teoria e prática. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1993; ELKAIM, M. Se você me ama, não me ame. Campinas, Papirus Editora, 1990; HALEY, J. Terapia não convencional. São Paulo, Summus Editorial, 1991; MIERMONT, J. et alii. Dicionário de terapias familiares - teoria e prática. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1994; MINUCHIN, S. & FISHMAN, C. H. Técnicas de terapia familiar. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1990; WATZLAWICK, P. et alii. Pragmática da comunicação humana. São Paulo, Editora Cultrix, 1988; |
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