Volume 5 - 2000
Editor: Giovanni Torello

 

Agosto de 2000 - Vol.5 - Nš 8

Psiquiatria, outros olhares...

CRIMES DO AMOR

Dr. Antonio Mourão Cavalcante
Doutor em Psiquiatria pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica),
Doutor em Antropologia pela Universidade de Lyon (França), Professor
Titular de Psiquiatria da Fac. Medicina/UFCe, Diretor do Centro de Estudos da Família.

Os casos de latrocínio se sucedem. Todos os dias a imprensa destaca a fúria dos cônjuges. A violência impera no meio familiar. Levado ao paroxismo extremo, nada mais resta que eliminar sua cara metade. A violência mostrando sua face mais atroz. O crime. A morte. Por que esses episódios se repetem? Por que aquela jura de amor eterno, de ser companheiro na dor e no sofrimento, até que a morte os separe, termina de forma tão violenta?

Dois aspectos se destacam ao procuramos estudar a violência no casal : quando é o homem que age e mata, tenta-se argumentar de que moveu-se em defesa da honra. Quando é a mulher, situação menos frequente, fala-se em defesa própria. Acuada, não teria outra saída. Era matar ou morrer.

A cultura estabelece claramente os papéis do homem e da mulher no matrimônio. Desde pequenos somos educados e condicionados a refletir e agir de uma determinada forma. A cultura fornece modelos. Historicamente, a função da mulher esteve ligada ao papel sexual. A mulher seria o objeto sexual do homem e encarregada do desempenho da função reprodutiva. Ser a mãe dos filhos do macho.

Nesta perspectiva, a mulher não poderia contestar - ousar questionar - o direito exclusivo do marido sobre o seu corpo. Ela deveria ser dócil e submissa aos desejos e caprichos do homem.

Desse princípio secularmente incontestado, podemos imaginar duas situações básicas. Primeiro, o fato da mulher buscar um outro homem, para ter satisfação sexual, seria um crime e uma afronta muito grave a todos esses valores. É o adultério. Fato concebido como uma ruptura, uma falta muito grave. O mesmo, curiosamente, não se sucede com o homem, que aparentemente pode. Adultério grave, reprovável, é o cometido pela mulher. Para com o homem a situação é bem mais complacente. Digamos mesmo, permissiva.

Historicamente a mulher sempre foi educada a manter fidelidade absoluta ao homem. Se esse contrato é rompido, ele passaria a ter o "direito" de matá-la. Ele foi gravemente atingido em sua honra. Nestas circunstâncias, apenas uma condição era exigida da parte do homem: que ele esteja cumprido bem a sua tarefa de "chefe da casa", assegurando a apropriada manutenção da família. A mulher será tanto mais condenada, tanto mais grave a sua falta, quanto mais eficazmente o homem venha cumprindo suas tarefas.

Curiosamente, esse sistema de valores torna a honra de um marido dependente da forma de conduta de uma outra pessoa, no caso, a sua esposa. Enquanto isso a reputação das mulheres depende inteiramente delas próprias. A honra da mulher não será comprometida se o marido for infiel ou adúltero.

O fato da honra do homem estar na dependência da conduta da mulher, motivaria a necessidade de um maior controle e do exercício de um maior poder que os maridos tentariam exercer sobre elas. A suposta necessidade de salvaguardar sua própria honra, leva o homem a exercer sobre a mulher um maior controle e uma maior dominação. No afã de exercer um controle absoluto, procuram torná-las socialmente inferiores e totalmente dependentes. Não aceitam que a mulher venha a estudar, se formar, ter uma profissão. Se desejam, depois de casadas, retomarem os estudos interrompidos, será um projeto mal visto pelo marido. Arranjar um emprego é muito mal assimilado pelo cônjuge masculino. Sair de casa, ter uma independência financeira, ter amigas, etc, tudo isso é extremamente ameaçador. A perda do controle sobre a mulher, ou melhor, a simples possibilidade de que ela venha a ter alguma autonomia é ressentida, por alguns homens, como uma grande ameaça. Ela poderá colocar sua honra em risco!

Interessante que, quando as mulheres são submetidas a julgamento, essa é uma das razões de serem mais freqüentemente absorvidas: são apresentadas e reconhecidas como dependentes e fracas. A violência física eventualmente exercida física contra o homem não é caracterizada como uma forma de ataque. Configura-se facilmente como uma atitude de autodefesa.

Como se trata de um valor inerente à cultura, deve-se compreender a situação como um todo. Não seria apenas falta ou erro do homem ou da mulher, conforme a leitura que se queira fazer do episódio. Estamos dentro de uma cultura. Todos são concernidos de forma igual. O que está em questão é a defesa de um sistema de normas visto tanto como universal, quanto como absoluto. Basta falarmos da educação chamada de machista que é freqüentemente transmitida pela mãe.

Nada estaria acontecendo se esse "modelo" clássico de relacionamento conjugal permanecesse como no passado. Como no tempo de nossos avós. Ao longo das últimas décadas, porém, a nossa cultura tem sofrido uma série de abalos. As relações homem/mulher tem sofrido grandes transformações. O reflexo dessa mudança nas relações homem/mulher sobre a cultura não faz sem turbulências. O tempo da mulher dócil e submissa está-se acabando. Ela começa a ocupar um espaço cada vez mais importante na sociedade. Não quer mais ser apenas objeto de cama e mesa. Presa às prendas domésticas.

O homem machão tem recebido essas transformações com muito receio e em alguns casos até com reações de pânico. Ele pensa que sua honra estaria em jogo e que sua moral correria perigo. Mesmo que a sua mulher continue orientada por esse modelo, permaneça dócil e "obediente", o fato das "outras" estarem mudando já o deixa em situação de insegurança e ameaça.

Ele tem medo da "contaminação "e passa a sentir ameaça em toda atitude da mulher. Sua insegurança se projeta sobre sua mulher. Vira paranóia. Inconscientemente a traição não seria fruto somente da conduta eventualmente adúltera da mulher, mas da "traição" da cultura. Isto é, ele foi ensinado que "ganharia" uma mulher dócil, submissa, obediente. Agora, estão me informando que não é assim.

Esse homem sente-se traído, nem tanto, nem talvez pela mulher, mas por suas próprias referências culturais das quais ele não é capaz agora de se desligar. As regras do jogo mudaram e ele não foi comunicado. Sente-se desesperado. Acuado. Desesperadamente traído. Esqueceram de comunicar-lhe que as regras mudaram. Que agora vale o crescimento de cada um, o respeito ao outro. Agora, está-se construindo um novo modo de viver junto: está valendo o diálogo, a unidade nascida do respeito, da diversidade e do amor, conquista do todo dia.

O espaço e o poder que cada cônjuge, por seu sexo, pode ocupar no relacionamento é uma discussão que vem de muito longe. A própria mitologia grega se apressa em apresentar um personagem que seria muito esclarecedor dessa dinâmica homem/mulher. Trata-se de Tirésias.

Tirésias, porque era cego, possuía o dom da adivinhação. Era um profeta, dotado do poder da predição. Tanto a cegueira como o dom eram conseqüência de um castigo e de uma compensação.

Ao atingir a época do saber, das provas de caráter iniciático, Tirésias escalou o monte Citerão e viu duas serpentes que se acoplavam num ato de amor. O jovem Tirésias as separou, matando a serpente fêmea.

O resultado dessa intervenção foi desastroso: o jovem se tornou mulher. Sete anos mais tarde, subiu o mesmo monte e, encontrando cena idêntica, fez como da vez anterior, sendo que desta feita matou a serpente macho. E, recuperou seu sexo masculino.

Tirésias. Trata-se do crepúsculo do machismo.

Indicações Bibliográficas -

CAVALCANTE, Antonio - O Ciúme Patológico - Rio de Janeiro, Ed. Record/Rosa dos Tempos, 3a ed. 1998.

PARKER, Richard G. - Corpo, Prazeres e Paixões: A cultura sexual no Brasil Contemporâneo - São Paulo, Editora Best Seller, 1992;

RABINOWICK, Léon - Crime Passional - (Tradução de Fernando Miranda), Coimbra, Arménio Amado - Editor Sucesor, 2a Ed., 1961;

TUCKER, Patrícia e MONEY, John - Os papéis sexuais - São Paulo, Ed. Brasiliense, 1981;


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