Volume 5 - 2000
Editor: Giovanni Torello


Abril de 2000 - Vol.5 - Nš 4

QUANDO A FAMÍLIA VAI À TERAPIA

Antonio Mourão Cavalcante
Doutor em Psiquiatria pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica),
doutor em Antropologia pela Universidade de Lyon (França),
Professor Titular de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará
e Diretor do Centro de Estudos da Família. 

 

Poderia começar com duas pequenas histórias.

Primeira - José e Maria estão casados há cinco anos. Eles tem um filho, José Maria, o Zezinho, com 3 anos. Desde muito pequeno Zezinho tem problemas de asma. Aliás, situações muito sérias, que reclamam frequentes idas ao Pronto Socorro, onde faz sessões de aerosol. Ultimamente o casal está em crise. Discutem muito. Se desentendem. Brigam. E, numa dessas brigas, o Zezinho começa uma violenta crise de asma, indo parar no Pronto Socorro. Por conta da emergência de Zezinho, os pais impõem uma trégua nas discussões. O cuidado e a atenção agora é tudo para Zezinho. Com a intervenção do pediatra, ele começa a melhorar e recebe alta. Ainda no caminho de casa, os pais iniciam novamente a disputa. No dia seguinte, lá vai o Zezinho, de novo, para o Pronto Socorro. Em outras palavras, Zezinho não pode ficar bom. Porque quando ele fica bom, a coisa piora...

Segunda - Trata-se de uma família com pai, mãe e filhos. José, o esposo, considerado por todo mundo como um safado. Vive bêbado, chega em casa "botando boneco", agride a mulher e os filhos. Para os vizinhos José é cachorro sem vergonha. José é o lado mau. Maria, a mulher, uma santa. Dedicada ao lar e aos filhos. Para sustentar a família ainda trabalhar fora, lavando roupas e sendo doméstica. A própria reincarnação de Nossa Senhora, assim pensam na comunidade. Maria é o lado bom. Ninguém entende por que aquela mulher ainda vive com aquele homem. Os filhos, nem se fala. Um dia, ninguém sabe como e por que, José dá uma olhada numa reunião de AA's (Associação de Alcóolicos Anônimos) e escuta. Não fala nada. Nem se compromete. Mas, foi a primeira vez. Depois, progressivamente, frequenta com mais assiduidade. Passa a se interessar. Resultado: José começa a deixar de beber, retoma seu trabalho. Ele é um exímio marcineiro. Passa a trazer coisas para casa. Volta a ser o provedor. Tudo vai muito bem. Uma verdadeira felicidade. Mas, poucos dias depois, ninguém entende por que, estoura a bomba: Maria acaba de abandonar José...

Como é que numa lógica individual, pegando os pacientes de forma isolada, poderemos entender essas situações? A idéia da Terapia Familiar Sistêmica seria a de tentar arrumar o episódio de uma forma não causal. Isto é, se existem efeitos (sintomas), não devemos buscar a causa. Ou seja, A age sobre B, por isso A é a causa do que sente B. Do ponto de vista terapêutico, isso não nos leva a nada, nem nos garante a compreensão do que acontece. Georges Devereux (1) lembra que quando o psicólogo olha para o ratinho - numa experiência laboratorial - o ratinho também olha para ele. O resultado passa a ser a integração desses dois olhares. Somos convidados, por rigor científico, a levar em conta os múltiplos olhares. De imediato, se extrai dessa abordagem uma nova epistemê. Uma visão mais crítica da postura terapêutica.

Então, nessa perspectiva não há interesse em buscar a causa. Dentre outras razões, buscar a causa é culpabilizante. Passa a ser percebido como apontar o culpado e o sistema (família, no caso) vai se sentir, numa sessão terapêutica, como se estivesse sendo julgada. Podemos entender, o que não é raro, porque muitas vezes o processo é boicotado. A tensão chega a um nível impossível de ser administrada. Rapidamente, o terapeuta é promovido a condição de juiz, aquele que deve arbitrar os conflitos. Não sendo raro encontrar afirmativas tipo: se os filhos são assim, a culpa é dos pais. A escola é responsável por isso, etc!

A Terapia Familiar Sistêmica propõe a busca da função. A pergunta passa a ser: qual a função desse sintoma? Ele serve a que? O que é que ele sustenta? A grande tarefa do terapeuta não seria o de eliminar o sintoma, mas compreender ao que ele serve. Na dinâmica conjugal ou familiar, quais os benefícios dessa situação? O sintoma, nem sempre, pode ser retirado, eliminado. Ele, por vezes, é a peça que faz funcionar o sistema. Ele sustenta. A intervenção terapêutica não consistiria, insistimos, em retirar o sintoma, mas resituá-lo em um novo contexto.

Por exemplo, não vamos abrir o processo de julgamento e pena do filho que traz problemas para a família com suas atitudes marginais. Numa perspectiva sistêmica podemos dizer que, por causa daquelas condutas os pais podem manter a função paterna. Isto é, os outros filhos cresceram, foram embora, cuidam de suas próprias famílias. Ele, porém, filho "marginal" continua sendo filho, porque ele entendeu que os pais precisam de um filho para eles tomarem de conta. Estando a função conjugal muito desgastada, ou inexistente, o filho adia seus próprios projetos, sua caminhada individual, para continuar insistindo em ser filho. Ele pensa que com isso ajuda os pais...

Outro elemento muito relevante na Terapia Familiar Sistêmica é a injunção paradoxal. O terapeuta pode muitas vezes reforçar e até mesmo prescrever o sintoma. Por exemplo, uma família em terapia tinha um filho que gostava de tirar as coisas dos outros. Eles simplesmente chamavam de roubar! Isso gerava uma tensão muito grande na família e uma realidade muito constrangedora em saber que era ele. Então, a prescrição constituiu simplesmente em dizer que até a próxima sessão ele deveria trazer um objeto "roubado" de cada membro da família. Ora, o que parecia ser o sintoma e que simplesmente deveria ser extirpado do sistema, foi prescrito como tarefa. Com isso você rompe a lógica do sistema. Aquilo que era motivo de tensão e atritos, tornou-se uma coisa lúdica. E, mais importante, não se sabe agora se ele vai fazer isso porque quer ou porque foi mandado. A terapia tenta romper a lógica do sistema.

A origem dessa terapia se situa nos USA, sobretudo na Califórnia (Palo Alto), Nova Iorque, Washington... igualmente na Europa, na Itália (Milão, Roma), depois na França e Bélgica. Estávamos na mesma época da anti-psiquiatria. Era a revolução levantada por Franco Basaglia, em Triste (Itália), propondo o fim dos hospitais psiquiátricos. Na Inglaterra, com David Cooper e Ronald Laing. Este último, veio diversas vezes ao Brasil e, tem alguns livros publicados pela Editora Vozes. Para Laing, por exemplo, existiria uma mãe esquizofrenogênica. Esse clima já abria a possibilidade de pensar em uma perspectiva sistêmica. Uma filha que tem a ver com um jeito de mãe. Uma sociedade que seria mais responsável que o próprio indivíduo por seu distúrbio... e assim por diante.

Essa abordagem foi muito solicitada em duas situações. Na terapia das psicoses e nos casos de anorexia nervosa.

Em relação a anorexia nervosa foi também estendido um olhar sistêmico. Não apenas a dimensão do jovem que se inaugura na adolescência, puberdade, explosão hormonal, mas o contexto de seu relacionamento com os pais e a família. Esses casos, sendo muito graves, não encontravam eco terapêutico nas propostas vigentes. Todas fracassavam. Foi pensada a abordagem sistêmica. Obviamente que no Nordeste do Brasil, pelo menos para a maioria da população, seria um contra-senso pensar em anorexia nervosa. Não quer o prato de comida? Dá para o outro irmão que tem fome! O que nos faz pensar na dinâmica sistêmica e no que foi falado anteriormente, o sintoma como expressão de um mal-estar mais amplo, sistêmico.

No Brasil, a Terapia Familiar Sistêmica tem sido difundida, como instrumento de abordagem terapêutica nos conflitos conjugais e familiares. Ainda, na questão que envolve o processo de autonomia da adolescência.

Não há nada de mágico ou extraordinário. Existem indicações precisas e nestas os resultados tem sido promissores, destacando com muita ênfase o problema da desculpabilização. Uma sessão de terapia familiar oscila como a vida, a emoção ao choro. Do riso à gargalhada. Ela mexe com a família a partir de seus elementos positivos. Isso faz com que se rompa a dinâmica que estava centrada na culpa. Igualmente, em situações a muito tempo amarradas, repetitivas, crônicas. A terapia provoca uma desarrumação, sendo muito eficaz para arejar as relações familiares. Naturalmente, que existem especificidades sociais e culturais, como, em nossa realidade, a questão do machismo. Os homens resistem mais a participar das sessões.

Afinal, a terapia familiar sistêmica é muito gostosa de realizar. Não há necessidade de tanta pressão. Pode ser uma coisa lúdica. Muitos pensam que terapia só pode ser válida se passar, necessariamente, por momentos de sofrimento, choro e expiação.

Uma terapia deve ser como a vida. Cheia de altos e baixos. Um vai e vem. Uma dança...

Referências Bibliográficas:

  1. DEVEREUX, G. - De l'angoisse à la méthode dans les sciences du comportement, Paris, Ed. Flammarion, 1980;
  2. COOPER, D. A morte da família. São Paulo, Editor Martins Fontes, 1986;
  3. LAING, R.D. & ESTERSON. A sanidade, a loucura e a família. Belo Horizonte, Interlivros, 1979;
  4. ACKERMAN, N.W. Diagnóstico e tratamento das relações familiares. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1986;
  5. ANDOLFI et alii. Por trás da máscara familiar. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1984;
  6. ELKAIM, M. et alii. Formações e práticas em terapia familiar. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1988;
  7. HALEY, J. Psicoterapia familiar. Belo Horizonte, Interlivros, 1979;
  8. MINUCHIN, S. Famílias funcionamento e tratamento. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1982;
  9. SATIR, V. Terapia do grupo familiar. Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1978;
  10. BOSCOLO, L. et alii. A terapia familiar sistêmica de Milão - conversações sobre teoria e prática. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1993;
  11. WATZLAWICK, P. et alii. Pragmática da comunicação humana. São Paulo, Editora Cultrix, 1988.

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