Volume 5 - 2000
Editor: Giovanni Torello


Março de 2000 - Vol.5 - Nş 3

Psiquiatria, outros olhares...

ETNOPSIQUIATRIA, A CURA PELA CULTURA

Antonio Mourão Cavalcante
Doutor em Psiquiatria pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica),
doutor em Antropologia pela Universidade de Lyon (França),
Professor Titular de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará,
Diretor do Centro de Estudos da Família.
 

O presente trabalho tem como referências teóricas a psiquiatria e a antropologia cultural. E, como antropólogo, peço licença para começar com uma rápida história.

Os nordestinos foram os inventores e os construtores da Amazônia para o Brasil. A população amazônica, além dos autóctones é majoritariamente de origem nordestina, sobretudo cearense. Logo que se tornava adulto o grande sonho era "ganhar a vida" na Amazonia. Ficar rico e ver muita água. Por lá, passava um certo tempo, mesmo anos inteiros. Alguns voltavam, outros obviamente morriam de malária e demais pestes. Ainda, os desaparecidos, que ninguém encontrava mais qualquer traço ou notícia.

A história é que um destes cearenses conseguiu retornar. E, "quase" herói, tinha direito de contar histórias, aventuras extraordinárias. Como, por exemplo, afirmar que na Amazônia tinha árvores que precisavam de 20(vinte) homens de braços dados, abertos, para cercá-la, de tão grande e frondosa. Cobras que engoliam dois bois de uma vez. Histórias fantásticas.

Então, numa imensa roda que se ajuntava para escutar estas histórias, o cearense contou que uma época atrás, estava morando numa casa encima das águas, numa palafita. Sua grande vontade era tomar um banho naquelas águas. Porém, o pessoal mais antigo na região advertia: "você tome cuidado, porque aqui tem crocodilo. No dia que você pular ai, eles te pegam..." E, eu olhei, olhei, olhei - continua o herói - e não vi nada. Passei dias olhando, pastorando. Mesmo à noite eu ficava olhando e nada..

Até que um dia eu resolvi: quer saber de uma coisa? Tirei a roupa toda. Nu, pulei dentro d'água. Fiquei lá, nadando. Quando escuto um barulho, que eu olho, lá se vem um jacaré de boca aberta, no meu rumo. Viro para o lado, lá vem dois jacarés de boca aberta. De trás, lá se vem mais dois. Os olhos, encima de mim, fumegando! Foi que eu disse: valei-me meu Padim Padre Cícero! E os bichos se aproximando. Pronto, é hoje! Não tive jeito. Eu arrastei da minha faca e fui prá cima deles! No que um atento espectador corta a narração: mas, espere aí! Você não falou que tinha pulado nu? De onde tu tirou esta faca?"

Indignado, o cearense vitorioso exclama: " Meu amigo, você não serve para ouvir histórias da Amazonia!".

A rigor, como assinala Tobie Nathan (1998 -1) , a dificuldade não é a de "se transcrever (traduzir) de uma língua para outra - mas transportar uma visão de mundo para outra visão de mundo."

A etnopsiquiatria é uma epistemê da ciência. Isto é, ela tenta dizer, desde os seus precursores, Geza Róheim (1967), depois Georges Devereux (1970), que um fenômeno comporta diversas leituras. É esta complementariedade epistemológica que chama a atenção no original pensamento da etnopsiquiatria. Mesmo que o sofrimento seja de ordem mental, que possua um registro, como sendo de sintomatologia mental, reivindicada pela psiquiatria, ela pode ter outras leituras igualmente válidas, igualmente pertinentes.

Nada é mais libertador para a ciência, nada é mais científico do que a possibilidade de leituras diferentes sobre um determinado fenômeno. E, nessa perspectiva, está a essência da contribuição etnopsiquiátrica. A HISTÓRIA

Uma senhora me procura no consultório. Para a família que a acompanha, ela tem um grave problema psiquiátrico. D. Maria, 79 anos, é viúva há vinte anos. Ao longo deste tempo anos tornou-se uma verdadeira matriarca. Morava em um pequeno lugarejo, numa cidade do Interior do Ceará. Ela nunca teve filho. Herdou todos os bens da família.

A história atual é que a menos de dois dias ela teve um gesto tresloucado: pegou no guarda-roupa de seu quarto, um velho revólver do falecido marido. Colocou as balas, também velhas balas, e deu um tiro em sua cabeça. Botou no ouvido e disparou duas vezes. O pessoal de casa ouviu um estampido forte e seco. Ela não foi atingida. Emocionada, não acertou o primeiro disparo na cabeça, resvalou. Na segunda tentativa, o tiro não aconteceu. As balas estavam gastas pelo tempo. O revólver enguiçou. Não sabe. Para todos, um verdadeiro milagre.

Para a família ficou mais que evidente que ela estava louca. Por isso, trouxeram-na ao psiquiatra... Conversa vai, conversa vem, descobri que D. Maria, tinha uma função importantíssima neste lugarejo (distrito): ela era a responsável pelas "terras da santa".

As terras do distrito tinham sido uma doação de um rico proprietário, uns 30 a 40 hectares, presente ofertado a santa padroeira do lugar. Tal comportamento é muito comum no Nordeste. O rico proprietário faz uma promessa e doa propriedades agrícolas à santa protetora. Designa-se um administrador de prestígio e força local, para, em nome da santa, realizar as tarefas de vigilância e posse do sagrado.

D. Maria, há muitos anos, recebeu essa incumbência. Qualquer pessoa que precisasse construir alguma obra nesse terreno tinha que solicitar autorização à santa, isto é, pedir permissão à D. Maria. Queria ampliar o quintal, fazê-lo maior? Uma casa para um filho que vai casar, o que quer que fosse, tinha que negociar.

Só que, ultimamente, apareceu uma criatura no lugarejo e fez um puxado de muro a partir da casa de um primo. Construiu uma nova casa e nunca falou com a D. Maria. Apesar de alguns enviados especiais terem levado mensagens de D. Maria, a mulher forasteira não deu qualquer satisfação. Apelos em nome da santa, e a mulher nem respondia. O clima ficou muito tenso. D. Maria considerou a atitude um profundo desrespeito.

Posteriormente, D. Maria soube que a mulher tinha viajado, com promessas de voltar logo. Haja fuxicos! Alguns advertiam que se tratava de uma pessoa muito perigosa, de muita força. "Estão até falando que essa viagem dela foi para a Bahia". Teria ido buscar energia no candomblé. Talvez até encomendar um serviço contra D. Maria.

Um mês depois, D. Maria cai doente. Muito doente. Qual era o problema? Não dormia direito, inquieta, preocupada. Triste. Realmente depressiva, segundo a ótica psiquiátrica. Não se alimentava direito, não se interessava mais pela vida, não fazia mais as viagens que ela realizava todas as semanas aos outros sítios de sua posse. Diz, durante a consulta: "Estou cada vez mais mole. Eu era esperta, acordava cedo, levantava pela manhã, fazia o leite fervido para todo mundo. Até tapioca eu fazia, mas daí pra cá eu não tive mais vontade de fazer nada. Aumentou o meu esquecimento, e ontem, como eu não melhorava, como a vida não tinha mais graça e sentido, tomei o revólver, que era do meu marido, e dei um tiro no meu ouvido. Lamentavelmente eu não acertei o tiro, não sei o que foi aquilo. Tentei novamente, estava carregado, mas enganchou, não disparou de novo. Só fez eu atrapalhar mais a minha vida. Não queria contar, porque isso seria uma vergonha contar ao médico." (Passa a chorar) "Sei que jeito eu não tenho mais, minha vida não vai mais ter repouso, não vai ser mais aquilo que foi".

TRABALHANDO UMA HIPÓTESE

Tobie Nathan (1998 - 2) diz que a caracterização de uma abordagem terapêutica é a possibilidade de construção de um aparelho de intervenção, que ele chama de uma máquina.

Na psiquiatria, a máquina é montada a partir do repertório dos sintomas, da anamnese do paciente, com a queixa principal, a busca de uma classificação ou de um diagnóstico. Hoje isso é facilitado pelos manuais que catalogam os sintomas apresentados pelo indivíduo em alguma rubrica, para finalmente sair com uma descrição do quadro clínico, a prescrição de algum fármaco e o estabelecimento de uma agenda para acompanhamento. Portanto, coloca-se em marcha toda uma máquina, que é a psiquiatria.

Tobie Nathan (1998 - 2) informa que o registro etnopsiquiátrico pode elaborar - a partir dos elementos culturais - outras máquinas igualmente válidas.

O que aconteceu com D. Maria? Dada a natureza da história, de fundo fortemente cultural, as implicacões e reações contextualizadas, bem como o estreito espaço para esperar resultados pelos psicofármacos - essa determinação firme de morrer, dentre outras - preferi não intervir como psiquiatra. Essa intervenção consistiria em prescrever anti-depressivos e estabelecer uma psicoterapia de apoio.

Dada a minha dupla formação - médico e antropólogo - resolvi

elaborar uma intervenção mais consentânea com a natureza cultural do

acontecido.

Disse-lhe :" Olhe, nós vamos fazer uma coisa. A sra. disse que a sua vida não tem mais jeito. Eu quero que a Sra. faça uma coisa que vai ajudá-la a se curar. A sra. não quer ficar boa? Pois bem, quando a sra.

chegar na sua casa, vai até o tal muro que a "forasteira" construiu. Tira um tijolo do muro e traz para a sua casa. Ninguém pode fazer isso. Não vá mandar alguém. É a Sra. que tem que ir. Traga o tijolo e coloque dentro do seu quarto, encima de uma pequena mesa. Todos os dias, durante dez noites seguidas, a Sra. vai pegar uma vela e acendê-la encima do tijolo. No momento em que acender a vela, deve dizer: ninguém pode mais do que Deus! Terminada essa tarefa a Sra. deve voltar aqui..."

O impacto foi instantâneo! Ela muda, imediatamente, o semblante. Aquela prescrição parece resultar numa mudança brusca. Ela pergunta: como é que eu vou arranjar este tijolo, Dr.? Secamente respondo: problema seu!

- E esta vela, o povo vai ver eu acendendo esta vela!

- Qual é o problema, a Sra. não é católica?!

- Eu não posso me trancar, porque pensam logo que eu vou me matar!

- Problema seu, eu não quero saber de nada. Quando a Sra. terminar, serão dez dias, a Sra. volta aqui, com este tijolo, porque em seguida, ainda tem outra tarefa para completar...

Alguns dias depois, soube através de um membro de sua família - eles não compreendem por quê! - mas ela não falou mais em morrer. Acabou totalmente esta história, este assunto. Eles chegavam a questioná-la, por longe, mas, sem qualquer êxito. Suas preocupações agora pareciam de outra ordem.

Posteriormente, a própria família resolveu levá-la a um outro psiquiatra que estabeleceu um tratamento convencional. Quatro meses após, tive a informação, finalmente, que exames médicos preliminares haviam detectado um câncer com muitas metásteses. Uma doença rápida, insidiosa.

ANÁLISE

1. Nessa proposta se construía a partir de uma referência pouco convencional, mas, igualmente pertinente. O diálogo sobre outros elementos ligados aos costumes locais e a vivência da paciente nesse contexto, reforçavam a intuição de prosseguir nessa direção. E, igualmente, havia o interesse de romper uma lógica muito sumária: a morte ou a resignação. O espaço de manobra era muito estreito.

É científicamente terapêutico algo que instaura a possibilidade de ser uma máquina eficaz. Capaz de ser um aparelho eficiente na reinscrição e na redimensão do indivíduo para com ele mesmo, a sua sociedade e a transcedência com a qual tem referência.

Em muitas circunstâncias a "máquina" psiquiatria não seria a mais eficaz. Nem é, transmutando/recuperando outros aparelhos e outras máquinas ao universo psiquiátrico - por exemplo - um jargão sofisticado que envolva noções de inconsciente, aparelho psíquico, projeção, etc. Doutra parte, a umbanda não comporta estas explicações. O candomblé é outra coisa. São outras máquinas. Provavelmente tão eficazes quanto a intervenção científica.

Aliás, essas abordagens não tem nem mesmo necessidade de serem chamadas de psicoterapias. Podem ser designadas como socioterapia, etnopsiquiatria, etnoterapia. Terapia, simplesmente, com algum outro rótulo.

2. O primeiro estudo rigorosamente etnopsiquiátrico, conforme assinala Tobie Nathan(1998 - 1) foi feito por Georges Devereux junto aos índios Mohave do Arizona. Segundo o autor: "Os Mohave parece ter construído sua teoria geral da patologia como consequência da 'impureza' dos estrangeiros."... Interessante que, no caso em discussão, foi a "estrangeira" que colocou as regras existentes em desuso. Por que obedecer esse poder imposto?

Essa mulher, que confrontou o poder era, de alguma forma, uma estrangeira que não respeita a ordem estabelecida. Ela ameaçou as normas reinantes. Ela quis impor uma nova lógica. Como reagir a tamanho desatino? Como conseguir resgatar a ordem reinante? Com a idade que possui, com os próprios fracassos pessoais - orgânicos, físicos - D. Maria se inaugura no próprio processo de "fim" de seu tempo.... Por isso, ela exclama: "a vida não tem mais graça e sentido."

CONCLUSÃO

1. Tobie Nathan (1988 - 3) destaca dois impactos fundamentais que teve o pensamento de Devereux, ao elaborar estudos sobre a etnopsiquiatria, em relação a psicanálise e sobre a psicoterapia. Assinalo o primeiro por relacionar-se com o presente estudo. "Obrigar o clínico a levar em conta fatos que ele não conhecia e de cuja existência ele sequer suspeitava; fatos aos quais, a priori, ele não dava qualquer importância, por exemplo: pode-se ler a desordem psicológica de um paciente a partir de eterminantes culturais; e de maneira completamente fundamentada somente a partir de

determinantes psicológicos singulares".

É verdade que podemos falar em depressão no caso de D. Maria, os elementos anamnésicos nos conduzem a tal. Porém, numa determinada circunstância, a intervenção de natureza cultural pode ser igualmente ágil e eficaz. Lamentavelmente, até agora, não soubemos - enquanto terapêutas - levar tais fatos culturais em conta. Eles não se anulam. Podem e devem ser complementares;

2. Quando nós observamos a riqueza da cultura brasileira e dos recursos que poderiam ser empregados na reconstrução dos laços sociais, das redes socias, das relações afetivas e emocionais, percebe-se como é pertinente o discurso da etnopsquiatria. Ela nos chama atenção para uma epistemologia do pensar. Não necessariamente da mente, posto que construção conceitual da psicologia. Fala-se do pensar. O compromisso maior estando aberto à busca do bem-estar.

Pode-se afirmar que D. Maria não conseguiu curar-se pela cultura, - não foi autorizada - por isso, ela estaria morrendo.

BIBLIOGRAFIA

Devereux, G. - Essais d'ethnopsychiatrie générale - Paris, Gallimard, 1970 Nathan, Tobie et Pierre Pichot (1998 - 2) - Quel avenir pour la psychiatrie et la psychothérapie - Paris, Synthélabo, 1998.

Nathan, T. (1998 - 1) - A guerra intercultural e a psicopatologia, especificidade da Etnopsiquiatria in Terapêuticas e Culturas / Organização, José Flávio Pessoa de Barros, Rio de Janeiro, UERJ, Intercon, 1998.

Nathan, T. (1998 - 3) - Georges Devereux e a Etnopsiquiatria Clínica in Terapêuticas e Culturas / Organização, José Flávio Pessoa de Barros, Rio de Janeiro, UERJ, Intercon, 1998.

Róheim, G. - Origine et fonction de la culture - Paris, Gallimard, 1967.

 

Antonio Mourão Cavalcante
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